domingo, 6 de fevereiro de 2022

Kora e Zé (E Deus Existe???)


 Naquela noite chuvosa de domingo, quando acabou a luz (e acabou por muito tempo), Kora acendeu algumas velas em círculo no chão da sala. Sentou-se, então, no centro, acompanhada de meia garrafa de vinho tinto seco (ou seria um Prosecco?) que havia sobrado da noite anterior e gastou longos minutos em vão tentando apagar as velas com o poder do pensamento.
Ela acreditava que a fé podia mover montanhas, mas a sua fé era no ser humano. Kora não acreditava em Deus.
Mesmo falhando em sua demonstração de poder telecinético, preferiu não gastar o restante de bateria do seu celular. Nem conversando com amigos, que tinha poucos, e, menos ainda, com sua mãe, que falava muito e ia se preocupar à toa com a prolongada falta de luz. Poderia precisar do telefone para uma emergência. Kora sempre se preocupava com emergências, com as coisas que não conseguia controlar.
Kora morava só. Só ela e Bela, sua gata, preta como a noite mais escura, que se escondeu com medo dos trovões.
Parecia que todo o bairro, talvez toda a cidade, estava sem energia elétrica.
A escuridão não incomodava Kora, ela sempre preferiu a noite em vez do dia. Definitivamente, ela não era uma pessoa solar, mas as janelas, fechadas por causa da chuva, causavam uma sensação claustrofóbica. E as velas acesas, junto com o vinho, aumentavam a sensação de abafamento e desconforto no ambiente.
Aliás, o vinho acabou.
De repente: “Toc, toc, toc…” alguém bateu em sua porta!!!
Kora ficou em silêncio.
“Toc, toc, toc…” a batida se repetiu!!!
— Quem é???, perguntou sem sair do lugar, em um misto de curiosidade e medo.
Não tinha luz, não tinha campainha!!!
Caminhou sorrateiramente, tentando não fazer barulho, naquele apartamento antigo com o chão de tacos de madeira encerados e cheio de sons estranhos!!!
Tentou ver pelo olho mágico quem é que estava a bater. Mas estava escuro lá fora, não havia luz no corredor e não dava para ver ninguém.
“Toc, toc, toc…” de novo!!! Kora deu um pulo para trás e, com a voz falhando, perguntou: — “Que-que-quem é???”
Pensou que poderia até ser Pérsio, seu ex, que depois de três meses sumido, teria vindo pedir perdão, querendo voltar.
Uma voz masculina interrompeu seus pensamentos.
— Desculpe, eu sou…
— Eu sou??? Repetiu Kora.
— Acredite…
— Em quem???
— Acredite…
— Só se você falar quem é!!!
— Kora, eu sou… Deus!!!
— Deus??? Mas eu não acredito em Deus!!!
— Eu sei, por isso estou aqui.
— Olha, eu não tô gostando dessa brincadeira!!! Vai embora ou eu chamo a polícia!!!
— Você só tem 5% de bateria no celular e a polícia está cheia de emergências nessa chuva. Eles não vão vir te ajudar porque você está conversando com Deus.
Kora olhou para o seu celular e viu que só restava mesmo 5% de bateria!!!
— Como você sabe da bateria do meu celular???
— Eu sou Deus, sei de tudo!!! Até coisas que eu não gostaria de saber.
— Mentira!!! Deus não existe!!!
— Existo sim. E estou aqui. Ah, e trouxe uma garrafa de vinho, que o seu acabou. Respondeu com toda a calma do mundo.
Kora hesitou, como ele sabia do vinho??? Será um vizinho voyeur? Mas, de certa maneira, aquela voz lhe soava familiar e passava uma certa confiança.
A curiosidade falou mais alto:
— Sr. Deus, ou seja lá quem for, afaste-se dois passos da porta! Não, três passos!!! Afastou???
— Kora, o corredor só tem três passos, estou grudado na porta de seu vizinho da frente.
Sem tirar a correntinha de segurança, com uma vela na mão, Kora olhou pela fresta da porta.
Ainda estava escuro, mas o ser lá fora aumentou sua luminosidade para poder ser visto.
— Melhor assim?
— Zéééééé!!! Gritou Kora, reconhecendo a figura no corredor e abrindo a porta.
— Pô Zé, que susto que você me deu!!! Brincadeira de mau gosto!!! Quase fiz xixi nas calças!!! Entra aqui. Você tá todo molhado!!!
Zé era um morador de rua para quem Kora sempre levava comida e com quem “batia altos papos” filosóficos.
— Mas Zé, como você sabia do vinho e do celular??? E o truque do “Vagalume” no corredor??? Disse enquanto era presenteada com a garrafa de vinho.
— Obrigada!!! Ih Zé, você tá cheirando a “cachorro molhado”, melhor você tomar um banho, pode se gripar!!
— Desculpe, era o único “ser disponível” nas redondezas. Comentou meio sem jeito.
Kora levou Zé para o seu banheiro e foi tirando suas roupas velhas e molhadas.
— Essas roupas vão para o lixo. Vou pegar umas roupas que o Pérsio, meu ex, “esqueceu” para você. A água tá fria porque não tem luz, tá? Mas pode usar meu shampoo.
Só quando saía, Kora "se tocou"que viu o Zé pelado! 
Quando voltou com as roupas, encontrou seu banheiro cheio de vapor.
Zé respondeu como se lesse seus pensamentos:
— Odeio banho frio!
As roupas de Pérsio ficaram um pouco largas no corpo magro de Zé.
Chegando na sala, Kora comentou:
— Está abafado aqui, né? Mas não dá para abrir a janela, senão entra chuva.
Zé fez um gesto com as mãos, como se empurrasse a chuva em outra direção e abriu a janela. Nem uma gota de chuva molhou a sala.
Kora caminhou até a janela sem acreditar no que tinha acabado de testemunhar.
— É algo parecido com o que você estava tentando com as velas. Disse Zé.
Kora pegou mais uma taça e se sentaram nas almofadas do chão.
— Zé, agora me explica tudinho!!! Como você faz essas coisas??? Você é um super-herói, um ET???
— Eu sou Deus.
— Ah! Para com isso, Zé!!! Deus não existe!!!
— Será? Então você está delirando?
— Pode ser. É bem provável!!!
— Então me explica…
— Explica você!!! Você não é Deus???
— Ah, então eu existo!!!
— Não, não existe!!!
— Hahahahahahaha!!!
Zé serviu o vinho e continuou:
— Eu explico, livre-arbítrio.
— Como assim, livre-arbítrio???
— Eu não queria vocês como marionetes, queria vocês com brilho pessoal, tomando suas próprias decisões. Criei o tal do livre-arbítrio. Deixei até vocês decidirem se acreditam ou não na minha existência. Mas o preço foi e é muito alto. O ser Humano não se mostrou preparado para tanta responsabilidade. Faltou equilíbrio!!! Ele se tornou seu próprio câncer!!!
— E por que você não intervém???
— Porque, se eu chegar a intervir, vocês viram marionetes!!! E minhas decisões são irreversíveis!!! O que é pior???
Kora refletiu pensativa, mas sem abandonar seu ceticismo.
Brindaram e saborearam o vinho.
— Que vinho delicioso!!! — Admirou-se Kora.
— Safra particular, Videiras do Éden!!!
Bela, a gata, apareceu e se aninhou no colo de Zé.
— Ela odeia estranhos… comentou Kora.
— Eu sou o pai dela. Respondeu Zé acariciando a gata.
A garrafa de vinho, como que por milagre, voltava a encher toda a vez que esvaziava.
Como Kora continuava dura na queda, difícil de convencer, Zé ainda fez um show de imitações perfeitas, cantando como Freddie Mercury, Maria Callas, Tim Maia, Elvis, e dançando como Michael Jackson e Fred Astaire.
Kora assistiu boquiaberta, estupefata, e aplaudiu como nunca!!!
E depois de muitas garrafas, conversas e risadas, Kora também se aninhou no ombro de Zé.
— Kora, eu existo, viu?
— Humrum, conta outra.
Kora adormeceu.
Na manhã seguinte, a chuva parou, a luz voltou e Kora acordou nas almofadas. Só ela e Bela, nada de Deus ou Zé. A garrafa vazia estava lá, a primeira, e só uma taça usada. Teria sido tudo fruto de sua imaginação???
Como de costume às segundas, Kora saiu para tomar café na casa de sua mãe. De chapéu Panamá, óculos escuros e protetor solar fator 100. Caminhou absorta em seus pensamentos sobre a noite anterior. Afinal, Deus existe ou não???
De repente ela ouviu uma voz conhecida, era Zé com uma alegria incomum:
— Kora!!! Obrigado pelas roupas!!!
 
PS: Tenha Fé!!!