Não tenho boas lembranças de 2009. Foi um ano muito conturbado que demorou demais pra passar.
Gritos constantes, choro de filhas e o silêncio que às vezes durava dias. Aliás, foi uma relação que começamos como estranhos interessados e acabamos como estranhos que se odeiam.
Quem era aquela mulher??? Eu me perguntava. Como tive coragem de casar com ela??? Acho que o questionamento era similar de ambas as partes.
O desgaste já se fazia notar e cresceu muito quando tive um "affair" com Larissa, jornalista, ex-namorada da época de faculdade, que reencontrei na cobertura do Festival de Música Flamenca em Madri, em 2007, e que durou por quase todo o ano seguinte.
Já tinha terminado, mas fui flagrado!!! Mensagens de texto, algumas eróticas, que salvei no celular. Um apaixonado romântico e...idiota!!!
Culpa!!! Me sentia um sacana com Lígia, minha ex, mas principalmente por ter feito do lar de minhas filhas um inferno.
Isso tudo culminou com uma separação judicial, muito desgastante e nada razoável, no dia seis de agosto de 2009, depois de nove anos casado. Ligia, não queria ser razoável, aliás nenhuma mulher magoada quer.
Beijei minhas filhas enquanto dormiam e disfarcei o choro.
Sai de casa sorrateiramente, com minhas roupas, minha escova de dentes, dois livros, meus cds, meu violão, um Martin D15 1987, e meu carro, um Polo sedan 2005. O carro era de segunda mão, o violão, não.
Passei um mês em um flat de Higienópolis, antes de decidir o que fazer. E mais dois meses depois que decidi, e ainda mudei de idéia milhares de vezes.
Um vazio anestesiante, que conferia total falta de sentido as coisas, tomara conta de mim. Saía muito pouco e não atendia o telefone. Só falava com minhas filhas uma vez por dia, menos aos domingos, que não suportava falar.
Voltei a fumar após sete anos, seis meses e tres dias. Tinha largado o cigarro desde o nascimento de Michelle, minha primeira filha.
Passava o dia no quarto, ouvindo música alta em minha única aquisição, um cd player, assistia TV, tocava violão e fumava muito. Às vezes, tudo ao mesmo tempo.
Vivia nu e me cobria com o lençol, quando a camareira entrava. Ela era morena, baixinha, um rosto até bonito, com os dentes levemente tortos e um baita bundão, mas me ignorava completamente. Isso a tornava interessante. Limpava o quarto como se não houvesse ninguém ali. Uma vez, peidei alto, só para ver a sua reação, abriu a cortina e escancarou a janela, mas não disse uma palavra, nem mudou a sua expressão.
Permanecia horas com o violão no colo sem conseguir tocar uma música inteira sequer. Quando a quarta corda (D) arrebentou, passei por várias lojas de música, no Centro, examinei marcas novas e antigas de encordamentos, perguntei o preço de todas elas, mas não comprei nada. Não pelo preço, mas pela simples falta de ânimo, de decisão.
Só andava a pé. O carro nunca saía da garagem do flat.
Fabrício Quintana, editor chefe da revista Cultura Paulistana, meu melhor amigo e padrinho de minha filha mais velha, entre outras coisas, descobriu minha “caverna”, apareceu uma noite e me arrastou para jantar. Fomos no seu carro, que parecia um foguete espacial comparado ao meu.
- Cara, você tá um lixo!!! Assim não dá!!! Já te indiquei para duas matérias, até para a apresentação da Filarmônica de Israel com o Mehta, mas ninguém te achou!!! Desembestou a falar:
- Não dá pra parar de viver, não. Eu mesmo já te liguei milhare...
- Como me encontrou??? Perguntei, interrompendo.
- O telefone de sua mulher tem bi..
- Ex-mulher!!! E não é dela, fui eu que comprei!!! Interrompi de novo.
- É, o telefone que Lígia usa tem bina e você liga pra suas filhas todos os dias...
- Todos os dias, menos domingo!!! Na verdade, eu sentia muita falta de nossos passeios aos domingos.
- Para de me interromper, porra!!! É, eu liguei no número que aparece no bina e deu no flat.
Muito esperto, pensei. Estava agoniado, não queria companhia. Tive vontade de descer no primeiro semáforo.
- Ahah!!! Nem pense nisso, disse lendo meus pensamentos. E apertou a trava geral das portas do carro.
- Põe o cinto, vai, pediu.
Fomos ao restaurante Jardim de Napoli, pedi um spaghetti com funghi a la crema, que orientalizado, veio com shiitake e Fabrício, um polpettone.
Dei duas ou três garfadas e parei, não sentia fome.
- Já te disse que você está um lixo??? Parece doente!
- Obrigado, é a terceira vez que você me diz isso, respondi. Uma no quarto, outra no carro, aqui...
- Ah é mesmo, concordou. Abaixou o tom e perguntou:
-Você tá fodendo pelo menos???
Fiz que não ouvi e acendi um cigarro. O garçom me pediu para apagar, aquela era a área de não fumantes.
Fabrício adorava vinho. Enchia a boca com um longo gole, que sorvia lentamente, dando a impressão que o vinho derretia, murchando suas bochechas.
- Sabe, domingo de manhã, pego você e vamos olhar uns apartamentos para alugar.
É importante que não seja muito longe de sua ex-casa, pras meninas poderem freqüentar quando quiserem.
- Quem disse? Perguntei.
- Quem disse o quê? Retrucou.
- Quem disse que eu quero???
- Eu disse, e não vou discutir. Se você soubesse o que é bom pra você não estaria esse lixo!!!.
- É a quarta vez... Eu gosto de ser um lixo, desdenhei irritado.
- Gosta porra nenhuma!!! Tá querendo ser coitadinho??? Perguntou exaltado. Parece menino teimoso!!! Você sempre foi vaidoso. Só usa roupa de marca!!! Ninguém sorriu pra você hoje, nem aqui, nesse restaurante que você sempre freqüentou!!! E abocanhou o último pedaço de seu polpettone
Era verdade... Fabrício era um grande amigo, mesmo contra a minha vontade.
- E tem mais uma coisa...Segunda, dia sete, sete de dezembro, quero você lá na revista para tirar as férias do Romeu, disse enchendo a minha taça de vinho tinto.
- Do Romeu??? Tá louco??? O Romeu fala de urbanismo, da arquitetura da cidade, eu só sei o que é barroco e moderno, e olhe lá. Não estou interessado... Só quando ouvi o dia sete de dezembro é que me dei conta que já estávamos quase no final de 2009!!!
- Foda-se!!! Você se vira...Um brinde ao recomeço!!! Ele ergueu a taça.
Brindei, mas não pronunciei mais palavra alguma. Nem no restaurante, nem no caminho de volta ao flat.
Na despedida ele me abraçou forte e beijou minha bochecha.
- Faz a barba, seu viado!!! Disse, arrancando o carro.
Domingo, não saí para procurar o apartamento com Fabrício. Lígia finalmente cedeu e fui passear com as minhas filhas.
Mas, na segunda, apareci no emprego. E aquele emprego de um mês acabou durando dois anos, quase três. Claro, que não falando só de arquitetura. Foi uma das minhas melhores fases profissionais, sem dúvida.
Foi muito bom pra reconstrução de meu ego e a reorganização de minha vida.
Parei de fumar.