-Manda entrar!!! Dr Sig, pelo interfone, pede a Eva, sua secretária, que introduza o próximo paciente em sua sala.
Eva
pergunta com uma certa hesitação na voz:
- Doutor, o Sr viu a
anamnese, a entrevista prévia que eu fiz??? É um caso “diferente”…
Confiando em seus longos anos como psicanalista, Dr Sig responde sem muita paciência:
- Pode deixar entrar!
A porta se abre e para a sua surpresa a paciente entra andando de ré.
Ela usava roupas estranhamente largas e essa era a sua primeira sessão.
- Seu nome é?
- Mile, Jamile
- Por favor, Jamile. Diz o terapeuta indicando o divã.
A paciente se deita de bruços.
Sem querer intimidá-la ele pergunta:
- Você está confortável assim?
- Sim e não. Mas é a posição devida.
- Devida por que?
- Por que? Eu sou somente a interlocutora, sua paciente é a… minha bunda!!!
- Sua bunda??? Perguntou o Doutor intrigado.
- Sim, minha bunda!!! Então ela não pode ficar por baixo na sessão, né?
- E por que sua bunda veio até mim?
- Porque ela estava muito triste e caída, quase em depressão. Ela é cheia de traumas!!!
Seria
um caso onde a paciente incapaz de assumir suas questões, transferia
tudo para
uma parte de seu corpo??? Um caso incomum sem dúvida!!!
- Sim, e sua bunda tem um nome?
- Só apelidos, mas nenhum muito elogioso. Bullying, sabe???
- Entendo. Diga alguns.
-
Ah, vários!!! Subnutrida, porque diziam que esqueceu de crescer;
bundícula ridícula; gavetinha; mini-mini; prancha (de surf); trombou de
ré no caminhão; where’s the bunda?, e assim vai…
Dr
Sig fixou os olhos naquela bunda, sentiu sua tristeza e viu que havia
maldade naqueles comentários, mas que também tinham procedência, mesmo ela estando disfarçada pelas roupas largas.
- E como ela gostaria de ser chamada?
- Pergunte para ela Doutor!
Dr Sig respirou fundo e perguntou para a bunda:
- E como vc quer ser chamada???
- Flávia! Responde Mile.
- E por que Flávia?
- Porque ela gosta desse nome. É de uma amiga de escola que a tratava bem.
- Então Flávia, me conte, por que você está aqui?
- Sabe Doutor… posso falar na primeira pessoa?
- Sim, claro!
-
Então, minha vida era normal até o início de minha adolescência. Uma
infância feliz como as das outras meninas. Mas, mais ou menos aos 12
anos, quando as meninas começaram a ganhar corpo e suas bundas
cresceram, nada aconteceu comigo. Imagina a decepção.
- Sim, entendo. Continue…
-
E a ficha caiu mesmo quando picharam no banheiro da escola: ”Jamile
esqueceu a bunda em casa!!!” Foi um choque, muito triste!!!
- Entendo…
- Depois disso nós fomos ladeira abaixo..
- Nós?
- Sim, eu e Jamile.
- Entendo…
-
Mile tentou disfarçar colocando enchimentos na calcinha, usando roupas
largas, tentava fugir das aulas de educação física, não ia à praia, nem à
piscina… Mas o bullying e as chacotas eram cada vez mais frequentes e
violentos. Certa vez eu estava no chuveiro do vestiário, após uma aula
de Educação Física que não pude faltar, e eu só tomava banho depois que
todas saíam, mas as meninas voltaram, tiraram suas calças e dançaram um
funk, tipo “twerk”, com aquelas bundas proeminentes viradas pra mim. Foi
horrível!!! Aí, Mile começou a me culpar por toda a sua infelicidade e
isolamento social.
- Sim, entendo.
-
Nessa época, a única que ficou ao meu lado foi Flávia, que me apoiava.
Minha única amiga!!! Compreensível também, pois ela era a segunda na
categoria onde eu era a campeã disparada. Se eu era o 0 (zero), ela era
2, talvez 2 1/2. Mas Flávia tinha um trunfo, seus peitos eram mais
precoces do que os das outras, lindos peitos, e Mile… "comissão de frente"
nota 4!!!
- Você é muito severa com Jamile e com você mesma - Considerou Dr Sig.
- Passei uma boa fase sem querer me olhar no espelho!!!
- Sim, entendo.
-
Depois, sem a obrigatoriedade de uniformes no ensino médio, Jamile
passou a usar vestidos e saias largas. Sempre tentando desviar a atenção
de mim. Passamos a nos relacionar somente quando necessário.
- Quem?
- Eu e Jamile. Calipígia...
- Como? Na verdade, Dr Sig não conhecia o significado da palavra.
-
Calipígia*… era tudo o que Mile queria ser!!! Tentou academia,
massagem, fórmulas mágicas, mas eu só cresço com cirurgia e aí o custo é
inviável. E com esse trauma todo e o desprezo que ela me dispensa, não
dá pra eu ser feliz, né???
- Entendo. E Flávia, sua amiga?
- Nunca mais vi… Sinto saudades!!! Hoje ela é jornalista.
- E sua relação com Jamile, como é hoje?
- Olhe, não somos amigas, convivemos porque é necessário. Com o Dudu,
ela até ficou menos ressentida, até feliz. Pena que terminaram.
- Dudu?
-
É. Foi namorado de Mile por 2 anos e 1/2. Ele era louco por ela e não
me olhava com desprezo. Mas mesmo assim ela não gostava que ele me
acariciasse não!!!
- E por que terminaram?
- Sei lá!!! Mile é complicada e ciumenta, vivia implicando com ele, achava que ele olhava pra todas as bundas que passavam!!!
- E olhava?
- Todo homem olha, né??? Mas ele era discreto e respeitoso. Ela que é paranóica!!!
- Eu paranóica??? Foi você que me deixou assim!!! Interrompeu Jamile.
Mile
e Flávia iniciaram uma discussão e começaram a se exaltar!!!
Estranhamente, dava para distinguir perfeitamente quem era uma e quem
era a outra na discussão.
- Calma, calma!!! - Tentou apaziguar o Dr Sig.
Aquele
era um caso raro, que ele nunca tinha presenciado antes. Não eram
personalidades diferentes que se manifestavam em um único ser, um de
cada vez, em um transtorno dissociativo de personalidade tipo "As Três
Faces De Eva”, eram “seres” com vida própria, antagônicos, que eram
obrigados a conviver simultaneamente, contra suas vontades, em um único
corpo.
Será que ele poderia cuidar de Jamile e considerar Flávia como
um sintoma??? E se depois aparecerem o pé torto, o olho míope, o peito
menor que o outro para se queixarem???
Três
minutos depois, com os ânimos mais controlados, o Psicanalista suspira e
prossegue:
- Pelo que entendi, a paciente não é só Flávia, Jamile. E
não tenho como separar vocês duas para atendimento individual. Será como
uma terapia de casal, só que o divórcio não é uma alternativa para
vocês. Quero que vocês duas pensem bem em como querem se relacionar já
que a convivência é necessária para a vida toda. Na próxima sessão a
gente continua.
- Tá bom, Doutor! Obrigada e desculpe a briga… diz Mile meio sem jeito.
- Desculpe também, Doutor, mas Mile é descontrolada - rebate Flávia reiniciando a celeuma.
- Ops!!! - Intervém o terapeuta quando Jamile já tentava beliscar a própria bunda.
Jamile sai em silêncio de cara fechada acompanhada por Flávia.
Dr
Sig se sentia exausto, diluiu um pó branco que guardava na gaveta em um
copo de água, bebeu lentamente pensando sobre o caso que acabara de
presenciar e anotou no seu bloquinho:
“Calipígia???”
Calipígia*: Referente àquela que tem formosas Nádegas.