segunda-feira, 17 de abril de 2023

O Mar de Maria Rita

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Ela foi registrada como Maria, em homenagem à avó materna, e Rita, em homenagem à avó paterna.

Quando criança era chamada de Mariazinha pelos parentes por parte de mãe e Ritinha pelos parentes por parte de pai. Maria Rita, seu nome composto, só era usado na hora da bronca dos pais. 

Teve uma infância normal, sem muito destaque, cercado por primos e irmãos. Nos tempos de ensino médio, onde o bullying corria solto, era conhecida como Maria Irrita, por ser bastante introvertida e pouco participativa nas “brincadeiras” dos colegas. Sua melhor e talvez única amiga na escola, que também era Maria, Maria Izabel, costumava chamá-la de 'Ma'.

Maria Rita era boa aluna. Não gostava muito de esportes, mas adorava dançar. As festas e a dança, porém, não eram olhadas com bons olhos por seu pai, Seu Athirson, rígido e evangélico. 

Namorou um menino da Igreja, três anos mais velho, quando tinha 16 anos. Um bom menino, filho de amigos de seus pais. Andavam de mãos dadas e trocavam beijos discretos, mas ela nunca se sentira realmente apaixonada por ele. Desfez a relação depois de um ano e meio, quando viu que ele começava a fazer planos sérios de um futuro conjunto. Ouviu um “pense bem” de sua mãe, mas foi uma grande decepção para seu pai. 

Maria Rita frequentou a Igreja com sua família até a sua maioridade e, pouco a pouco, se afastou. Acreditava em Deus, mas não se sentia confortável, nem tampouco se identificava com seus “irmãos” de Fé.

Gostava da música Maria Maria, de Milton Nascimento, que sua avó Maria tocava para ela desde criança; mas, por algum motivo, não se identificava completamente com a canção. Acolhedora e carinhosa, Vó Maria sempre foi seu Porto Seguro.

Seu primeiro namorado mais sério, nos tempos da faculdade de Sociologia, lhe dedicou o poema “O Mar de Maria”:

“…

Amo o Mar

Amo Amar

Tento mergulhar 

Mas as ondas me trazem de volta à praia

Não permitem que eu conheça 

Os mistérios e segredos

Guardados nas profundezas

Do Mar de Maria”

Era verdade, havia segredos que nem mesmo ela conhecia a fundo ou sabia como lidar. Isso lhe causava profunda angústia. 

Chegaram a pensar em casar quando ela engravidou, mas ela sofreu um aborto espontâneo. Eles terminaram com muito sofrimento após quase quatro anos de idas e vindas. 

Nos anos que se seguiram, teve alguns relacionamentos, mas nada tão consistente ou duradouro. E nada muito público.

Hoje, aos 37 anos, três anos após a morte de seu pai (com quem nunca teve coragem de se abrir) e anos de terapia, Maria Rita se assumiu trans e se chama Mário Rita, nome registrado. É casado com Maria Izabel, sua amiga dos tempos de escola, e fazem planos de adotar uma criança. Teve a benção de sua mãe e de sua Vó Maria, quase centenária, que só não gostou de Maria sair do nome. Claro, ganhou o desprezo e a rejeição de alguns familiares, também, principalmente dos evangélicos, mas continua acreditando em Deus.

Não sei se diria que Mário Rita está mais feliz agora; mas, com certeza, menos angustiado. Aliviado, com coerência e honestidade para seguir vivendo em paz com os segredos que guardava a sete chaves no fundo de seu Mar.

segunda-feira, 10 de abril de 2023

Domingo de Páscoa, 15:30h


Observei quando dois homens: um mais velho, de cabelos brancos, e outro mais novo, mas não tão novo assim, levantaram da mesa onde se reunia a família em uma barraca de praia, cruzaram a faixa de areia quase deserta pela previsão de chuva — que não se confirmou — engataram uma conversa cheia de assuntos e adentraram o encantador, mas traiçoeiro mar da Bahia.

Os dois vestindo bermudas pretas, com suas formas roliças estilo barril (principalmente o não tão novo assim), caminharam lentamente em direção às águas mais fundas daquele mar bravio, sem demonstrar receio algum, provavelmente porque seus “air bags” naturais, ou “beer bags”, eram mais seguros que as boias do Titanic e não permitiriam que afundassem.

Andavam tão absortos em sua conversa — e tão devagar — que depois de quase meia hora de caminhada, a água mal chegava em suas cinturas. Desconfio que seguiriam assim, sem se incomodar com as ondas que os empurravam em sentido contrário; naquele papo e a andar com seu ritmo próprio por horas, dias, semanas, meses… até chegar, quem sabe, à costa Africana.

De repente, quando só se via o vulto dos dois ao longe naquele mar enorme, outra figura roliça, feminina, entrou no mar veloz e decidida, enfrentou as ondas e foi na direção deles.

Pela distância e o barulho do mar não consegui ouvir a conversa que se seguiu quando ela finalmente os alcançou, mas pareceu que rolou bronca!!!

Eu a vi gesticulando, falando alto e apontando para a praia.

O mais velho, talvez seu pai, voltou na frente. O não tão novo, provavelmente seu marido, veio resmungando, puxado pela mão. Contrariados, mas resignados.

Quando chegaram mais perto da praia ainda consegui ouvi-la dizendo:

— “Oxi!!! Que p… de África??? Hoje é Páscoa, dia da família passar junta!!!”

sábado, 25 de junho de 2022

Get Away Stink!!! The Fight Between Nose and Toes

  “Madam Head, Madam Head,” called the always talkative Miss Mouthy.  “We have a big problem, and you need to find a solution!”
“What happened, Miss Mouthy?” responded Madam Head patiently, who always had to find a solution for each big problem.
“It is Nase, I mean Mr. Nose, he got into a fight with Mr. Fivetoes!”
“With the right or the left one?”
“With both of them, Madam Head!”
“How come, with both of them? What was it about?”
“Nase said that he could not stand the stink of Mr. Fivetoes anymore. Then Mr. Fivetoes got offended and said that he would not take Mr. Nose anywhere anymore. But if he doesn’t take Mr. Nose… we can’t go anywhere either!”
“True, Miss Mouthy. This is a BIG problem!”
“And you need to find a solution!”
After Miss Mouthy’s report, Madam Head started to think about how to solve the issue. First of all, she talked to Mr. Ear, who always listens to you. After explaining the situation, she asked him, “So, Mr. Ear, what do you think we can do?”
“Hummmmm.”
“So, Mr. Ear?”
“Hummmm... See, I hear and understand, it really is a big problem.  I am a good listener, but was never good at finding solutions. I don’t know how to help you in this stressful moment.”
After a little more thinking, Madam Head agreed and went to find others that might help her in this matter.
She found the twins Right Eye and Left Eye on the way.
Even before Madam Head told them again about the fight, they answered together in unison, “We saw all that happened and because we are close to him, we support Nase, or Mr. Nose. After all, he is the one that smells the stink. But we also know that without Mr. Fivetoes, we can’t go anywhere. So, we’d like to sit aside and refrain from stating an opinion.”
“I understand,” said Madam Head and she kept going, still trying to figure out the problem.
All of a sudden, she had a brilliant idea; she talked first with the skillful Hand sisters and then called everybody interested to a meeting.
As expected, all the body members attended the meeting, and Madam Head took the floor, “Fellow companions of my whole life, I had learned about what happened between Mr. Nose and Mr. Fivetoes, and agreeing with them both, actually with all three of them, that each one of them makes a good point, I feel I have a solution that might please us all.”
Before she could continue, Mr. Fivetoes yelled, “I don’t want a solution, I want to be as far as I can from the rude Mr. Nose!”
“And I don’t want to feel that stinky smell!!” responded Nase.
“Calm down, calm down…” Miss Mouthy intervened.
 “Gentlemen,” continued Madam Head, “this quarrel of yours harms us all in this body. We cannot and do not want to live without the others – without Mr. Nose we cannot breathe or smell anything, without Mr. Fivetoes we cannot go anywhere.”
“Or walk, run, jump…” said Mr. Fivetoes, the right one.
“Or score goals!” concluded Mr. Fivertoes, the left one.
“But without breathing no one can do anything!” said Mr. Nose with disdain.
“Hence we need a solution for everybody!” Madam Head interrupted vigorously.
“And that will be…?” Miss Mouthy asked.
 “Look, thinking together with the Hand sisters, we decided on the following: Any moment that Mr. Nose gives the alert of the stink, the left Hand sister will meet him and close his nostrils, while the right Hand sister executes a good washing procedure with Mr. Fivetoes, both of them, to clean away the bad smell. And, of course, Miss Mouthy, you will help with the breathing while the washing lasts. The Right Eye and Left Eye twins will oversee the operation. If everybody helps and acts in a coordinated way, we will soon solve this problem. What do you think?”
There was a three-and-a-half-second silence that seemed an eternity.
“Well… a bath with a perfumed soap is not bad at all,” said Mr. Fivetoes, the Right, breaking the silence.
“It is important to dry us well, too,” said Mr. Fivetoes, the Left.
“Don’t squeeze me too hard when closing my nostrils,” grumbled Mr. Nose.
And everybody cheered and applauded the solution to the big problem.
Even Mr. And Mrs. Ear, usually cautious, showed their approval by swinging the earlobes.
“You got it again, Madam Head, now, we are all happy!!” said Miss Mouthy.
“Let’s party, then!! Djs, be ready!!” Miss Head, excited, called.
The Hand sisters took over the sound and everybody sang and danced altogether to the hit song, loved by all:
“Head, Shoulders, Knees and Toes,
 Head, Shoulders, Knees and Toes,
Eyes, Ears, Mouth and Nose,
Head, Shoulders, Knees, and Toes!!”

Sai Chulé!!! A Briga do Nariz com o Pé

 - Dona Cabeça, Dona Cabeça, chamou a sempre falante Madame Boquinha, temos um problemão e a senhora precisa achar uma solução!
- O que foi, Madame Boquinha? Respondeu pacientemente Dona Cabeça, que sempre tinha que achar solução para todo problemão.
- É Nose, o Seu Nariz, ele brigou com o Seu Pé!
- Com o direito ou o esquerdo?
- Com os dois, Dona Cabeça!
- Com os dois? E por que foi que eles brigaram?
- Porque o Nose disse que não aguenta mais o chulé de Seu Pé! E Seu Pé ofendido, disse que não vai mais levar o Nose para lugar algum, mas se ele não leva o Seu Nariz… nós também não poderemos ir!
- É verdade, Madame Boquinha, esse é um problemão!
- E a senhora precisa achar uma solução!!!
Depois do relato de Madame Boquinha, Dona Cabeça pôs se a pensar em como resolver tal questão. Primeiro foi conversar com Seu Orelha, que era sempre um bom ouvinte. Após explicar a situação, ela perguntou:
- E então, Seu Orelha, o que acha que podemos fazer?
- Hummmm.
- Seu Orelha?
- Hummm… Veja bem, ouço e compreendo, realmente é um problemão. Eu sou um bom ouvinte, mas nunca fui bom para achar uma solução. Não sei como ajudá-la nesse momento de tensão.
Pensando bem, Dona Cabeça lhe deu razão e saiu a procura de outros, que pudessem ajudar naquela questão.
Achou pelo caminho os gêmeos Olho Direito e Olho Esquerdo.
Antes que Dona Cabeça contasse de novo a história da briga, eles responderam em coro e jogral:
- Vimos toda a briga e pela proximidade e amizade, apoiamos o Nose, Seu Nariz, afinal é ele que sente o cheiro ruim, mas sabemos que sem o Seu Pé, não vamos a lugar algum. Logo, preferimos assistir de camarote e não emitir opinião.
- Compreendo, disse Dona Cabeça, e seguiu pensando em como poderia resolver aquela situação.
De repente, teve uma brilhante ideia, conversou primeiro com as hábeis irmãs Mãos e convocou todos os interessados para uma assembléia.
Todos os membros do corpo, como não poderia deixar de ser, compareceram e Dona Cabeça pediu a palavra:
- Companheiros de toda uma vida, sabendo do desentendimento ocorrido entre Seu Nariz e  Seu Pé e concordando que os dois, aliás, os três, tem sua dose de razão, acho que encontrei uma solução que pode agradar a todos.
Antes que prosseguisse, Seu Pé, o esquerdo, gritou:
- Eu não quero nenhuma solução, quero é ficar longe desse mal-educado do Nose!!!
- E eu que não quero ter que sentir seu mau cheiro!!! Retrucou Seu Nariz.
- Calma, calma… interveio Madame Boquinha.
- Senhores, continuou Dona Cabeça, a briga de vocês prejudica a todos nesse corpo, não podemos e nem queremos viver uns sem os outros, sem o Seu Nariz não podemos respirar, nem sentir o cheiro das coisas, sem o Seu Pé não podemos nos locomover…
- Andar, correr , saltar… Disse o Seu Pé, o direito
- E marcar Gols!!! Completou o Seu Pé, o esquerdo.
- Mas sem respirar ninguém faz nada!!! Desdenhou o Seu Nariz.
- Logo, precisamos de uma solução boa para todos!!! Interrompeu enérgica a Dona Cabeça.                                         
- E qual seria? Perguntou Madame Boquinha.
- Vejam, mais cedo conversando com as irmãs Mãos pensamos no seguinte. Em qualquer momento que o Seu Nariz der o alerta chulé, a mana Mão esquerda vai ao seu encontro e tampa suas narinas, enquanto isso a mana Mão direita efetuará um bom procedimento de lavagem no Seu Pé, nos dois,  para espantar o mau cheiro. E claro, Madame Boquinha, enquanto durar a ação, você ajuda na respiração. Os gêmeos, Olho Direito e Olho Esquerdo, supervisionam a operação. Se isso acontecer de maneira coordenada com todos colaborando, logo resolveremos o problema. O que vocês acham???
Fez se um silêncio de três segundos e meio, que parecia uma eternidade.
- É… um banho com um sabonete perfumado não é nada mal. Disse o Seu Pé, o direito, quebrando o suspense.
-  Enxugar bem a gente é importante também!!! Disse o Seu Pé, o esquerdo.
- Só não me aperte muito quando tamparem minhas narinas, resmungou Nose.
E todos vibraram, aplaudindo a solução do problemão.
Até o Seu Orelha e sua senhora, normalmente comedidos, demonstraram aprovação balançando
os lóbulos!
- A Senhora conseguiu de novo Dona Cabeça, agora estamos todos felizes!!! Disse Madame Boquinha.
- Então vamos comemorar!!! A postos "Djs"!!! Chamou a entusiasmada Dona Cabeça.
As irmãs Mãos assumiram o comando do som e todos cantaram e dançaram muito, a música que era o “hit” preferido da galera:
“Cabeça, Ombro, Joelho e Pé
Cabeça, Ombro, Joelho e Pé,
Olhos, Ouvidos, Boca e Nariz,
Cabeça, Ombro, Joelho e Pé!!!”

Aka Tombo (O Vestido, Parte 2)


O Limbo

A ausência do vestido deixou um vazio não preenchível, inexplicável pela razão.
Um grande Nada pareceu envolvê-lo e a alegria de seguir naquele caminho desapareceu. Ele olhava ao redor e tudo parecia perder a nitidez. Foi tomado por uma sensação nauseante, por uma vertigem incontrolável.
Ela seguiu correndo, nua como Eva, banida do Paraíso. Não percebia o quanto corria e nem como se embrenhava mais e mais no Desconhecido. Não dançava mais ao Som do Mundo, não mais sentia ou ouvia a Sinfonia da Vida e começou a ser envolvida pelo grande Abismo devorador que, inesperadamente, apareceu para os dois.
Abrigou-se entre as árvores de uma pequena floresta com medo de predadores à espreita, da escuridão que crescia dentro de si e das nuvens pesadas que transformavam o dia em noite.
Assim foi naquele dia e no outro e outro mais...
Apesar da sequência dos dias, parecia que o tempo continuava estacionado. Estavam distantes, cada um encolhido em sua estranha inércia. A fome, o frio e o medo crescente eram companheiros fiéis enquanto permaneciam perdidos naquele vão em que se encontravam. A chuva também se fazia presente, encharcando seus corpos e almas. O Abismo espreitava, esperando que o desespero se tornasse insuportável e os fizesse desistir, para então poder devorá-los.
 
O Dragão

Era ainda o terceiro dia quando algo diferente aconteceu:
Dissipando as nuvens, surgiu um lindo Dragão, brilhante como o Sol! Era um daqueles dragões orientais, que voava serpenteando, sem asas. Trazia ele uma grande surpresa: o vestido perdido revoava em suas costas, parecia a capa de um deus!
Ele avistou o dragão com o querido vestido estampado e então, em um esforço hercúleo, conseguiu sair de dentro do Nada, recuperando sua vitalidade e suas memórias recentes do limbo. Soltou um longo assobio, que quebrou o silêncio e chegou ao Dragão, que o avistou, desceu e pousou junto a ele. Então, sem medo, ele deu um longo e forte abraço nessa radiante criatura, como se a conhecesse de tempos ancestrais.
Logo depois, voavam ambos, ele cavalgando o Dragão pelo céu. Flutuaram, subiram e voaram bem alto, procurando pela dona do vestido.
Passaram-se algumas horas até que, pouco antes do entardecer, de seu esconderijo, ela avistou o Dragão, que voava próximo, e seu cavaleiro, que balançava o seu vestido como uma bandeira. Sentiu a esperança brotar novamente dentro do seu ser. Saiu da floresta sem se importar com a sua nudez, caminhou trôpega, caiu de joelhos e chorou agradecida.
Ele a avistou, aproximou se veloz, saltou do Dragão, ergueu-a com cuidado e lhe entregou o vestido.
Enquanto ela se vestia, reparou em sua beleza natural e recordou a magia de cores, sons e sensações que ocorria quando ela e o vestido estavam juntos. As libélulas vermelhas contra o fundo azul brilharam nessa hora e já não estavam apenas na estampa. Foi com lágrimas nos olhos que ela sentiu aquele vibrante inseto místico pousar rapidamente em seu ombro e logo esvoaçar ao seu redor. Recordou de um sonho recorrente em sua infância, um sonho lindo em que vivia em outra terra e ouvia sua vó contar da tradição das libélulas vermelhas que protegiam todas as mulheres de sua família.... mas em que tempo, em que lugar teria sido isso? Ele viu suas lágrimas, sentiu sua emoção, mas não quis perguntar nada. O momento era de silêncio e reverência.  
Eternamente agradecidos, despediram-se do Dragão que havia recuperado o vestido e lhes ajudara a ter novas percepções e aprendizados sobre a Vida, o cada um e o Todo. Logo aquele ser mágico e imaginário levantou voo, deixando rastros de arco-íris pelo céu.
Acompanharam o Dragão com o olhar até ele finalmente desaparecer no azul infinito. Então, pela primeira vez, os dois se olharam, olhos nos olhos, e suas almas se encontraram. Uma explosão muda ocorreu, com a troca de um mundo de sensações. Naquele pequeno momento infinito, as peças se encaixaram, a Esperança triunfou e o Abismo devorador se fechou. Muitas perguntas obtiveram respostas e outras tantas deixaram de importar. Sentiram empatia, acolhimento, desejo e paz.
 
Aka Tombo

Abraçavam-se terna e intensamente, gerando uma onda de energia que trouxe de volta as flores com seu perfume, o canto dos pássaros, o balanço dos galhos ao vento e a suave brisa que misturava os seus cabelos. O Som do Mundo ressoava! A Sinfonia da Vida voltou!
Ela o convidou para dançar e, mesmo sem jeito, ele aceitou.
Naquele momento ele percebeu que o encanto maior só se realizava quando os três estavam juntos. Ela, ele e o vestido! Cada um com a importância de ser parte, mas o todo sendo muito mais significativo do que a soma das partes. A Mágica se realizou em sua plenitude, estavam unidos, mais juntos do que nunca!
Ele a segurou com mais força colando o corpo dela ao seu.
E assim seguiram, cheios de coragem e disposição para caminharem juntos, descobrindo e desbravando novos caminhos, enfrentando medos, sem soltarem as mãos e guiados pelo vestido. As libélulas vermelhas no céu do entardecer anunciavam o final de mais um dia.
 
P.S.: Esse texto foi escrito em Co-autoria com Ástrid Schein Bender 
        Aka Tombo significa Libélula Vermelha em Japonês.

"Staying Alive!!!"




"Nãaao!!! Não podia ser verdade!!! De tantas mentiras e ameaças infundadas proferidas por aquele ser desprezível, inominável*, por que logo aquela tinha que se tornar realidade???"
O desespero e a revolta tomaram conta de seu ser enquanto ele olhava incrédulo a sua imagem refletida no espelho.
No dia anterior tinha tomado mais uma dose da vacina contra o vírus, que assolava o planeta e, apesar de odiar injeções, ele era pela Ciência e pela Vida acima de tudo. Abaixo os Negacionistas!!!
Passou o dia meio febril, com calafrios e náuseas, fora o braço dolorido. Mas à noite, durante o sono, a febre aumentou. Teve pesadelos e alucinações. Sonhou que Mutano*, dos Jovens Titãs, ironicamente lhe dizia: “É, no dos outros é refresco!!! Experimenta no seu agora!!!”
Acordou de sobressalto, vendo que sua pele adquirira uma coloração cinza esverdeada. Ainda zonzo, tropeçou, derrubou vários objetos no caminho e correu para o espelho.
Trincou o espelho chocando-se contra ele, pois, ao se aproximar, não tinha noção do tamanho de sua boca. Ou seria focinho??? Incrédulo, tentou coçar os olhos, mas viu que seus braços estavam mais curtos do que o habitual. E esse contrapeso que sentia atrás??? Era uma cauda!!! Uma cauda enorme!!!
A imagem que via refletida no espelho, de um pesadelo do qual não conseguia despertar, era, sem dúvida, a de um… Jacaré!!!
Com certeza uma reação, um efeito colateral, mas temporário, duradouro ou permanente???
Uma maldição???
Ele passou horas pensando, preocupado, tentando não sucumbir ao desespero. Andando de um lado para outro, tentava com esforço manter-se equilibrado nas duas patas traseiras com a ajuda da cauda. Ficar em posição ereta lhe dava a sensação de ainda conservar resquícios humanos. Quando cansava, a cauda não lhe permitia ficar sentado e, deitado, só podia de bruços. E ficar de barriga pra cima lhe conferia um incontrolável sentimento de vulnerabilidade.
Quando sentiu fome, comeu pedaços de frango cru com ossos, sem se importar em temperá-los ou cozinhá-los. Sua boca enorme despedaçou tudo com uma voracidade assustadora!!!
Chorou sentindo nojo e pena de sua condição reptiliana.  
Se ao menos existisse um Dr Curt Connors* na vida real, poderia existir um antídoto.
Pensou em falar com alguém, mas quem poderia ajudá-lo??? Sua mãe entraria em pânico, seu melhor amigo, ia achar que era um trote, sua ex, que era um pretexto pra falar com ela, e sua terapeuta estava de férias…
E se a ABIN, a CIA, a KGB, os MIB*… estivessem monitorando as suas ligações??? Talvez eles tivessem injetado um chip com a vacina para poder segui-lo.
De repente poderia chegar uma "turma" toda equipada e dar sumiço nele!!! Depois fariam testes e mais testes!!! Talvez no final acabasse virando uma bolsa. Pensou em acessar o Google, no celular, para saber das leis de proteção aos jacarés, mas seu focinho longo e os bracinhos curtos inviabilizaram a tentativa.
Ele começou a fazer exercícios de hiperventilação, respirando longa e pausadamente para tentar evitar que o pânico tomasse conta da situação.
Algum vizinho próximo ouvia os "Bee Gees" cantando “Staying Alive” em alto volume. Naquele momento, para ele, a música soava como uma trilha irônica de um filme de terror.
De repente ouviu ruídos no apartamento vizinho, cuja janela dava para a sua.
A moradora do apartamento era uma morena bonita, enigmática, com ar meio blasé, que nunca se relacionou com ele, além dos bom dias ou boa noites, ao se cruzarem no corredor ou elevador do edifício onde  moravam. Nunca lhe direcionou o olhar, muito menos um sorriso.
Sua vizinha costumava andar nua ou em roupas íntimas pela casa sem nunca se importar com a existência ou não de olhares curiosos, os dele inclusive.
A cortina!!! Ele esqueceu a cortina aberta!!! Desajeitado, correu para fechá-la.
Após o momento de pavor de poder ser descoberto, ele espiou o apartamento da vizinha por uma fresta e se deparou com uma figura que tentava desesperadamente fechar a sua persiana emperrada; aliás, nunca fechada por anos. E era, para a sua surpresa, a figura de uma… Jacaré, jacaré-fêmea!!! Sua vizinha também tinha se transformado!!!
Instintivamente, ele abriu a sua cortina revelando a sua forma.
Ela, apavorada por ter sido descoberta, tentou, em vão, se cobrir com a persiana quebrada e ele, tentando acalmá-la, vocalizou um tímido "Oi", mas o que se ouviu foi um grunhido gutural.
Lenta e desconfiada, ela se revelou aos poucos e respondeu com um "Oi" similar, só um pouco mais agudo.
Pela primeira vez, em anos, os dois se olharam nos olhos, sentiram alívio, empatia e emoção, compaixão, talvez com paixão, choraram, sem lágrimas de crocodilo.
Chegar ao apartamento dela em sua nova forma foi um grande desafio.
Eles estavam vivos, vacinados e não estavam sós no Mundo!!!


Inominável: Referente ao Presidente Brasileiro, que governou nos anos da Pandemia de COVID 19.
Mutano*: Herói da DC Comics cujo poder é se transformar em qualquer animal existente ou que já existiu.
Curt Connors*: Personagem da Marvel Comics, cientista que inventou um soro para tentar recuperar seu braço amputado, mas que o transformou no vilão Lagarto.
MIB*: Homens de Preto personagens de filmes de ficção científica, teoria da conspiração, invasão alienígena, baseados em quadrinhos da Marvel.
O Grande Barato da Vida é Viver!!!

Belíssima!!!

 

14:30h Escritório de Isabela
“Alô?”
“Alô… Oi, Belinha! Sou eu, Pedro Ern…”
“Pedro Ernesto!!! O que você quer??? Já falei pra você não ligar no telefone da empresa!!!” Sussurrou Isabela, mas já querendo gritar com ele.
“Mas Belinha, se eu ligo no seu celular, você não atende…” Respondeu, contrariado, Pedro Ernesto.
“Não interessa, não atendo mesmo!!! Me respeita, Pedro Ernesto, eu estou Tra-ba-lhan-do!!! Tchau!!!”
“Não, Belinha! É importante!!! Pera, Belinha!!! Não desli…”
Tu-tu-tu-tu…
15h Escritório de Isabela
“Alô???”
“Oi, Belinha…”
“Não acredito, Pedro Ernesto!!! Vai procurar o que fazer!!!”
“Belinha, por favor! Só me ouve… Só ouve!!! Um pouquinho, vai???”
“O que é? Te dou trinta segundos!!!”
“Trinta segundos? Mas é muito pouco!!! Não pode ser um pouquinho mais???”
“Vinte segundos…”
“Mas Belinha…”
“Dez…”
“Pô, vc já foi mais legal comigo…”
“Seu tempo acabou!!!”
Tu-tu-tu-tu…
16h Escritório de Isabela
“Alô???”
“Olha pela janela, Belinha!!!”
“O que é, Pedro Ernesto???” Respondeu Isabela, já sem paciência.
“Olha, vai… Vc não vai se arrepender!!!”
“Ai, Pedro…”
Bela foi até a janela e pela fresta da persiana olhou lá pra baixo.
“Tá me vendo, Belinha???”
“Tô… O que é???”
Ele mostrou uma rosa vermelha que mantinha escondida nas costas e disse:
“É sua, vem buscar!!!”
“Me poupe!!! Você quer que eu saia no meio do trabalho pra pegar uma rosa??? Não esqueça que é esse emprego que paga as minhas contas e as de seu filho também!!!”
“Pô, mas é com tanto carinho…”
“Pedro Ernesto, qual é o seu problema? Em que confusão você se meteu? Por que cê tá me assediando desse jeito???”
“Confusão nenhuma, Bela. Só preciso conversar com você. É importante!!! Desce aqui, vai???”
“Ai, Pedro Ernesto…”
“Por favor…”
16:15h Café da esquina
“Pra você!!!” Disse ele oferecendo a rosa murcha.
“Tá, obrigada! Desembucha, Pedro Ernesto! Eu só tenho 15 minutos!!!”
“Calma Belinha!!! O assunto é delicado e tem que ser tratado com muito respeito!!!”
“Sim, e qual é o assunto???”
“Você tá malhando? Tá bonita, hein???”
“Sempre fui!!!" Realmente, Isabela era uma mulher bonita, chamativa e bem cuidada.
“Como vai o Pedrinho???”
“Vai bem e não é graças a você!!!”
“Que grosseria…”
“Olha, se vc quer saber de seu filho liga pra ele!!! E aproveita e explica porquê você sempre atrasa a pensão!!!”
“Mas eu paguei outro dia!!!”
“Sim, outro dia, depois de seis meses sem pagar!!! Quer saber??? Chega!!! Fale com o meu advogado!!!”
Bela fez menção de se retirar.
“Não, por favor! Calma!!! Eu só estou tentando quebrar o gelo. Isso é só uma introdução!!!”
Bela sentou de novo, mas com sua paciência por um fio.
“Sabe Bela, não sei como começar…
Respirou fundo e… mudou de assunto.
"Mas, aliás, esse seu advogado é muito antipático!!! Nada razoável!!!”
“Antipático pra você, não pra mim! Ele é ótimo!!!” Respondeu Bela com um certo sarcasmo provocativo na voz.
“Como assim??? Ele é algo seu, Isabela???”
“Isso não é problema seu!!!”
“Como não??? Isso é antiético!!!”
“Antiético??? Como assim???”
“Conflito de interesses!!! Se ele tem um envolvimento com você ele não vai ser imparcial. Não vai ser justo!!!”
“Que imparcial??? Ele é meu advogado, não seu!!! E agradeça, vc só não vai preso porque seu filho pediu. Chorou por você!!!”
“Foi mesmo???”
“Foi…” Disse Bela com um certo arrependimento de ter mencionado o fato.
Pedro ergueu as mãos para o céu e falou alto chamando a atenção de todos no Café:
“Obrigado, filho!!! Vida de ator é uma merda!! É cada humilhação …” Seus olhos não disfarçavam uma certa umidade.
Depois de uma pausa continuou:
"Mas Bela, se puder, troca esse advogado. Ele não é de confiança, não te merece!!!”
“Tá maluco??? Você tá é com ciúme!!!”
“Ciúme, eu? Desse otário??? Hahhahahahaha Você tá louca!!!”
“Bom acabou o seu tempo!!!!”
Bela levantou, mas ele a segurou pela mão.
“Não, por favor! Só mais cinco minutos…”
Ela se soltou da mão dele e sentou novamente.
“Pra você me deixar em paz. Só mais cinco minutos!!!”
“´É o seguinte, nem sei por onde começar…”
“Pelo começo e termine logo…”
“Sabe aquelas fotos, aquele ensaio que você fez há 12 anos???”
“Sim, minhas fotos nua!!! Antes de Pedrinho nascer…”
“Essas!!! São lindas!!!”
“Você achou??? Eu procurei tanto…”
“Sim, achei. Na verdade, eu escondi pra você não levar na separação…”
“Seu sacana, mentiroso!!! Disse que não sabia onde elas estavam!!!”
“Sim, desculpe! Mas é que elas são muito importantes pra mim!!!”
“Eu quero minhas fotos!!!”
“Eu sei, por isso eu quis conversar. Estava me sentindo culpado…”
“Que bom! Então devolva as minhas fotos!!!”
“Mas você deu pra mim! Foi um presente!!!”
“Sim, mas foi em outro contexto!!! Pedro, sou eu nas fotos, meu corpo!!!”
“Mas é por isso que eu queria me desculpar e pedir sua permissão…”
“Permissão? Permissão pra quê???”
“É difícil falar, mas estou confiando em você. Espero que não use isso contra mim…”
“Usar o que, Pedro???”
“Sabe, eu só consigo olhando suas fotos, imaginando você…”
“Consegue???”
“É…” respondeu ele, meio sem jeito, fazendo o gesto de ereção com o braço.
“Você é doente, Pedro Ernesto!!! Vá fazer terapia!!!”
“Eu já tentei… terapia, outras mulheres, namoradas, até profissionais, mas só rola "com você"!!!”
“Pare!!!” Bela cruzou os braços na altura dos seus seios "turbinados"em uma atitude de defesa.
“Pedro, faz 2 anos e 7 meses que estamos separados. Siga sua vida!!! Não quero você infeliz, não mesmo. Mas não aceito essa ligação doentia com você!!! Quero minhas fotos de volta!!!"
“Mas Belinha, quero sua permissão, por favor… Eu preciso das fotos, eu não consigo de outra maneira, é uma questão de saúde!!! E tem mais uma coisa que eu preciso te…”
“De saúde mental???”Interrompeu Isabela, já com fogo nos olhos e na língua!!!
"Não permito nada!!! Não autorizo, entendeu??? Se você não me devolver as fotos, eu processo você e conto tudo para o seu filho, seu "punheteiro"!!! E não tire cópias!!!”
“Isabela, por favor, eu não terminei…”
Dessa vez ela se levantou e realmente foi embora!!!
10:15h (Dois dias depois) Escritório de Isabela
Bela recebeu um envelope de um remetente anônimo em seu trabalho, trancou a porta de sua sala pra evitar algum colega bisbilhoteiro e abriu com cuidado. Eram as fotos!!!
As fotos, agora espalhadas sobre sua mesa, eram em preto e branco, de bom gosto, bem produzidas, um nu ousado, revelador, mas sem “baixarias”.
Quinze fotos!!! Estavam todas lá.
Doze anos atrás, ela fez aquele ensaio erótico como presente de primeiro aniversário de casamento para Pedro Ernesto.
Bela sentiu saudades daqueles tempos, quando aquela recém formada jornalista se apaixonara pelo ator da peça que foi assistir. Aquelas fotos retratavam aquela época. Retratavam aquela paixão avassaladora, que se perdeu no tempo. Na verdade, ela achava que Pedro é que se perdeu no tempo, que o ator sonhador não evoluiu, não se atualizou, e não soube acompanhá-la.
Junto com as fotos, dentro do envelope, havia um pedido de desculpas de Pedro Ernesto, pelo que ele tinha contado para ela e pelo que não tinha conseguido contar.
O celular de Bela tocou, era seu advogado, novo namorado .
Ela não entendeu nada, ele estava possesso, nervoso, querendo terminar a relação, dizendo que recebeu um link do OnlyFans de um anônimo. Ele mandou o link para ela, perguntou como ele iria justificar para a sua mãe, filha e os seus amigos, e desligou!!!
Ela abriu o link curiosa e descobriu que a dona da conta era uma tal de “Belíssima”, ou seja, para sua grande surpresa, ela mesma!!! A conta exibia aquelas fotos que ela acabara de receber.
Com certeza isso era obra de Pedro Ernesto!!!
Serviu-se de uma dose tripla de whiskey com gelo e teve uma crise histérica de gargalhadas enquanto olhava o "seu perfil" no OnlyFans.
Será que Pedro fez aquela conta pra espantar o advogado ou já vinha faturando algum dinheiro em tempos de crise??? A pensão de Pedrinho que ele finalmente pagou… Será???
Agora ela era a musa de outros onanistas pelo mundo, além de Pedro Ernesto, graças ao próprio.
Bela abriu a janela de seu escritório para poder respirar, sentiu se envergonhada, humilhada, o suicídio lhe passou pela cabeça, mas pensando em Pedrinho, logo desistiu, fora que o seu andar não era tão alto e se saltasse poderia não morrer e passar o resto da vida sequelada. Não, não era a solução!!!
Também não adiantaria só cancelar a conta, pois muitos já tinham o direito à suas fotos por assinatura, poderiam ter copiado, e isso poderia gerar um processo que se arrastaria por décadas. Qual seria a solução???
Tomou alguns goles de whiskey e sentiu até uma ponta de orgulho por poder ser admirada, desejada, por muitos. Dezenas, centenas, milhares, talvez.
Tomou outros goles de whiskey, pegou o celular, e cheia de coragem, resolveu ligar.
“Pedro Ernesto, você é um grandessíssimo filho da puta, mas vou lhe fazer uma proposta.
Ou eu acabo com você no tribunal e seu filho vai saber o pai canalha que ele tem, ou…
Eu quero 60% do que render o OnlyFans!!! E essa proposta só vale hoje!!! Amanhã sobe pra 70%!!!”
Ela resolveu virar o jogo, ou seja, já que entrou involuntariamente na chuva, vai ser a sócia majoritária do vendedor de guarda chuvas.