Acordei cedo e saí para andar pela aldeia.
Amanhã, Pradip subiria a montanha para nos levar de volta a civilização, o que me fazia refletir mais ainda sobre divulgar ou não os segredos de “Pedra Sobre as Nuvens” e seu povo.
Passei pelo curral dos yaks, onde as mulheres ordenhavam as fêmeas. Eles utilizavam quase tudo dos yaks: leite, lã, esterco, menos a carne.
Depois caminhei pelas plantações, em forma de grandes degraus, que só eram cultivadas na primavera e verão. Os aldeões usavam a água de um rio que se originava da neve e gelo derretidos no alto das montanhas para irrigar o plantio, aliás essa água era usada para tudo.
Passo por uma jovem mãe, que na frente de sua casa, sobre uma manta, aproveita o sol matutino para fazer exercícios de “rolamento” com o seu bebê, que ainda mal andava. Assim era a iniciação do “povo tatu bola”.
Todos me cumprimentavam no caminho, alguns até sorriam, e isso só me fazia sentir pior. Ou “trairia” os aldeões ou a confiança que Fabrício Quintana, editor da revista Cultura Paulistana (e meu melhor amigo), tinha depositado em mim e em meu trabalho. Publicar uma matéria dessas poderia me proporcionar também grande visibilidade e destaque profissional.
Pela manhã as crianças frequentavam a escola, na casa maior da aldeia, cuja professora era Ashmi, neta de Mama Tamushyo. Ashmi era bela e longilínea, mais alta e diferente do padrão geral dos habitantes da aldeia. Foi conversando com ela (ela falava inglês!!!), que conheci um pouco mais da vida da matriarca da aldeia e sua família.
Mama era muito irrequieta e curiosa quando jovem. Com vinte anos incompletos, ela foi embora da aldeia em busca de um universo mais amplo. Foi para Kathmandu, onde arrumou trabalho na casa de uma família aristocrática, muito rica. Incentivada por eles, aproveitou o tempo disponível para estudar. Sete anos depois, Mama, repentinamente, voltou para a aldeia. Trazendo com ela um bebe de colo, era Sophia, a mãe de Ashmi.
Dizem que o pai de Sophia era o filho caçula da família rica. Existiam versões de estupro e de uma grande paixão, mas de qualquer maneira, Mama e a filha não foram aceitas como membros da família e ela nunca quis falar sobre o assunto.
Usou o dinheiro que guardou, mais a “indenização” dada pela família, para construir a escola da aldeia e comprar o material didático necessário. Mesmo com a rejeição inicial dos mais velhos, a escola provou o seu valor e Tamushyo , sua primeira professora, começou a se tornar, ali, a mulher mais poderosa da aldeia.
Na adolescência, Sophia, foi mandada para a capital para estudar em uma escola de freiras, a “Sacre Coeur de Marie”. Contrariando a vontade de Mama, Sophia se apaixonou por um professor durante a faculdade de medicina e ficou morando em Kathmandu. Mas o professor, pai de Ashmi, veio a falecer em um acidente de carro, no trânsito caótico da cidade e Sophia retornou a “Pedra sobre as Nuvens”. Ashmi, só conheceu a aldeia e sua avó aos nove anos de idade e não sabia rolar, como um pneu, como as outras crianças. Nunca pode participar da competição de verão da aldeia, que era uma corrida “downhill” do “Povo Tatu Bola”. Era alvo de “bullying” por ser magra, alta e incapaz de rolar. Como professora, hoje, era muito respeitada, mas até a adolescência, odiava a aldeia e seu sonho era voltar a viver na capital.
Por falar em rolar, eu tinha feito minhas tentativas junto com Kumar, o maior dos três “meninos pneu” que eu conhecera no nosso primeiro encontro. Ele se tornou o meu melhor amigo na aldeia. Seguindo suas orientações e copiando sua movimentação, coloquei um casaco com capuz do maior morador da aldeia, com reforço na nuca e coluna e tentei rolar ladeira abaixo. Fracasso total!!! Tudo o que consegui foi uma crise de hérnia lombar. O chá e a massagem com mosha bustão de Sophia, mãe de Ashmi e médica da aldeia, ajudaram bastante em minha recuperação. Claro que tomei também os meus inseparáveis analgésicos e desinflamatórios halopáticos.
Encontrei Maritza tirando suas fotos pela aldeia.
- Bom dia!!! Aproveitando a luz da manhã??? Perguntei indo em seu encontro.
- Com certeza!!! E você, caiu da cama??? Ironizou.
- Estou meio ansioso, não consegui dormir bem. Digo alongando as costas, demonstrando um certo desconforto físico.
- É...temos que decidir que fim vamos dar a esse material. Se entregamos tudo, parte ou nada para Fabrício. E temos que decidir juntos, a minhas fotos não podem contrariar a sua matéria.
- Eu sei...de todo jeito vamos enganar alguém. O pior é que acho que como jornalista deveria entregar o trabalho que aceitei fazer...
- Mas a exposição desnecessária da aldeia e suas consequências me incomodam mais. Afirmou Maritza.
Sua convicção chegou a me perturbar, pois eu ainda não tinha conseguido chegar a uma decisão. Senti vontade de argumentar, mas cocei a barba mal feita e disse:
- É... você pode ter razão.
Voltei a caminhar só.
Retorno à cabana para o almoço. Cardápio: arroz, churpi, um queijo de leite de yak e verduras em conserva. Os complementos, palitos de carne seca (corned beef sticks, made in USA), e os saquinhos de pozinho mágico para comer com o arroz (furikake, made in Japan), foram as saborosas contribuições de Maritza à nossa refeição.
Limpei a louça enquanto nossa fotógrafa armava seu carregador solar portátil para recarregar seu equipamento. Não sabendo que contaria com tal tecnologia, deixei o meu notebook em casa e fazia todas minhas anotações por escrito, em um bloco de papel. Maritza me ofereceu seu computador, mas orgulhoso, declinei, fingindo que preferia escrever.
A tarde encontro Kumar e saímos para caminhar.
Eu lhe ensino o nome das coisas em português e ele me ensina em Parbatya*.
Sentamos em uma grande pedra onde ele assobia, e logo, surgido do nada, temos a companhia de seu mascote, o leopardo das neves. O felino deita aos pés do menino e pede carinho como qualquer gato doméstico. Arrisco um primeiro e leve afago e vejo que o grande bichano não me estranha mais. Estar ali naquela paisagem grandiosa, com o “menino pneu” e seu leopardo, mexem comigo e me trazem lágrimas aos olhos. Kumar me pergunta por que choro.
- Paz...sinto muita paz aqui e tenho um grande dilema!!! Respondo sem precisar tentar traduzir e acaricio a cabeça do menino.
De dentro do casaco, tiro um de meus maiores tesouros e dou de presente a Kumar.
- Brazil!!! Football!! Grita o menino.
Era a camisa da seleção brasileira de futebol, campeã do mundo em 2002, com o autógrafo de Ronaldo, o Fenômeno.
- O-bri-go-do!!! Diz Kumar, extasiado.
- O-bri-ga-do. Corrijo.
- Ah!!! Obrigado!!! Repete o menino feliz.
Caminhamos por mais um tempo, com Kumar, já vestindo a camisa amarela, ensaiando jogadas maravilhosas com uma bola imaginária. Dava dribles desconcertantes em seu marcador implacável, o leopardo, e eu como se fizesse parte de uma torcida em um estádio lotado, vibrava e gritava olé.
Vejo ao longe Maritza com sua teleobjetiva, documentando aquele momento.
Até hoje essa foto é o papel de parede de meu notebook.
No dia seguinte Pradip, nosso guia, chega cedo a aldeia.
Temos que aproveitar a luz do sol, a viagem é longa.
Nos despedimos dos habitantes da aldeia com um profundo sentimento de gratidão, por essa experiência ímpar.
Ganhamos várias lembranças e Maritza leva como seu bem mais precioso, um grande saco de estopa, cheio da milagrosa folha “anti-chulé”, presente de Mama Tamushyo.
Na despedida Mama me aconselha:
- You’re a good man. Let your mind follow your heart.
Fico pasmo, como ela sabia do meu dilema???
Ashmi me da um abraço caloroso e um beijo no rosto.
- Gostou, hein??? Cutuca Maritza.
- Estou me sentindo o próprio Humphrey Bogart em Casablanca, respondo.
É hora de ir, subimos nos yaks para a partida.
Alguns aldeões vão até a entrada de “Pedra sobre as Nuvens” acenar, e
as crianças nos acompanham rolando por um trecho em ladeira.
Maritza com os olhos úmidos, não parava de tirar fotos.
Não vi Kumar, sinto sua falta, mas talvez ele não quisesse se despedir.
Uns dois kilometros adiante ouço o chamado de uma voz familiar.
Era Kumar e seu leopardo, em uma encosta lateral, sobre a nossa trilha.
Vestindo a camisa da Seleção Brasileira ele grita a plenos pulmões:
- Gooooool do Brasil!!!!!!!!
Emocionado, levanto o punho e soco o ar, comemorando com ele.
O eco de sua voz ressoa entre as montanhas.
Não tinha mais dúvidas, ali tomei minha decisão.
Parbatya*: língua das montanhas do Nepal