quarta-feira, 3 de março de 2010

São Paulo, 8:37 AM

Lia compenetradamente um livro*, onde um pai desempregado narra sua tentativa de dar uma educação alternativa ao filho através de uma convivência cinéfila intensa. Filho que muitas vezes não se furta de ser sincero, sincero até demais, com seu pobre pai. Não pude segurar o riso no trecho onde ele fala o que achou dos Beatles, arrasando a memória afetiva de seu pai. Tenho duas filhas e sei muito bem como a sinceridade delas pode me desconsertar.
Estava de porta aberta, aliás, cagando de porta aberta, talvez para marcar território.
Com a crise, minha irmã que morava nos EUA voltou para trabalhar no Brasil...e veio morar comigo. Divorciado, antes eu só dividia o espaço com minhas filhas aos finais de semana.
Com certeza, o apartamento estava mais limpo e mais organizado, e poder dividir as despesas era um grande alívio. Mas, no fundo, eu gostava de minha bagunça e sentia essa divisão do ”reino” como uma invasão. Nada pior que ser democrático em sua própria casa, onde muitas vezes as coisas são como são porque você quer assim e não por lógica ou bom senso. Mais por valor afetivo do que valor funcional.
Cada vez que volto de uma viagem à trabalho, algo foi mudado... Parei de questionar para não tornar nossa convivência insuportável.
Minha irmã já tinha saído para trabalhar.
De repente, uma sombra interrompe minha leitura, um vulto na porta do banheiro olha para mim.
O susto vem seguido de uma inversão na corrente sanguínea, que causa vertigem.
Um homem de terno, com um gorro furado, que só deixa à mostra os olhos e a boca. Armado!!!
- Não faça nenhuma besteira e vai ficar tudo bem... Falou em um tom quase amigável.
Fez um sinal com a cabeça, me mandando sair do banheiro.
Constrangido fui me limpar. Ele me deu as costas, para me dar alguma privacidade.
Pensei em reagir, mas ele estava armado... E eu, visivelmente acima do peso, com a calça arriada... “E se ele me desse um tiro???” Imaginei uma equipe, estilo CSI (Crime Scene Investigation), examinando meu cadáver, caído, com a bunda de fora. De fora e suja...Desisti!!!
Ainda ouvi seu comentário, enquanto soltava a descarga: - Rapaz, o que você anda comendo???
Saí tropeçando nas pernas...
Cutucou minhas costelas com o cano da sua 765:
- Tranquilo, tranquilo, disse.
Pegou o livro de minha mão, olhou a capa, leu o título em voz alta e jogou na cama.
- Quero dinheiro, cartões, relógio, celular... Tem jóias em casa???
-Não, respondi.
-Tem certeza???
- Si-ssim...
- OK. Pegue a carteira, tire o dinheiro e os cartões, não quero os documentos, falava sem alterar o tom de voz... Esse cartão tem chip. Anote a senha.
Não achava uma caneta... Ele me entregou a dele.
A senha embaralhou na minha mente e minha mão esqueceu o alfabeto.
De repente, Pow!!!Pow!!! Os tiros ecoaram em outro andar.
- Fodeu!!! Pensei... Se não tivesse cagado antes, me cagava ali mesmo...
- Merda!!! Gritou, pegando seu celular que vibrava. Notei que o erre de merda era meio acariocado:
- O que aconteceu???...Quem???...Uma velha “apagou” o Morais???(Moraishh)
Ouvi a gritaria em outros andares.
- Não!!! Sujou!!! Vamo embora que a polícia vai chegar!!! E desligou, enquanto alguém ainda gritava do outro lado...
Respirou forte e me disse:
- Entre no banheiro!!! Se tranque, e só saia depois de 10 minutos!!! E não bobeie que meus amigos estão loucos pra descontar em alguém.
-Tá ...tá bom... Ainda zonzo, entrei no banheiro onde tudo começou, e me tranquei...
Fiquei pelo menos meia hora.

Mais tarde, dei depoimento pra polícia, omitindo alguns detalhes escatológicos, liguei pras filhas, chorei um pouco e contei tudo pra minha irmã. Nada como um compreensivo abraço familiar, nessas horas.
Era uma quadrilha especializada em assalto a condomínios, algo que se tornara tão comum, que até delegacia especial já tinha.
Foi a síndica, a senhora do décimo quinto andar - eu moro no décimo -, D. Alzira, que “apagou o Moraish”. Uma senhora de voz rouca, viúva, que nunca sorri, e mal responde quando a cumprimentamos no elevador. Baixinha de óculos, sem pescoço, sempre com um cigarro na mão. Parece a última de uma espécie já extinta.
Ela também estava no banheiro... só que no banho. O constrangimento maior deve ter sido do ladrão. Teve que sair nua pelo apartamento, e aproveitou uma distração do assaltante.
Apareceu sendo entrevistada no Jornal da Noite, na televisão.
- A senhora não teve medo??? Perguntou a repórter.
- Mocinha, eu moro aqui há 33 anos e sou a síndica. No meu prédio, não!!! No meu prédio, não!!! Aqui, esses vagabundos não têm vez!!! E tem outra coisa, tenho 67 anos e a minha bunda eu só mostro pra quem eu quiser!!!

*livro: Clube do Filme de David Gilmour.

Amuleto da Sorte

Dia 21 de junho de 1970. Na maternidade São Paulo, da rua Frei Caneca, o som dos radinhos de pilha quebrava o silêncio. Silêncio, que a enfermeira, cuja foto ornava paredes de todos os andares, firmemente recomendava. Radinhos ruidosos, que ninguém ousava mandar desligar.
Na sala dos médicos, a saudosa voz de Geraldo José de Almeida ecoava numa TV preto e branco, conferindo ainda mais emoção àquele que era, sem dúvida, o evento mais marcante presenciado, até então, pelo povo brasileiro, em uma transmissão ao vivo, via satélite. Muito mais do que a ida do homem à Lua, em 20 de julho de 1969, pois quem pisou na Lua foi um homem, Neil Armstrong, mas um homem americano. E naquele momento o jogo transmitido de Guadalajara, no México, era Brasil... Brasil e Itália... Final da Copa do Mundo!!!
Gol!!! O Brasil saiu na frente com uma cabeçada de Pelé, após cruzamento de Rivelino, o “Garoto do Parque”, aos 18 minutos do primeiro tempo. Mas após uma bobeira geral de nossa defesa, sofreu o empate, gol de Bonisegna, quando o cronômetro marcava 37 minutos, ainda do mesmo período.
Fim do primeiro tempo. A tensão era geral e crescente!!!
O único obstetra, provavelmente, que não se espremia, na sala dos médicos, acompanhando o jogo, Dr. Alberto Fargas, era o que realizava o parto em sua paciente, Elizabeth Acosta Bennedetti, neta de uruguaios, minha mãe.
E começa o segundo tempo. Teste para cardíacos!!!
E o tempo passa!!! Quase 20 minutos passados, rápido demais para uns, intermináveis para outros.
De repente: - Gooooooooooooooooooooooooooooooooolll!!! Lindo, lindo, lindo!!!
O Brasil finalmente desempatou com Gérson, “O Canhotinha de Ouro”. Em um chute indefensável no canto esquerdo baixo do goleiro Albertosi.
Junto com o grito de gol de toda nação brasileira, ecoou um outro grito pelo sétimo andar da maternidade: - É um menino!!! Um menino!!! O homem que corria com a bandeira brasileira na mão e gritava, como se ele próprio fosse o autor do gol da virada, era Rafael Mascarenhas Bennedetti, meu pai, que desrespeitando sua tradição familiar paterna, era o mais brasileiro dos italianos.
“Noventa milhões em ação, pra frente Brasil, do meu coração...”
O gol “errado” de Jairzinho, “O Furacão”, deu mais tranquilidade ao time e aos 90 milhões de brasileiros que acompanhavam a partida. Isso, aos 25 minutos da etapa final. E aos 42 minutos, em uma pintura coletiva, iniciada por um solo de Clodoaldo driblando quatro italianos no meio de campo (o terceiro deles deve ter problemas na coluna até hoje), com direito a arrancada de Jairzinho, pela esquerda, e um passe mágico de Pelé, Carlos Alberto, “O Capitão”, estufa as redes italianas, conferindo números finais ao espetáculo. Brasil 4X1 Itália!!!
No dia seguinte, a foto do rei Pelé, o “Craque Café”, seminu, sendo carregado nos ombros pela torcida mexicana, estampou manchetes de jornais de todo o mundo.
Brasil Tri-Campeão mundial!!!
Meu pai sempre me contou essa história, como se eu e meu nascimento tivéssemos sido decisivos na vitória da “Seleção Canarinho”. Tenho uma foto da época, bebê recém-nascido, no colo de meu pai, enrolado com a bandeira brasileira. Eu tinha sido o grande amuleto da sorte do Brasil!!!

*Os apelidos dos jogadores acima citados, foram criados por Geraldo José de Almeida, e aparecem nessa crônica em homenagem a esse grande narrador esportivo.