quarta-feira, 3 de março de 2010

São Paulo, 8:37 AM

Lia compenetradamente um livro*, onde um pai desempregado narra sua tentativa de dar uma educação alternativa ao filho através de uma convivência cinéfila intensa. Filho que muitas vezes não se furta de ser sincero, sincero até demais, com seu pobre pai. Não pude segurar o riso no trecho onde ele fala o que achou dos Beatles, arrasando a memória afetiva de seu pai. Tenho duas filhas e sei muito bem como a sinceridade delas pode me desconsertar.
Estava de porta aberta, aliás, cagando de porta aberta, talvez para marcar território.
Com a crise, minha irmã que morava nos EUA voltou para trabalhar no Brasil...e veio morar comigo. Divorciado, antes eu só dividia o espaço com minhas filhas aos finais de semana.
Com certeza, o apartamento estava mais limpo e mais organizado, e poder dividir as despesas era um grande alívio. Mas, no fundo, eu gostava de minha bagunça e sentia essa divisão do ”reino” como uma invasão. Nada pior que ser democrático em sua própria casa, onde muitas vezes as coisas são como são porque você quer assim e não por lógica ou bom senso. Mais por valor afetivo do que valor funcional.
Cada vez que volto de uma viagem à trabalho, algo foi mudado... Parei de questionar para não tornar nossa convivência insuportável.
Minha irmã já tinha saído para trabalhar.
De repente, uma sombra interrompe minha leitura, um vulto na porta do banheiro olha para mim.
O susto vem seguido de uma inversão na corrente sanguínea, que causa vertigem.
Um homem de terno, com um gorro furado, que só deixa à mostra os olhos e a boca. Armado!!!
- Não faça nenhuma besteira e vai ficar tudo bem... Falou em um tom quase amigável.
Fez um sinal com a cabeça, me mandando sair do banheiro.
Constrangido fui me limpar. Ele me deu as costas, para me dar alguma privacidade.
Pensei em reagir, mas ele estava armado... E eu, visivelmente acima do peso, com a calça arriada... “E se ele me desse um tiro???” Imaginei uma equipe, estilo CSI (Crime Scene Investigation), examinando meu cadáver, caído, com a bunda de fora. De fora e suja...Desisti!!!
Ainda ouvi seu comentário, enquanto soltava a descarga: - Rapaz, o que você anda comendo???
Saí tropeçando nas pernas...
Cutucou minhas costelas com o cano da sua 765:
- Tranquilo, tranquilo, disse.
Pegou o livro de minha mão, olhou a capa, leu o título em voz alta e jogou na cama.
- Quero dinheiro, cartões, relógio, celular... Tem jóias em casa???
-Não, respondi.
-Tem certeza???
- Si-ssim...
- OK. Pegue a carteira, tire o dinheiro e os cartões, não quero os documentos, falava sem alterar o tom de voz... Esse cartão tem chip. Anote a senha.
Não achava uma caneta... Ele me entregou a dele.
A senha embaralhou na minha mente e minha mão esqueceu o alfabeto.
De repente, Pow!!!Pow!!! Os tiros ecoaram em outro andar.
- Fodeu!!! Pensei... Se não tivesse cagado antes, me cagava ali mesmo...
- Merda!!! Gritou, pegando seu celular que vibrava. Notei que o erre de merda era meio acariocado:
- O que aconteceu???...Quem???...Uma velha “apagou” o Morais???(Moraishh)
Ouvi a gritaria em outros andares.
- Não!!! Sujou!!! Vamo embora que a polícia vai chegar!!! E desligou, enquanto alguém ainda gritava do outro lado...
Respirou forte e me disse:
- Entre no banheiro!!! Se tranque, e só saia depois de 10 minutos!!! E não bobeie que meus amigos estão loucos pra descontar em alguém.
-Tá ...tá bom... Ainda zonzo, entrei no banheiro onde tudo começou, e me tranquei...
Fiquei pelo menos meia hora.

Mais tarde, dei depoimento pra polícia, omitindo alguns detalhes escatológicos, liguei pras filhas, chorei um pouco e contei tudo pra minha irmã. Nada como um compreensivo abraço familiar, nessas horas.
Era uma quadrilha especializada em assalto a condomínios, algo que se tornara tão comum, que até delegacia especial já tinha.
Foi a síndica, a senhora do décimo quinto andar - eu moro no décimo -, D. Alzira, que “apagou o Moraish”. Uma senhora de voz rouca, viúva, que nunca sorri, e mal responde quando a cumprimentamos no elevador. Baixinha de óculos, sem pescoço, sempre com um cigarro na mão. Parece a última de uma espécie já extinta.
Ela também estava no banheiro... só que no banho. O constrangimento maior deve ter sido do ladrão. Teve que sair nua pelo apartamento, e aproveitou uma distração do assaltante.
Apareceu sendo entrevistada no Jornal da Noite, na televisão.
- A senhora não teve medo??? Perguntou a repórter.
- Mocinha, eu moro aqui há 33 anos e sou a síndica. No meu prédio, não!!! No meu prédio, não!!! Aqui, esses vagabundos não têm vez!!! E tem outra coisa, tenho 67 anos e a minha bunda eu só mostro pra quem eu quiser!!!

*livro: Clube do Filme de David Gilmour.

Amuleto da Sorte

Dia 21 de junho de 1970. Na maternidade São Paulo, da rua Frei Caneca, o som dos radinhos de pilha quebrava o silêncio. Silêncio, que a enfermeira, cuja foto ornava paredes de todos os andares, firmemente recomendava. Radinhos ruidosos, que ninguém ousava mandar desligar.
Na sala dos médicos, a saudosa voz de Geraldo José de Almeida ecoava numa TV preto e branco, conferindo ainda mais emoção àquele que era, sem dúvida, o evento mais marcante presenciado, até então, pelo povo brasileiro, em uma transmissão ao vivo, via satélite. Muito mais do que a ida do homem à Lua, em 20 de julho de 1969, pois quem pisou na Lua foi um homem, Neil Armstrong, mas um homem americano. E naquele momento o jogo transmitido de Guadalajara, no México, era Brasil... Brasil e Itália... Final da Copa do Mundo!!!
Gol!!! O Brasil saiu na frente com uma cabeçada de Pelé, após cruzamento de Rivelino, o “Garoto do Parque”, aos 18 minutos do primeiro tempo. Mas após uma bobeira geral de nossa defesa, sofreu o empate, gol de Bonisegna, quando o cronômetro marcava 37 minutos, ainda do mesmo período.
Fim do primeiro tempo. A tensão era geral e crescente!!!
O único obstetra, provavelmente, que não se espremia, na sala dos médicos, acompanhando o jogo, Dr. Alberto Fargas, era o que realizava o parto em sua paciente, Elizabeth Acosta Bennedetti, neta de uruguaios, minha mãe.
E começa o segundo tempo. Teste para cardíacos!!!
E o tempo passa!!! Quase 20 minutos passados, rápido demais para uns, intermináveis para outros.
De repente: - Gooooooooooooooooooooooooooooooooolll!!! Lindo, lindo, lindo!!!
O Brasil finalmente desempatou com Gérson, “O Canhotinha de Ouro”. Em um chute indefensável no canto esquerdo baixo do goleiro Albertosi.
Junto com o grito de gol de toda nação brasileira, ecoou um outro grito pelo sétimo andar da maternidade: - É um menino!!! Um menino!!! O homem que corria com a bandeira brasileira na mão e gritava, como se ele próprio fosse o autor do gol da virada, era Rafael Mascarenhas Bennedetti, meu pai, que desrespeitando sua tradição familiar paterna, era o mais brasileiro dos italianos.
“Noventa milhões em ação, pra frente Brasil, do meu coração...”
O gol “errado” de Jairzinho, “O Furacão”, deu mais tranquilidade ao time e aos 90 milhões de brasileiros que acompanhavam a partida. Isso, aos 25 minutos da etapa final. E aos 42 minutos, em uma pintura coletiva, iniciada por um solo de Clodoaldo driblando quatro italianos no meio de campo (o terceiro deles deve ter problemas na coluna até hoje), com direito a arrancada de Jairzinho, pela esquerda, e um passe mágico de Pelé, Carlos Alberto, “O Capitão”, estufa as redes italianas, conferindo números finais ao espetáculo. Brasil 4X1 Itália!!!
No dia seguinte, a foto do rei Pelé, o “Craque Café”, seminu, sendo carregado nos ombros pela torcida mexicana, estampou manchetes de jornais de todo o mundo.
Brasil Tri-Campeão mundial!!!
Meu pai sempre me contou essa história, como se eu e meu nascimento tivéssemos sido decisivos na vitória da “Seleção Canarinho”. Tenho uma foto da época, bebê recém-nascido, no colo de meu pai, enrolado com a bandeira brasileira. Eu tinha sido o grande amuleto da sorte do Brasil!!!

*Os apelidos dos jogadores acima citados, foram criados por Geraldo José de Almeida, e aparecem nessa crônica em homenagem a esse grande narrador esportivo.

terça-feira, 2 de março de 2010

Anjos (T.S. 18:37 PM)

Nico, 19 anos, que gostaria de ser Nikolas e não Nicolau, mas herdara o nome luso do avô, esperava impacientemente pelo seu ônibus, que sempre demorava muito, mas hoje, especialmente, demorava ainda mais para passar naquele ponto lotado da rua Teodoro Sampaio.
A Teodoro de calçadas estreitas, muito trânsito e muita gente, inclusive os muitos “istas”, guitarristas , baixistas, bateristas, violonistas, tecladistas... Entre outros*.
No IPod de Nico, Hendrix toca "Crosstown Traffic".
Apesar das espinhas na testa, Nico não era feio, era sim, muito tímido e não fazia sucesso com as mulheres. Passava sempre despercebido, não era alto, com seu 1,73m, e não tinha coragem de tomar a iniciativa com o sexo oposto. Mas ele não suportava mais ser o alvo preferencial das gozações dos amigos, dizendo que as espinhas eram por masturbação excessiva ou das insinuações de que era gay.
Nico, 19 anos, que gostaria de ser Nikolas, na verdade, era virgem!!!
Mari, 37 anos, que era Margarida Ely por escolha materna e escondia de todos o nome composto, descia a Teodoro Sampaio segurando as lágrimas. Voltava da farmácia onde fora comprar remédios para a asma brônquica de sua filha de nove anos. A pequena teve uma crise na escola, o que se tornava cada vez mais freqüente nos dias frios e poluídos de São Paulo. Com o pouco dinheiro que tinha só conseguiu comprar um dos remédios receitados pelo médico, o xarope, que era o mais barato. O nebulizador indicado para as crises, então, era um sonho impossível.  

Nico conseguiu arrumar emprego como assistente em um estúdio de som na rua Alves Guimarães. O estúdio funcionava em uma casa antiga, na vila, entre a Teodoro e a Cardeal Arco Verde. Lá, passava o dia ouvindo os músicos tocando, bebendo e conversando sobre mulheres. E Nico só pensava nas mulheres. O uso de drogas era “quase” proibido no estúdio. Trabalhava durante o dia e a noite fazia cursinho. Cursinho não sabia direito pra que, mas sua mãe, pobre viúva e trabalhadora, sonhava em um dia ver seu filho doutor.

Mari, que nunca quis ser Margarida Ely, era professora de educação física em um colégio público na Zona Leste. Com os dois mil e oitocentos reais que ganhava, fazia malabarismos para sustentar a família toda. Ela, a filha e o marido deprimido e desempregado há quase três anos.

Mari era casada há dezessete anos com Herculano, que investiu todas as economias do casal numa Academia de Fitness de três andares no bairro de Santana, e perdeu tudo, inclusive sua auto-estima. Herculano, com quem começou a namorar nos tempos de faculdade, foi o seu primeiro e único homem. Herculano, que há dois anos e sete meses está jogado no sofá vendo futebol, novela e o que mais passar, com a cerveja em uma mão e o controle remoto na outra. O professor Herculano que tinha 1,92m e 90kg de músculos, hoje tem 127kg de flacidez e desesperança. O sedutor professor Herculano, que hoje, não pega mais ninguém, muito menos sua esposa.

Nico prometeu a si mesmo que com o seu primeiro salário, de mil e cem reais, que acabara de receber, separaria 2/3 para ajudar sua mãe e pagar o cursinho, e usaria o 1/3 restante com uma profissional do sexo. Assim resolveria de vez o seu problema. 

Mari, não sabia o que era sexo há mais de dois anos. Mas, apesar das rugas começando a aparecer, - mais por falta de cuidados -, do alto de seus 1,81m,  continuava  sendo uma mulher atraente e bonita. Tinha sido Rainha dos jogos Abertos do Interior, nos seus tempos de jogadora de vôlei. A atividade constante mantinha seus músculos rijos e tudo no lugar certo. O agasalho esportivo que usava, evidenciava isso. Mesmo com algumas crises gástricas, a necessidade de sobrevivência e os cuidados com a filha  não lhe davam tempo de lamentar a vida, muito menos de pensar em si mesma. 

Hoje, Nico não vai ao cursinho. Hoje, ele recebeu seu primeiro salário!!! Sua cabeça vai a mil!!! Ele pensa e repensa milhares de vezes em como vai abordar e contratar uma profissional, se pessoalmente ou pelo celular.
Ansioso e cansado de esperar pelo ônibus, aumenta o volume do rock no seu IPod e senta no degrau da porta do 306, um antigo prédio de quatro andares, sem elevador, ao lado do ponto de ônibus lotado. Mick Jagger canta "I can get no... Satisfaction" em seus ouvidos.
Mari chega em seu prédio, e o maldito ponto de ônibus bem em frente de sua casa, faz com que tenha que se contorcer no meio das pessoas ali estacionadas e mal humoradas para poder entrar. 
Depois de meia dúzia de “com licenças” e alguns empurrõezinhos, finalmente consegue chegar perto da porta. Mas, quando se distrai para pegar a chave, um vulto se levanta de repente e esbarra nela. O remédio da filha cai e se espatifa no chão!!! 

Mari  olha para o xarope da filha escorrendo pela calçada e grita:

- Seu filho da puta!!!!

O filho da puta nesse caso, apesar de sua mãe não exercer essa profissão, era Nico, que distraído pelo som alto, só percebera a chegada de Mari no susto, em cima da hora.

Desesperada, ela tenta salvar um pouco do remédio... Mas em vão.

Dessa vez é Mari que senta no degrau da porta e chora.

Nico tira o fone de ouvido, mas  permanece imóvel, sem saber o que falar.

Mari aperta a receita do médico entre as mãos e chora ainda mais:

- O remédio de minha filha, e agora, meu Deus???
As pessoas do ponto observam e tecem comentários maldosos sobre Nico e o acontecido.
- Me..., me...me desculpa...diz ele nervoso.
- Desculpa??? Meu dinheiro acabou...e não tem mais remédio pra minha filha!!!

De repente Nico toma a receita da mão de Mari e sai correndo.

- Onde você vai moleque??? Dá minha receita de volta!!!

- Eu já volto!!! Diz ele abrindo espaço entre as pessoas.

“É maluco, pensou Mari, é só o que me faltava agora...um maluco roubou minha receita!!!”

Dez minutos depois, quando ela recomposta e conformada abre a porta para entrar em casa, ouve uma voz:
- Espera!!! Era Nico chegando, esbaforido.- Comprei o remédio da sua filha!!!
- Como assim??? Pergunta Mari, sem acreditar.

- Pega aqui, diz Nico, oferecendo duas sacolas, uma maior e outra menor.
Mari pega as sacolas e vê que ele tinha comprado os três remédios!!! E na sacola maior estava nada menos do que o sonhado nebulizador!!!

- O...obrigada, mas não posso aceitar…diz  tentando devolver as sacolas. Ela tinha feito um levantamento de preços antes e sabia que aquela compra não sairia por menos de trezentos e vinte reais.
- Aceita sim, diz ele, você sabe que sua filha tá precisando…

- Mas é muito caro!!! 

- Nem pensar… Nico falava com uma segurança incomum para ele.
- Ah, e a receita tá junto do nebulizador.
- Olha, eu agradeço. Reconheço que você não é nada do que eu pensei… Desculpe ter te xingado, mas vai devolver isso.

- Não mesmo… 

– Eu fico só com o xarope então… Mari tenta em vão convencer o rapaz.

-…E me desculpe pelo acidente. Diz Nico, se virando para ir embora.

- Espera!!! Grita Mari, que no ímpeto abraça fortemente o rapaz e desaba a chorar novamente.
Nico fica completamente sem ação.

- Obrigada!!! Obrigada!!! Você não imagina... Ninguém faz nada por mim, nem por minha filha. Eu precisava tanto desses remédios. Você é um anjo que Deus mandou!!! Diz Mari chorando.

De repente ela segura o rosto dele com as duas mãos e o beija. Beija na boca!!! Um beijo forte, úmido, chorado. Nico fica nervoso, podia contar nos dedos de uma mão o número de vezes que beijara uma garota. Nunca fora beijado com essa intensidade.
E agora por aquele "mulherão"!!!
Mesmo não sabendo direito o que fazer, ele acaba correspondendo. De repente sente seu membro intumescido com a proximidade do corpo de Mari, e fica envergonhado.
- Me desculpe.... Diz, tentando descolar seu corpo do dela.

Ela olha nos olhos dele e o beija de novo grudando ainda mais seu corpo no dele.

A “platéia” do ponto de ônibus começa a se manifestar contrariamente à forte demonstração de “carinho”.

Uma senhora ao lado comenta:

- É muita falta de vergonha, ela podia ser a mãe dele!!! O fato de ela ser mais alta que ele acentuava a diferença de idade dos dois.

- E ainda por cima ela é casada!!! Comenta outra.

Mari interrompe os beijos, puxa Nico e as sacolas para dentro do prédio e bate a porta.

Ainda ouvem comentários maldosos e vaias que vem de fora.

- Gente enxerida!!! Cuidem de suas vidas!!! Diz Mari, irritada.

- Mas você é casada mesmo??? Pergunta Nico intimidado.

- Sou...aliás, era até agora!!! Pronto não sou mais!!!  Diz Mari, tirando a aliança e voltando a beijar o rapaz.

São interrompidos novamente por um bater de porta e passos descendo as escadas.

Mari puxa novamente Nico pela mão e o leva para uma pequena porta embaixo da escada.
 Eles entram curvados, principalmente ela, fecham a porta e acendem a luz. É um cubículo de mais ou menos 2m por 1m. Com o teto em declive acompanhando a descida da escada, com a parte mais alta tendo não mais de 1,85m. Cheia de baldes vassouras, produtos de limpeza e algumas baratas.

- Nós vamos ficar aqui??? Pergunta Nico incomodado.

- Sshhhh!!! Mari pede silêncio.

Os passos descem toda a escada e ouvem a porta da rua bater.

Quando ele pensa em sair, Mari o agarra novamente e entre beijos "calientes" começa a abrir o botão de sua calça. Mas para a sua surpresa encontra o “mastro” descendente.

Ela para respira forte e pergunta:
- Ok, passou a vontade... Eu lembro a sua vó??? Sou muito velha e caída pra você???
- Não, não é nada disso!!! Não mesmo!!! Você é um sonho, é linda demais!!!

- Tudo bem não precisa justificar, não... Eu forcei a barra.
- Não, eu juro, o problema não é você!!! Eu é que estou nervoso demais!!!
- Por que eu sou casada???

- Também... mas, principalmente, porque...

- Porque..., repete ela.

-...porque eu ...eu sou virgem!!! Nico se encolhe como se tivesse sido desmascarado e admitisse sua derrota.
Ela sorri e volta a beijá-lo de uma forma mais terna, sem tanta sofreguidão.

- Você é lindo!!! Cochicha em seu ouvido. Ela o abraça e enche de carinhos até acalmá-lo.
Quando sente que a “firmeza” dele voltou pergunta:

- Você tem camisinha???

- Uma coleção!!! Responde Nico, animado.

O que aconteceu nos próximos doze minutos é proibido para os não virgens.

Os dois saem sorrateiramente do depósito de material de limpeza, tentando se recompor, e caminham para a porta da rua. Antes de chegarem, a porta se abre e entra um senhor calvo, de óculos e pouco sorriso.

- Boa noite, Seu Adhemar, cumprimenta Mari.

- Boa noite, D. Mari.

Seu Adhemar era o síndico do prédio há mais de vinte anos. E olhando para o desconhecido Nico, como se suspeitasse de algo, pergunta:
- E esse é???

Antes que Nico com o cabelo todo desarrumado e a camisa com os botões trocados pudesse se pronunciar, Mari responde: 

- Esse é meu sobrinho!!! Meu sobrinho predileto!!!

- Ah, muito prazer. Arrume o botão da camisa rapaz, diz Seu Adhemar, se retirando com um aceno de mão.

Os dois esperam ele se afastar e subir as escadas para caírem na risada.

Nico arruma os botões da camisa e diz:

- O nome de seu sobrinho é Ni...Ele  é interrompido pela mão de Mari que tampa sua boca carinhosamente.
- Esqueça...não diga mais nada. Tá bom assim. Foi ma-ra-vi-lho-so desse jeito!!!

Nico espera ela retirar a mão e fala emocionado:
- Eu nunca vou esquecer!!!
- Nem eu!!! Diz Mari, com os olhos úmidos.

Após um longo abraço de despedida e um último beijo, ele sai. Ela fecha a porta lentamente sem tirar os olhos dele.

Mari resolve não colocar a aliança de volta, se enche de coragem e sobe com as sacolas. Estava decidida, que ou Herculano ou ela e a filha se mudariam daquele apartamento.

Nico, não sentia a noite fria, o ônibus logo chegou. Foi para casa com um sorriso indisfarçável, se sentindo o mais feliz dos homens. Aliás, se sentindo Homem!!!
No IPod de Nico, Paul McCartney canta “Maybe I’m Amazed”.

Naquela noite, Deus tinha colocado um anjo no caminho de cada um deles.

Entre outros*: A Teodoro Sampaio é, certamente, a rua brasileira com a maior concentração de lojas de instrumentos musicais.

Michelle e Clara

Layla, de Clapton; Julia, dos Beatles; Marina, de Caymmi, pelo menos um peso pesado Brazuca; e Michelle, também dos Fabfour.
Foram as opções que dei para o nome de nossa primeira filha.
Depois de quase dois anos casados, concordamos que era uma boa hora para termos um filho.
Pela última ultrassonografia, não restava mais dúvida do sexo da criança. Cabia agora à Lígia, a mãe, a grande escolha. Que, acreditem, se arrastou por dois meses.
Marina ela eliminou logo de cara. Era o nome de meu grande amor de adolescência. Expliquei que Lígia, de Tom, também estaria na lista, se não fosse o nome da mãe, mas acho que não convenci.
- Não me estresse, não me es-tres-se!!! Dizia, grávida de seis meses.
OK, tínhamos três opções ainda. Layla ela não gostou. Achou comum.
- Comum??? Perguntei. Já me via cantando Layla ao violão para a criança dormir.
- É, tive uma vizinha de apartamento que tinha uma poodle toy, barulhenta, chamada Layla. Não quero pensar na cachorrinha toda vez que chamar nossa filha.
Não tive como argumentar, e lá se foi minha opção predileta.
- Por que não Julia??? "Seashell eyes, windy smile, calls me..."
- Julia??? Dizia pensativa, no sétimo mês, torcendo o canto da boca.
- Julia é um nome lindo, sonoro!!! Um lindo nome pra uma criança linda!!! So I sing a song of love, Julia...Cantarolei.
Ela não disse que sim, nem que não.
No oitavo mês, acordou um dia, decidida:
- Será Michelle!!!
A opção que eu menos queria.
- Mas por que Michelle???
- Porque eu gosto!!! Respondeu.
- E Julia???
- O trato foi: suas opções e minha escolha. Respeite!!!
Era verdade, fui eu quem sugeri que fosse dessa forma. Quem mandou eu colocar Michelle na lista...

Tres Anos Depois

Michelle, ou Micha, como carinhosamente a chamava, aos tres anos, era uma criança adorável, esperta, doce e sociável. Frequentava a escolinha, e todos os dias tinha uma novidade pra contar.
Ela é do signo de Peixes e realmente nadava como um deles. Era a melhor da sua turma na escolhinha de natação.
Assistíamos desenhos animados juntos, sempre imitando os personagens. Por que as crianças assistem tantas vezes o mesmo filme???
Não via a hora de telefonar e ouvir sua voz, em minhas viagens, e ganhar seus desenhos, quando voltava para casa. Resistia colocar Micha na cama, quando adormecia em meu colo. Só o pensamento que algo de mal poderia ocorrer a ela, já me causava dor. Queria estar sempre perto para protegê-la.
Adorava azeitona. Pizza para ela só se tivesse azeitona.
Diversas vezes me flagrava cantarolando: “Michelle, my belle, sont des mots qui vont tres bien ensemble...”. Até em importantes eventos musicais do trabalho.
É, eu estava loucamente apaixonado por ela!!! Uma paixão que crescia diariamente nos últimos tres anos.
Quando temos um filho, achamos que ensinaremos muita coisa a ele, mas na verdade somos nós que aprendemos muito mais.
Lígia me censurava, disfarçando o ciúme:
- Você estraga, não educa!!
Nosso casamento não andava grande coisa. De morno para frio, diria. Talvez até mais frio do que eu quisesse admitir. A única coisa que aquecia aquela casa, era a presença cheia de vida de Micha.
Lígia andava meio quieta ultimamente, pensativa. Parecia meio fragilizada.
Recusava minhas tentativas de diálogo. Às vezes, se trancava no quarto e chorava.
Não se mostrava receptiva para o sexo. Em nada lembrava aquela “gata selvagem”, que parecia estar em um cio permanente, dos primeiros anos de nosso namoro e casamento.
Será que não soubemos evoluir e nos adequar ao passar dos anos???
Acordei no meio da noite com Lígia me cutucando. Eram 4:20 AM. Achei que estava roncando muito alto.
- O que foi??? Perguntei sonolento.
- Preciso te contar uma coisa...
“Deve ser sério”, pensei.
- Eu...eu estou grávida, disse pausadamente e sem alegria, já fiz o teste...
Não sabia o que dizer, nem como reagir.
- Pensei em tirar..., mas desisti. Contou suspirando.
- E se tirasse, não ia te contar.
- Por quê?
- Nós não estamos bem, você sabe...
- Quantos meses??? Perguntei já completamente sem sono.
- Quase dois... Pra mim também foi uma surpresa...
Surpresa??? Meu coração disparou. Eu não era nenhum santo, mas vinha me mantendo fiel, e a vontade de estar perto de Michelle, não me permitia ficar longe de casa além do tempo necessário. Nunca poderia imaginar uma infidelidade por parte de Lígia. Mas ultimamente quase não “transávamos”. Será que ela tinha arranjado um amante???
Notando minha inquietação completou:
- Foi naquele sexo “burocrático”, da nossa última vez. Sossegue!!!
Pelo menos o meu orgulho de “macho” sentiu um grande alívio.
- E a pílula???
- Eu parei, a gente já quase não transava...
Virou as costas para mim e desabou a chorar.
Abracei Lígia com força, tentando lhe passar calor e alguma segurança.
Não trocamos mais palavras, nem dormimos até o amanhecer.
Dias depois, fui me deitar às 2:37 AM., após finalizar um artigo em inglês, para a ‘”Rolling Stone” americana, sobre os movimentos musicais emergentes no Brasil.
Enquanto me ajeito no escuro, ouço a voz de Lígia:
- Se for menina vai se chamar Clara.
- Clara??? Por que Clara???
- Porque é como o céu azul, limpo, sem nuvens. Nada de trovoadas, nem tempestades. Cheio de claridade!!! Luz!!! Eu preciso de luz em minha vida!!!
- Bom, se você já decidiu. Mas, e Micha??? Perguntei.
- O que tem Michelle???
- Ela não ilumina a sua vida???
- Sim, mas ilumina muito mais a sua do que a minha!!!
Acho que concordava com ela nesse ponto. Esperei mais um pouco e perguntei:
- E se for menino??? Na verdade eu gostava da idéia de ter um casal.
- Se for menino, você dá o nome que quiser, tá bom assim??? Mas sinto que é uma menina... Boa noite.
- Boa noite!!! Segurei e beijei a sua mão.
Antes de adormecer, pensei em Eddie, Eduardo Góes Soares do Nascimento, rockeiro fanático. Guitarrista exímio, tivemos uma banda juntos na adolescência. Eddie tinha três filhos: Eric, Jeff e Jimmy. Em homenagem aos deuses da guitarra inglesa. E dizia que, se tivesse mais um, seria Ritchie, em homenagem a Ritchie Blackmore, do Deep Purple. Para mim o curioso, agora, era como Eddie convencera sua mulher a colocar esses nomes. Quais os argumentos que ele usara??? Pelo jeito, Eddie não era somente um guitarrista virtuose, conhecia outros truques também. Não via Eddie há alguns anos, desde que fechou sua loja de LP’s raros, Gently Weeps, no Itaim-Bibi.
Em sete de junho de 2006, sob o signo de gêmeos, conforme a profecia materna, nasceu Clara.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Vendetta (Quinze Dias Depois)

Voltando para casa, após mais de uma semana viajando a trabalho, Francisco, o porteiro, um cearense de idade indefinida, que fala pelos “cotovelos”, me recebe com um sorriso quase escancarado e me entrega a correspondência.
- Tudo bem, Chico?
- Comigo tudo... responde sentado atrás de uma grande mesa com tampo de vidro.
Queria que ele tivesse parado por aí, mas o pior chato é o que responde, achando que você quer mesmo saber se está tudo bem. Apressei meus passos na direção do elevador.
- Mas a D. Alzira... Falou alto para que eu ouvisse.
A vontade de subir para o meu apartamento era grande, mas a curiosidade de saber o que acontecera com a mulher “gliptodonte” foi maior.
- O que aconteceu com a D. Alzira? Perguntei, voltando.
- É, foi vingança, doutor. Tomou dois tiros!!! Francisco arregalava os olhos, sem conter o entusiasmo, de fofocar como novidade o caso que todos no prédio já conheciam. Todos menos eu.
Morreu, pensei.- Como assim, Chico??? Saiu o morreu traduzido.
Tentava disfarçar uma antipatia latente que nutria por D. Alzira, aquela figura, que, como síndica, “governava” o prédio como se fosse o seu feudo, e me tratava com um certo ar de desprezo e superioridade, apesar de seu tamanho PP (no sentido vertical, é claro), desde que ousei a discordar dela em minha primeira reunião de condomínio, a sete anos atrás.
- Aquela gangue que invadiu o prédio quis se vingar. Hoje é quinta. Na segunda, ela ia saindo pro Banco, como de costume, às 9:50h da manhã. Aí, um carro preto, que estava estacionado, abriu a janela e deu dois tiros nela!!! Pá!!! Pá!!! atirou Francisco, imitando o revolver com a mão. - Os caras fugiram. Mas o André, da banca de jornal, anotou a placa e avisou a polícia. Eu vi tudinho, tudinho!!! disse com entusiasmo crescente.
- Pegaram os bandidos??? Perguntei mostrando interesse.
- Pegaram sim doutor. Pararam o trânsito na Brigadeiro com a Paulista. Aí, a polícia achou eles e meteu bala. Um morreu, o outro ficou ferido. O que ficou ferido era meio-irmão daquele que D. Alzira matou!!!
- O Moraish!!!
- Mora quem???
- Deixa pra lá... disse eu, disfarçando pra não ter que me explicar.
Vendetta, pensei.
-Me disseram que ele entregou os outros “cumparsa” da gangue...
- Ah é???!!! Senti um calafrio, pensando no ladrão que invadiu meu apartamento e “desfrutou” de minha intimidade escatológica. Será que ele contaria pra polícia detalhes que eu havia omitido???
E já me preparando pra subir, perguntei:- E D. Alzira???
- Ah foi operada e passa bem. Sábado vai ter uma festinha pra volta dela.
- Que bom. Essa daí é indestrutível, né? Falei sem muito entusiasmo. Estava convencido que o único jeito de termos um novo síndico era com a extinção da atual. Claro que não queria que ela morresse de verdade.
- Ah, a D. Odete, do apartamento 51, foi visitar ela. A D. Alzira falou pra ela que fuma desde os dezesseis anos, que fumava escondida do pai. Se o cigarro não matou ela, disse que não vai ser dois “merdinha” desses que vai conseguir matar. Foi ela que disse, doutor. Discursava Francisco, já quase gargalhando. Voava cuspe pra todo lado.
Fiquei enojado e antes de ficar “ensopado” saí com um aceno de despedida.
- Merdinha é esse cigarro incompetente, resmunguei com ironia.

*Vendetta: vingança de sangue das famílias mafiosas.
 

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Conversa de Bar

Após entregar uma matéria encomendada pela revista Cultura Paulistana, sobre as caixas de som, espalhadas pelo Centro de São Paulo, tocando música erudita, e sua influência no cotidiano dos paulistanos, paro no tradicional Bar Brahma, para tomar aquele delicioso chopp. Fui só, como uma comemoração pessoal, mais pra relaxar. Gostei muito daquilo que escrevi e partes do texto voltavam a minha mente, em “looping”. Teci um panorama, tipo Louis Armstrong, cantando “What a Wonderfull World”, com cenas da guerra do Vietnam. A pressa diária e os abandonados do centro de São Paulo, embalados pela Primavera de Vivaldi. A dialética de um universo em desequilíbrio, a Sinfonia da Miséria. Senti, que apesar dos anos passados, continuava tendo “tesão” pelo meu trabalho, não me conformava com o olhar acomodado da mídia, e isso, para mim, era motivo de grande satisfação. Muitas vezes, a satisfação pessoal, é o melhor prêmio que podemos nos conceder.
Um casal de trinta e poucos anos, da mesa ao lado, levemente alcoolizados, ele mais que ela, falava alto. No começo me incomodei, queria sossego, mas acabo não conseguindo deixar de ouvir a conversa deles:
- Ah!!! O que você acha que chama mais atenção em você??? Pergunta ele, achando óbvia a resposta.
- A inteligência, o cérebro, é claro!!! Responde ela com firmeza.
“Hum, que papo de bêbado...”, pensei.
E o papo continuava:
- Você tá louca!!! Olha o tamanho do seu cérebro e olha o tamanho da sua bunda!!! Deus fez assim!!! Deus quis assim!!! Pra quando a mulher passar, os homens desejarem aquela bunda. Desejarem copular com a dona daquela bunda. É assim na natureza!!!
- Na natureza, entre os irracionais!!! Fala, já mostrando certo constrangimento, pela atenção pública gerada.
- O que seria muito mais fácil, né??? Não precisava vir pro bar, gastar dinheiro, beber muita cerveja, jogar conversa fora e só trepar depois, já sem controle total do que a gente está fazendo... Assim prejudica o padrão de qualidade!!! Hahahahaha!!! Só ele ri, achando graça de sua própria piada.
- Seu ridículo!!! Até parece que eu vou pra cama com você. Não vou com ninguém no primeiro encontro, muito menos com alguém como você!!! Seu podre!!! Responde asperamente, já irritada.
- Eu podre??? Sexo... desejo, é o instinto mais primitivo. Se fosse o cérebro o que importasse, vocês, mulheres andariam com o diploma pendurado atrás da bunda, que nem chapa de carro, e não com essas calças tão apertadas, só pra mostrar as formas a-bun-dan-tes. Ele gesticulava moldando as formas femininas com as mãos, acompanhando sua fala.
- A minha não é tão apertada...
- É sim, que eu olhei quando você foi ao banheiro. E olha que é um belo “derriére” esse emoldurado por sua calça “apertadíssima”.
- Descarado!!! Parece apertada porque tem lycra, mas não é!!! Disse desconcertada, com as mãos espalmadas sobre a bunda, mesmo sentada, tentando disfarçar o que o que já fora exposto. Ela sentia, com razão, o olhar curioso de todos ali, pairando sobre seus glúteos.
Ele ri alto, de forma irônica e bebe seu chopp, balançando a cabeça de forma negativa.
Eu, confesso, que como quase todo o bar, estava completamente absorto pela conversa alheia e nem lembrava mais de minha matéria. "Que maluco machista!!!” Pensei. ”Um porco nojento!!! E no primeiro encontro ainda...”
- E outra coisa...disse ela...Você me conheceu conversando pela net. Logo, me convidou pra sair pelas nossas conversas, pela minha inteligência!!! Isso com seus olhos já soltando faíscas.
- É verdade, ele responde, mas só depois de ver suas fotos de biquíni no Instagram!!! E dá uma sonora gargalhada.
Ela explode!!! Levanta derrubando a cadeira e se exalta:
- É por causa dessa desvalorização do cérebro, da inteligência das mulheres e de animais irracionais que nem você que a gente só vê desgraça acontecendo, feminicídio, estupro, gente sem controle, que acha que mulher é só um pedaço de carne... E quer saber, eu vou pra minha casa!!! E não vou dar pra você o prazer da companhia de meu cérebro e muito menos de minha bunda!!! Tchau, seu machista de merda!!!
Silêncio sepulcral no bar!!! Quase devolvo o chopp na caneca!!! Senti culpa, mas não pude deixar de observar seu sacolejar, enquanto ela saía raivosamente, estalando o salto alto de suas botas contra o piso de madeira. Eu e pelo menos toda a ala masculina do salão, inclusive o garçom, que balançava a cabeça, com os olhos arregalados.
Ele, o abandonado sem noção, continuou rindo, tomou o último gole de seu chopp, arrotou, e gritou:
- Garçom, traz mais um chopp, que o cérebro invejoso foi embora e levou aquela bunda maravilhosa com ele!!! Quem não tem pecado que atire a primeira pedra!!!

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Dona Shaci

Vitima de um assalto, Mukitinho da Bahia, pouco conhecido como Paulo dos Santos, maquinista de cinema*, famoso por seu jeito peculiar de pronunciar as palavras, vai com sua esposa, à 15ª. delegacia, no bairro de Sussuarana, registrar a ocorrência.
Na sala, estão presentes a delegada, um escrivão ao computador, um policial em pé na porta, mantida aberta por causa do grande calor, apesar do antigo e barulhento ventilador de teto ligado no máximo, além do próprio Mukito e sua mulher.
Como em todo evento de alto teor burocrático, fazem perguntas à vítima que em nada se relacionam ou ajudam na elucidação do caso.
Delegada: - Seu Paulo, o nome de sua mãe???
- Shaci, Shaci dos Shantosh, responde Mukito.
- Como??? Pergunta a delegada, fazendo um sinal para o escrivão não digitar.
- É Shaci!!! Repete Mukitinho.
- Saci??? Pergunta a delegada, sem conter um leve riso.
Mukitinho irritado diz: - Não, não é Sachi!!! É Shaci!!!
A delegada e todos na sala, menos o próprio Mukito e sua senhora, claro, explodem em uma sonora gargalhada. Alguns curiosos vêm à porta para saber o que está acontecendo.
Sem conter sua raiva crescente, Mukitinho, tira o documento que restou na carteira vazia e quase esfrega na cara da delegada: - Óia aí, ó!!!!
A delegada, vermelha de tanto rir, lê em voz alta: - Jaci dos Santos!!! E a gargalhada volta a soar no recinto. Sua esposa, que até esse momento se mantivera calada, não se contém e cai na risada também. Mukitinho aperta a mão de sua mulher com força e a fuzila com o olhar.
- Calma Seu Paulo!!! Diz a delegada, que se volta ao escrivão e dita: - J-A-C-I dos Santos(sh), com um tom de desdém
Mukito, contrariado, resmunga consigo mesmo: - Shi esha aí não foshi deiegada e muié, merechia é unsh shopaposh!!!

*Maquinista: é um tipo de faz tudo no cinema, executa tarefas e resolve problemas com cérebro e músculos.
Baseado em fato real. Essa crônica é uma homenagem a Mukitinho e seu bom humor.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

"Voa Canarinho, voa..."

Como eu era um bebê em 1970, posso dizer, com certeza, que das seleções que vi jogar, ao vivo, na minha vida, nenhuma se compara a seleção brasileira de 1982, dirigida pelo mestre Telê Santana.
Valdir Peres, Leandro, Oscar, Luizinho e Júnior. Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico, Serginho e Eder. Que timaço!!! Mesmo tendo perdido Careca, nosso melhor centroavante, por contusão, às vésperas da competição, oito entre dez estrangeiros e nove entre dez brasileiros, porque sempre tem um do contra, consideravam essa seleção a grande favorita para vencer a Copa do Mundo da Espanha.
Aos doze anos, meu coração já tinha optado por ser corinthiano, mas ainda não tinha tido coragem suficiente para contar isso a meu pai, palmeirense “roxo”. Ou seria melhor dizer palmeirense verde??? O Corinthians tinha sido campeão paulista, naquele ano, e iniciara uma co-gestão entre atletas e dirigentes, que viria a ser conhecida como a “Democracia Corinthiana”.
Aos doze anos, após duas copas frustrantes, já não acreditava muito nessa estória de “Amuleto da Sorte”.
Também com doze anos conheci Marina, vinda de Salvador com a família. O pai, um alto funcionário do Banco Econômico, tinha sido transferido para São Paulo.
Marina veio estudar na mesma escola, e, por sorte do destino, na mesma classe que eu. A classe dos nomes começados por J, K, L e M. Marina usava os cabelos, longos e lisos, sempre presos. Sua pele era de um moreno aveludado, tinha grandes olhos escuros, que pareciam olhar para dentro da gente, e um lindo sorriso aberto, cheio de dentes.
Um dia sentamos em carteiras vizinhas, e meu braço roçou levemente no seu, tive uma sensação nova e deliciosa, que não queria que acabasse mais, com direito a um friozinho que subiu pela espinha. Tinha sido nosso primeiro contato físico.
Aos doze anos, meu coração já tinha optado por se apaixonar por Marina, mas eu ainda não tinha tido coragem de contar isso para ela.
Mas voltando à Copa, no dia 14 de junho, o Brasil teve uma estréia difícil contra a Rússia, do fantástico goleiro Rinat Dasayev, herdeiro de Lev Yashin, o Aranha Negra. E por falar em goleiros, o nosso, quase sempre seguro, Waldir Peres engoliu um “frango” bisonho, em um chute despretensioso, desferido por Bal da intermediária, aos 34 minutos do primeiro tempo. O nosso habilidoso quarto zagueiro Luisinho, cometeu dois pênaltis, que para a nossa sorte, o árbitro espanhol Castilho, preferiu ignorar. Nossas jogadas de ataque, quando passavam pelo sólido bloco defensivo russo, morriam com facilidade, nas mãos de Dasayev. Era quase inacreditável!!! Seria o nervosismo da estréia??? Parecia que estávamos perdidos “num mato, sem cachorro”!!!
Fim do primeiro tempo. Confesso que ali, temi pelo pior!!! Seria muito azar!!!
- "Bora" filhão, tem que acreditar!!! Acredita na sua sorte!!! Incentivou meu pai, que continuava acreditando na estória do Amuleto.
Minha mãe suspirou e em silêncio, me abraçou e beijou minha cabeça.
Estávamos sentados em um grande sofá marrom de couro. Meu pai na ponta esquerda, minha mãe na meia-direita e eu no meio de campo. Nosso posicionamento habitual em dias de jogo.
Começa o segundo tempo, o Brasil tenta reagir, mas o jogo continua “amarrado”.
A grande vantagem de nossa seleção é que contava com craques fantásticos!!! E quando o coletivo não funcionava, eles podiam, em um lampejo genial, mudar os rumos da partida.
Dr. Sócrates, o Magrão, representante corinthiano na seleção, tinha inclusive parado de fumar para melhorar seu desempenho atlético. Tanta dedicação não poderia ter sido em vão. E, finalmente, aos 30 minutos do segundo tempo(!!!), ele, Sócrates, passa por dois marcadores russos e manda um “canudo” no ângulo superior direito da meta de Dasayev, que ainda quase alcança a bola. É gol do Brasil!!!!! Gooooooolll!!! Pelo menos “achamos o cachorro”.
O Brasil recobrou sua confiança e partiu para o ataque, mas a partida já estava perto de seu final.
Aos 43 minutos, Paulo Isidoro, que tinha entrado no segundo tempo, cruza a bola para Falcão, que como se tivesse uma visão 360 graus, deixa a bola passar, fazendo um “corta luz” para Eder Aleixo (o “queridinho” do público feminino da época), levantar a pelota e soltar a “bomba”. Dasayev não teve tempo de reagir!!! Gol do Brasil!!!! Golaço!!! O gol da virada!!!! “Saímos do mato”!!!
Castilho encerra a partida, vitória brasileira!!!!
- Falei, filho!!! Acredite, você dá sorte!!! Gritava eufórico, meu pai. Minha mãe sorria e me enchia de beijos.
Nas partidas seguintes da primeira fase, o Brasil jogou como o grande time predestinado a ser campeão. Brasil 4X1 Escócia e Brasil 4X0 Nova Zelândia. Com uma sucessão de gols belíssimos!!!
Na primeira partida da segunda fase, reencontramos a Argentina, nós, ainda engasgados pela ”compra” dos peruanos em 78. O Brasil impôs o seu futebol com uma vitória maiúscula: 3X1, gols de Zico, Serginho e Júnior, com Diaz marcando o gol de honra dos “hermanos”.
-“Hermanos” porra nenhuma, que eu não tenho irmão ladrão!!! Toma, Argentina!!! Toma!!! Sem roubalheira vocês não são nada!!! Esbravejou meu pai, lembrando o suspeito título mundial Argentino de 78.
Foi uma vitória para “lavar a alma”, com direito a “sambadinha” de Júnior, nosso lateral esquerdo, comemorando o terceiro gol.
Meu pai, Rafael Mascarenhas Benedetti, cresceu na Mooca, era filho de pai italiano. E passional como todo italiano. Tudo, pra ele, era melhor se fosse da Itália. O país, a comida, as roupas, o Palmeiras, Sophia Loren... Enfim, tudo!!! Tudo menos a seleção!!! Em matéria de seleção de futebol, ele era torcedor fanático do Brasil!!! Felizmente, tudo parecia se encaminhar para o Tetra brasileiro.
No dia 5 de julho, em Barcelona, no estádio Sarriá, o Brasil enfrentava a Itália, que apesar de sua vitória de 2X1 contra a Argentina, se classificou na primeira fase com três medíocres empates. O último, contra Camarões, graças a um escorregão do goleiro N’Kono. Parecia que ia ser um jogo de gato e rato. O Brasil era o gato, lógico!!! E o Brasil só precisava de um empate para passar à semifinal.
Tem gente que acredita em fatalidade, mas como iríamos imaginar, que Paolo Rossi, “Il Bambino D’Oro” em sua juventude - que andou suspenso por participar da manipulação de resultados no Campeonato Italiano, que passara em branco todas as partidas da Copa, até então, ressuscitaria naquele jogo???
Para surpresa geral, aos cinco minutos de jogo, aproveitando a distração da nossa defesa, Paolo Rossi de cabeça: Itália 1X0 Brasil!!! O alívio, veio logo a seguir, Sócrates empata, em passe de Zico, batendo no contrapé do goleiro Dino Zoff!!! Parecia que, apesar do susto inicial, tudo voltava à normalidade. Mas o que é normal em uma partida de futebol??? Aos 25, ainda do primeiro tempo, incompreensivelmente, Toninho Cerezo, que tinha sido palhaço de circo em sua adolescência, resolve fazer graça e dá um passe magistral para Paolo Rossi “fuzilar“ Waldir Perez: Itália 2X1!!! Serginho perde gol feito!!! Aliás, talvez o maior erro de Telê na Copa tenha sido domesticar demais o “selvagem” Serginho, pois o seu rendimento na seleção nunca foi o mesmo demonstrado em seu clube, o São Paulo.
Fim do primeiro tempo. Mas todos ainda acreditavam na virada brasileira.
Os italianos voltam para o segundo tempo se defendendo como podem, até que, aos 23 minutos, o oitavo “Rei de Roma”, Falcão, em um chute forte cruzado, da entrada da área, empata a partida.
– Gooooooool!!! Estamos na semifinal!!! Vamos ser Tetra!!! Comemorou, precipitadamente, meu pai.
Sejamos justos, Cerezo colaborou no lance do gol brasileiro também, levando a marcação que os italianos faziam sobre Falcão, abrindo espaço para ele marcar.
Mas sete minutos depois, após escanteio inexistente para a Itália, e bate e rebate na entrada da área brasileira, a bola sobra para ele, Paolo Rossi, que estaria impedido, se Junior não estivesse parado sobre a linha do gol. Itália 3X2 Brasil!!!
O Brasil se lança ao ataque. A Itália se defende, desesperadamente.
Gentile faz falta em Zico e rasga sua camisa. No lance seguinte, Zico, de camisa 10 rasgada, caminha com a bola na direção de Gentile que recua acovardado. Quando finalmente Gentile reúne coragem e dá o bote, toma um “corte” de Zico e cai sentado de bunda no chão!!! Lance inesquecível!!!
O Brasil não desiste, até que aos 43 minutos do segundo tempo, a cabeçada certeira de Oscar, que já tinha ultrapassado metade da linha do gol italiano, é milagrosamente defendida por Zoff!!!
O Juiz apita o fim da partida... É o fim de um sonho!!!
Não há palavras para descrever a decepção e incredulidade do povo brasileiro naquele momento. Meu pai saiu para fumar na varanda com os olhos marejados, minha mãe foi para a cozinha chorar. Eu permaneço só, naquele imenso sofá, como se minha vida tivesse perdido o rumo. Pensei em Marina, mas naquele momento nem a presença dela resolveria.
Estava provado, minha sorte já era!!! Tudo tinha sido uma mera coincidência ou, se não, uma fantasia criada por meu pai.
Na sala de imprensa, na entrevista pós-partida, jornalistas do mundo inteiro aplaudiram de pé Telê e a seleção do Brasil. A melhor seleção da Copa se despedia do mundial.
A Itália se sagrou campeã, derrotando a Pólônia na semi, e a Alemanha na final. Com Paolo Rossi marcando gols em ambas as partidas e se tornando o artilheiro da Copa. O mundo tinha agora duas seleções Tri-Campeãs.
No dia seguinte da derrota brasileira, fui à escola, estavamos em uma semana de reposição antes das férias, e tudo que eu pensava querer, pra me sentir melhor, era sentar ao lado de Marina. Ficar perto de Marina. Mas para minha surpresa e desgosto, ao chegar, os lugares já estavam ocupados. De um lado Marcela, sua melhor amiga e do outro lado, o lado que deveria ser meu, Lucci (???!!!). O que Lucci, oficialmente João Lucas, aquele “filhinho de papai”, estava fazendo ali???
Sentei no fundão da sala e morri de ciúmes quando presenciei uma animada conversa entre Marina, Lucci e Marcela.
Chegando em casa, não tive fome, quase não almocei.
Fui ao banheiro levando O Jornal da Tarde, cuja a capa, emocionante, era a de um menino chorando na “Tragédia de Sarriá”. Comecei a ler a matérias sobre o jogo, e, de repente, a página ficou manchada com grandes gotas, gotas de lágrimas. Sentado no vaso, chorei muito!!! Chorei tudo que estava reprimido!!! Chorei pelo Brasil, chorei por Marina!!! E pensei: ”Eu sou um grande azarado, isso sim!!!”

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Fausto e Otaviano

“... E assim sendo, podemos deduzir que essas obras de Manon Briscout, são de menor importância em sua carreira ou frutos de uma fase de notada ausência de inspiração.
Acreditamos que tão grandiosa comemoração pela presença dessas obras em Terras Brasilianas, seja um equívoco que atesta o total desconhecimento do potencial desse artista franco-belga e do melhor de sua obra...”
A coluna dos críticos Fausto e Otaviano não deixava pedra sobre pedra, como o habitual. Denegriam as obras do artista e evidenciavam nossa falta de apuro estético. Nosso papel era sempre o de pobres ignorantes, comprando gato por lebre.
Disfarçavam suas maledicências com uma retórica pomposa. Na verdade, parecia mais uma coluna de fofocas.
Enigmaticamente, alguns artistas passavam de “vilões” a “heróis”, ou vice e versa, em um passe de mágica, sem mais explicações. Será que a dupla era de alguma forma "agraciada" por essa inexplicável mudança de opinião???
Mas as críticas criaram um efeito dialético. Quanto pior a crítica, mais aguçava a curiosidade de seus leitores, que não eram poucos, e mais gente comparecia aos eventos, como as críticas da Folha de São Paulo em décadas passadas.
Assim, apesar de não serem queridos, eram quase sempre bem recebidos.
Era comum encontrá-los em teatros, ballet, restaurantes, recitais e concertos de música erudita, feiras de antiguidades e, claro, exposições de arte. Andavam sempre juntos, aliás, gostavam muito dos “holofotes”.
Não sei se sempre escreviam em parceria ou se, muitas vezes, era um vôo solitário, mas a coluna era sempre assinada pela dupla, melhor dizendo, pelo casal. Saiu até uma matéria na revista “Primal Faces”, quando se casaram, em primeiro de janeiro de 2007, no vilarejo de Campillo de Ramos, província de Guadalajara, a 90 minutos de carro de Madri, Espanha. Uma cidade casamenteira, considerada o paraíso do casamento gay.
Mas a parceria “artística” já existia desde 2004.
Conheci a dupla na mostra inaugural de uma exposição de artefatos da China Imperial, somente para convidados, em agosto de 2007. Na época, ainda estava casado, mas como não conseguimos babá, Ligia a contragosto ficou com as crianças. Fui só, sem nenhum amigo, para não aumentar sua irritação.
Inácio Villalba, curador da exposição, nos apresentou.
- Muito prazer!!! A-do-ra-mos suas críticas e artigos!!! Você é uma pessoa que merece nosso respeito e realmente enobrece a música!!! “Declamou” Fausto, de forma afetada. Otaviano limitou-se a concordar com a cabeça.
- Obrigado. Respondi, com uma sobriedade proposital, não acreditando em uma palavra do que dizia aquela “hiena”.
- E está gostando da exposição? Perguntou.
- Acabei de chegar. Na verdade, estava encantado com as peças expostas.
- Pois está fan-tás-ti-ca!!! Esses chineses vão dominar o mundo!!!
Apesar da sua tentativa de agradar, senti um extremo desconforto. Tudo soava falso naquela conversa.
- Com licença. Retirei-me, aproveitando a saída de Inácio.
- Arrivederci!!! Disse Fausto, dando ”tchauzinho” com a mão.
- Meio esnobe, não??? Eu achava que ele era mais alto, cochichou Fausto.
Notei que comentavam mais sobre os convidados do que sobre as obras de arte.
Os dois tinham aparências antagônicas. Fausto era pequeno, quase careca, gordo e elétrico. Usava roupas de cores berrantes e gosto duvidoso. Virava uma taça de espumante e logo saia na busca de outra.
Otaviano tinha a pele de um branco quase transparente, magro, muito magro, e alto. Um tipo longilíneo e esquizóide. Usando grandes óculos de aro preto e grosso, com um rosto pequeno de queixo quadrado. Blazer preto, camisa branca, calça preta e tênis All star bordô, quase roxo. Roxo???!!! Segurava com delicadeza sua taça de champagne, que consumia lentamente. Os dois tinham entre trinta e cinco e quarenta anos, Fausto era o mais velho, sem dúvida.
Fausto falava sem parar e se esticava todo para fofocar no ouvido de Otaviano, que concordava com a cabeça, sem pronunciar palavra alguma. Quando achava muita graça, dava uma risada fungada, de curta duração.
“Quanta maldade nesses coraçõezinhos”, pensei e me afastei.
Meia hora depois, ao me desviar de uma linda adolescente apressada, esbarrei casualmente no garçom que servia champagne a Fausto.
- Oh!!!Mil perdões!!! Tentei me desculpar.
- Otaviano!!! Otaviano!!! Me deram um banho!!! Minha roupa nova!!!Venha me ajudar!!! Gritava Fausto, me “fuzilando” com os olhos.
Acho que naquele momento acabara de entrar para a sua lista negra.
Dias depois, leio em Fausto e Otaviano:
“...mesmo sabendo que não é do nosso “metier” a crítica musical, muito nos surpreendeu, de forma negativa, o concerto do Fat Hat Trio, em sua performance burocrática e pouco inspirada, no Memorial da América Latina.
Música linear e letárgica, que sem dúvida, nada acrescentou `a sensação de estarmos ouvindo um interminável cd, World Music, de relaxamento.
Uma real decepção, é “vero”, para um concerto tão incisivamente recomendado e classificado como imperdível por nosso colega....”.
Era a vingança!!!

sábado, 20 de fevereiro de 2010

2009

Não tenho boas lembranças de 2009. Foi um ano muito conturbado que demorou demais pra passar.
Gritos constantes, choro de filhas e o silêncio que às vezes durava dias. Aliás, foi uma relação que começamos como estranhos interessados e acabamos como estranhos que se odeiam.
Quem era aquela mulher??? Eu me perguntava. Como tive coragem de casar com ela??? Acho que o questionamento era similar de ambas as partes.
O desgaste já se fazia notar e cresceu muito quando tive um "affair" com Larissa, jornalista, ex-namorada da época de faculdade, que reencontrei na cobertura do Festival de Música Flamenca em Madri, em 2007, e que durou por quase todo o ano seguinte.
Já tinha terminado, mas fui flagrado!!! Mensagens de texto, algumas eróticas, que salvei no celular. Um apaixonado romântico e...idiota!!!
Culpa!!! Me sentia um sacana com Lígia, minha ex, mas principalmente por ter feito do lar de minhas filhas um inferno.
Isso tudo culminou com uma separação judicial, muito desgastante e nada razoável, no dia seis de agosto de 2009, depois de nove anos casado. Ligia, não queria ser razoável, aliás nenhuma mulher magoada quer.
Beijei minhas filhas enquanto dormiam e disfarcei o choro.
Sai de casa sorrateiramente, com minhas roupas, minha escova de dentes, dois livros, meus cds, meu violão, um Martin D15 1987, e meu carro, um Polo sedan 2005. O carro era de segunda mão, o violão, não.
Passei um mês em um flat de Higienópolis, antes de decidir o que fazer. E mais dois meses depois que decidi, e ainda mudei de idéia milhares de vezes.
Um vazio anestesiante, que conferia total falta de sentido as coisas, tomara conta de mim. Saía muito pouco e não atendia o telefone. Só falava com minhas filhas uma vez por dia, menos aos domingos, que não suportava falar.
Voltei a fumar após sete anos, seis meses e tres dias. Tinha largado o cigarro desde o nascimento de Michelle, minha primeira filha.
Passava o dia no quarto, ouvindo música alta em minha única aquisição, um cd player, assistia TV, tocava violão e fumava muito. Às vezes, tudo ao mesmo tempo.
Vivia nu e me cobria com o lençol, quando a camareira entrava. Ela era morena, baixinha, um rosto até bonito, com os dentes levemente tortos e um baita bundão, mas me ignorava completamente. Isso a tornava interessante. Limpava o quarto como se não houvesse ninguém ali. Uma vez, peidei alto, só para ver a sua reação, abriu a cortina e escancarou a janela, mas não disse uma palavra, nem mudou a sua expressão.
Permanecia horas com o violão no colo sem conseguir tocar uma música inteira sequer. Quando a quarta corda (D) arrebentou, passei por várias lojas de música, no Centro, examinei marcas novas e antigas de encordamentos, perguntei o preço de todas elas, mas não comprei nada. Não pelo preço, mas pela simples falta de ânimo, de decisão.
Só andava a pé. O carro nunca saía da garagem do flat.
Fabrício Quintana, editor chefe da revista Cultura Paulistana, meu melhor amigo e padrinho de minha filha mais velha, entre outras coisas, descobriu minha “caverna”, apareceu uma noite e me arrastou para jantar. Fomos no seu carro, que parecia um foguete espacial comparado ao meu.
- Cara, você tá um lixo!!! Assim não dá!!! Já te indiquei para duas matérias, até para a apresentação da Filarmônica de Israel com o Mehta, mas ninguém te achou!!! Desembestou a falar:
- Não dá pra parar de viver, não. Eu mesmo já te liguei milhare...
- Como me encontrou??? Perguntei, interrompendo.
- O telefone de sua mulher tem bi..
- Ex-mulher!!! E não é dela, fui eu que comprei!!! Interrompi de novo.
- É, o telefone que Lígia usa tem bina e você liga pra suas filhas todos os dias...
- Todos os dias, menos domingo!!! Na verdade, eu sentia muita falta de nossos passeios aos domingos.
- Para de me interromper, porra!!! É, eu liguei no número que aparece no bina e deu no flat.
Muito esperto, pensei. Estava agoniado, não queria companhia. Tive vontade de descer no primeiro semáforo.
- Ahah!!! Nem pense nisso, disse lendo meus pensamentos. E apertou a trava geral das portas do carro.
- Põe o cinto, vai, pediu.
Fomos ao restaurante Jardim de Napoli, pedi um spaghetti com funghi a la crema, que orientalizado, veio com shiitake e Fabrício, um polpettone.
Dei duas ou três garfadas e parei, não sentia fome.
- Já te disse que você está um lixo??? Parece doente!
- Obrigado, é a terceira vez que você me diz isso, respondi. Uma no quarto, outra no carro, aqui...
- Ah é mesmo, concordou. Abaixou o tom e perguntou:
-Você tá fodendo pelo menos???
Fiz que não ouvi e acendi um cigarro. O garçom me pediu para apagar, aquela era a área de não fumantes.
Fabrício adorava vinho. Enchia a boca com um longo gole, que sorvia lentamente, dando a impressão que o vinho derretia, murchando suas bochechas.
- Sabe, domingo de manhã, pego você e vamos olhar uns apartamentos para alugar.
É importante que não seja muito longe de sua ex-casa, pras meninas poderem freqüentar quando quiserem.
- Quem disse? Perguntei.
- Quem disse o quê? Retrucou.
- Quem disse que eu quero???
- Eu disse, e não vou discutir. Se você soubesse o que é bom pra você não estaria esse lixo!!!.
- É a quarta vez... Eu gosto de ser um lixo, desdenhei irritado.
- Gosta porra nenhuma!!! Tá querendo ser coitadinho??? Perguntou exaltado. Parece menino teimoso!!! Você sempre foi vaidoso. Só usa roupa de marca!!! Ninguém sorriu pra você hoje, nem aqui, nesse restaurante que você sempre freqüentou!!! E abocanhou o último pedaço de seu polpettone
Era verdade... Fabrício era um grande amigo, mesmo contra a minha vontade.
- E tem mais uma coisa...Segunda, dia sete, sete de dezembro, quero você lá na revista para tirar as férias do Romeu, disse enchendo a minha taça de vinho tinto.
- Do Romeu??? Tá louco??? O Romeu fala de urbanismo, da arquitetura da cidade, eu só sei o que é barroco e moderno, e olhe lá. Não estou interessado... Só quando ouvi o dia sete de dezembro é que me dei conta que já estávamos quase no final de 2009!!!
- Foda-se!!! Você se vira...Um brinde ao recomeço!!! Ele ergueu a taça.
Brindei, mas não pronunciei mais palavra alguma. Nem no restaurante, nem no caminho de volta ao flat.
Na despedida ele me abraçou forte e beijou minha bochecha.
- Faz a barba, seu viado!!! Disse, arrancando o carro.
Domingo, não saí para procurar o apartamento com Fabrício. Lígia finalmente cedeu e fui passear com as minhas filhas.
Mas, na segunda, apareci no emprego. E aquele emprego de um mês acabou durando dois anos, quase três. Claro, que não falando só de arquitetura. Foi uma das minhas melhores fases profissionais, sem dúvida.
Foi muito bom pra reconstrução de meu ego e a reorganização de minha vida.
Parei de fumar.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Ex-plicação*

Em épocas de solteiro, viajava muito para a cidade de São Simão, perto de Ribeirão Preto, no Nordeste do estado de São Paulo, a 300 quilômetros da capital.
Cidade charmosa, bucólica, dos Casarões dos Barões de Café e suas ruas de paralelepípedo. Dizem que até Dom Pedro II esteve por lá e se rendeu aos seus encantos.
Por incrível que pareça para uma cidade colonial fundada em 22 de abril de 1865, em tempos de férias e feriados, São Simão abriga um grande número de jovens, moradores ou não. E as lindas jovens eram, sem dúvida, um bom motivo pra visitar a cidade. Mas fiz bons amigos por lá também.
Viajávamos em turma e ficávamos em Bento Quirino, no sítio do Zeppa Tudisco, um amigo ímpar, criativo e engraçado. Uma de nossas diversões era inventar brincadeiras “cult”. Lembro especialmente de uma onde cada um atribuía uma explicação “sui generis” ao significado das palavras começadas por ‘Ex’, sobre coisas que foram e por que deixaram de ser. E, como era uma brincadeira falada, sonora e não escrita, as palavras começadas com ‘Es’ também eram consideradas válidas.
Vou citar aqui algumas “pérolas” para ilustrar:
— Exibir: mostrar com orgulho. Ibir era um menino pequeno e muito tímido, até que, com a maioridade, ele cresceu, tornou-se o maior de toda a sua aldeia, tomou gosto por se “amostrar” e até mudou de nome.
— Excitação: a transmutação de algo antes somente citado, para um “frenesi” constatado.
— Esposo(a): ser que insiste em se tornar, sabendo que está fadado a deixar de ser e a perder sua pose.
— Esquilo: pequeno roedor servido como iguaria nos restaurantes dos índios Navajos americanos que, por sua pequena gramatura, deixou de ser vendido a quilo e passou a ser oferecido por unidade.
— Escola: instituição frequentada por seres que querem deixar de praticar a “cola”; mas, por ironia, onde mais se “cola” é na Escola.
— Estrume: o que antes era 'trume' e virou bosta. 'Trume', sinônimo de 'cremento'.
— Excremento: o que antes era 'cremento' e virou merda. Cremento, sinônimo de 'trume'.
— Escamas: placas alérgicas defensivas surgidas na pele daqueles que trocaram suas camas por superfícies mais ásperas para dormir. “E os peixes, onde dormem???”
— Estratégia: forma planejada de ação. Tratégia, do romano Trategis, era a forma desorganizada como os gauleses gordos e bêbados travavam suas batalhas. E venciam!!! Mas, curiosamente, só funcionava com eles. Mágica???
— Escargots: moluscos gastrópodes herbívoros. Os Cargots, do latim afrancesado carga, eram lesmas muito velozes que, de origem, não carregavam o caracol. Foram designadas pelos Deuses do Olimpo a ajudar outros insetos no transporte de alimentos e provisões. Revoltadas com essa função subserviente, mandaram sua lesma campeã desafiar Mercúrio, o mais veloz dos Deuses, em uma corrida. Como prêmio pela vitória, almejavam a liberdade. Derrotadas, como castigo exemplar, ganharam um enorme e pesado caracol que reduz a sua velocidade em 99,9%. Assim, tornaram-se seres lentos, de fácil captura. Atualmente, em sua velocidade máxima, conseguem percorrer até cinco metros em uma hora. Os Escargots são considerados uma iguaria culinária pelos franceses, mas servem de alimento ao homem desde a pré-história.
— Esfera: forma arredondada abstraída da posição fetal depressiva, adotada pelos grandes campeões, os chamados “feras”, após inesperada sucessão de derrotas.
— Esquimó: povo que migrou de planícies desérticas escaldantes, onde se localizava a cidade de Qui-mó-calô, para regiões mais “frescas”.
— Excalibur: espada com a qual Arthur, rei dos bretões, aniquilava todos aqueles que zombavam de seu pequeno 'calibur' ou calibre, após a traição de Guinevere com Lancelot.
— Exílio: referente à expulsão de Ílio, grande guerreiro, que lutou bravamente para defender Fódera, sua cidade natal, da invasão dos cartagineses. Mas, derrotado e abandonado por Ímio, seu irmão, foi condenado a passar seus últimos anos de vida longe de sua amada cidade e de sua família.
— Exímio: referente à transformação sofrida por Ímio, irmão mais novo de Ílio, que fugiu covardemente durante a invasão de Fódera pelos cartagineses e se refugiou em uma caverna nos arredores da cidade. Lá, conhece um monge chinês cego que concorda em treiná-lo de forma intensa e insana. Milagrosamente, em cerca de uma hora de filme, esse treinamento torna Ímio o maior guerreiro já visto em Fódera!!! No segundo longa-metragem da saga, volta à Fódera para vingar seu irmão.
— Extinto: Aniquilado, eliminado por causas naturais ou não. Referente ao costume medieval de “dar cabo” de um sujeito e, de preferência, de toda a sua família, todos os seus parentes, todos os seus amigos, todos os seus serviçais, todos os seus conhecidos e alguns desconhecidos através da ingestão de vinho tinto envenenado.
— Extraterrestre: é alguém que já esteve… Hummm!!! O que era mesmo um ‘traterrestre’??? Talvez um terrestre “Extra”, um fora de série tão fora de série que parece que veio de outro planeta.
— Esclarecimento (Explicação): É o que nós damos para tornar claro e nos complica ainda mais. Uma forma abreviada de “Claro como pisar em cimento”.
E assim vai... Quer mais??
Quanta bobagem, meu Deus!!!
Saudade de São Simão e de sua gente querida e amiga, principalmente do Zeppa!!! Bons tempos!!!

*Ex-plicação é uma homenagem ao querido amigo Giuseppe Tudisco, o Zeppa, que nos deixou em 2022.


quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

In-Sônia

Assistir televisão à noite, depois de um longo dia de trabalho e um jantar não tão light é fatal, lá vem Morfeu me chamar. Desligo a TV, levanto do sofá, caindo de sono, quase tropeço em Stich, o Maltês de minhas filhas, que está passando umas férias comigo, até passar a TPM da mãe. Atravesso aquele corredor interminável, de 3.5m de comprimento, trançando as pernas. Chego ao meu quarto, nem acendo a luz, vou espalhando roupas pra todos os lados, e de cueca “samba canção”, mergulho em "slow motion" na minha cama de colchão Queen Size. O King Size, infelizmente, é grande demais para o meu "apertamento".
- Vem Morfeu!!! Vem que eu sou teu!!! E me jogo naqueles braços, que logo começam a me envolver. Humm... Isso soou meio gay, não foi??? Mas tudo bem, sem preconceitos!!!
- Mas, "pera aí", esses braços... Eu conheço!!! Não!!! Você não é Morfeu!!! É Sônia!!!
- Oi, gostosão... Ela responde com intimidade.
- E aí, sentiu saudades???
- Não, Sônia!!! Por favor!!! Cadê Morfeu??? Me deixa dormir!!! Eu tô precisando... Morfeu, me ajuda, porra!!! Grito em vão...
- Aaah!!! Vc vai me desprezar assim??? Vai resistir aos meus carinhos??? Cochicha em meu ouvido, enquanto suas mãos ágeis dançam pelo meu corpo. Aperta firme o meu pênis e diz: - Eu du-vi-do!!!
- Pô, você não entende... A gente já se viu essa semana... Assim eu não aguento!!!
- Relaxa, gato. Vem, fica comigo. Eu já tô toda molhada pra você...
Eu tentava resistir, mas minhas defesas começavam a falhar.
- Assim, dentro de mim... Encaixa!!! Ui... Que delícia!!!
- Ah, Sônia... Soninha... Eu juro que não queria...
Quando me dei conta já estava dominado... Dentro de Sonia, In-Sônia!!! E completamente sem sono!!!
Nosso sexo sempre começava assim, irresistível. Sônia é muito sedutora e tem um corpo maravilhoso. Mas acabava se tornando arrastado, interminável, e, o pior, sem clímax, não havia gozo, orgasmo, e sim um desgaste muito grande de energia e tempo. Tanto vai e vem pra nada. Sinceramente, essa repetição insalubre, sem a liberação de Endorfina, me deixava muito irritado!!! E claro, não tinha o depois pra relaxar!!!
- Chega!!! Sônia, vai pra casa, vai!!! Você não tem outro compromisso???
- Deixa eu ficar mais um pouquinho perto de você, vai???
- Não quero ser chato, mas preciso descansar. Eu trabalho amanhã!!!
- Ah, vai...
Não adiantava. Porta alguma ou fechadura eram empecilhos para ela entrar. E por mais que eu implorasse, Sônia só ia embora quando ela sentia vontade. Alguns dias, partia, quando notava que minha saúde não suportava mais o esforço, e em outros, só ao nascer do dia. Quantas vezes fui trabalhar sem ter pregado os olhos por um só instante sequer. A falta de sono torna meu dia um completo stress.
Após o sexo frustrante, para as noites não serem um total desperdício, comecei a tentar ser produtivo. Escrevo matérias adiantando o trabalho, crônicas, toco violão, leio, assisto filmes... E, uma coisa tenho de admitir, ela me acompanha por horas e mais horas, demonstrando o maior interesse. Às vezes até me surpreende:
- Gostei!!! O jeito como você descreve a dinâmica musical da orquestra... Quase consigo vê-los tocando. Tem vida, graça, movimento!!! "God gave you style and gave you grace"*...Cantarola.
- Obrigado! Apesar do cansaço, agradeço a gentileza e acredito em sua sinceridade. Mas o preço a pagar é caro demais. É como um vício de longa data, cada vez menos prazer, por um custo cada vez mais alto.
Nunca fui de dormir cedo, mas depois que entrei nessa relação louca, a situação saiu completamente de meu controle. Até Stich se escondia e evitava a presença de Sônia.
- Veja bem, não é que eu não goste de você, mas entenda, eu não sou mais um menino, e não aguento mais o ritmo de nossa convivência. Eu quero parar... Eu preciso parar!!! Eu preciso dormir, Sônia!!!
- Eu gosto tanto de você!!! Por que você sempre me rejeita??? E começava a choramingar, era sempre assim. Chantagista!!!
Mas de pouco adiantavam nossas discussões, pois invariavelmente ela voltava. E voltava como se nada tivesse acontecido. Sônia não tinha o mínimo de “se mancol”.
Eu não sabia mais o que fazer...
Meu amigo e editor chefe, Fabrício Quintana, preocupado com minha saúde, entregou me o cartão de um terapeuta de distúrbios do sono:
- Liga pra esse cara!!! Ele me deve um favor. Coloquei uma matéria falando bem dele na nossa revista há um tempo atrás. Não aguento mais ver você com essa cara de Zumbi!!!
Mas como eu ia fazer terapia para mudar a vontade de Sônia???
Liguei!!! Puro desespero. Eu precisava me livrar dela.
Falei à beça!!! Claro que não mencionei Sônia para não parecer maluco. Depois, o tal terapeuta me colocou em uma maca com vários fios na cabeça e um Mantra hipnótico tocando ao fundo. Dormi de roncar!!! Saí de lá com duas caixas, amostra grátis, de um remédio tarja preta. Um ansiolítico poderoso, eu suponho.
Como meu sucesso, dependia da vontade de Sônia de me deixar em paz, e isso, com certeza, não seria de sua espontânea vontade, preparei uma armadilha. Deitei com dois comprimidos na boca e assim quando ela viesse me beijar, passaria um comprimido para a boca dela. Ficaríamos relaxados, os dois, nos braços de Morfeu.
Acordo zonzo, perdi a hora do trabalho!!! Existe uma nuvem entre meu cérebro e meu corpo. Merda!!! Sônia não apareceu!!! Tomei os dois comprimidos. Como ela percebeu??? Sônia realmente é muito esperta!!!
Um café forte e um banho frio. Consigo ir trabalhar.
Fabrício desdenha:
- Quer dizer que ou não dorme nada ou dorme demais???
Nas últimas noites, Sônia não tem aparecido. Ela sabe que posso ter algo preparado.
Tenho conseguido dormir, mas acordo sempre preocupado. E quando o remédio acabar, será que ela vai voltar???

* "God gave you style and gave you grace": da música "God put a smile upon your face" do grupo Coldplay.
Nota do autor: "Grande parte da população mundial sofre de algum distúrbio do sono. Eu sou um deles. Tenho um sério problema de Insônia. E me perdoem o trocadilho infame, mas como não tenho uma namorada Sônia, eu preferia sinceramente estar “Out-Sônia”.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Guia de Sobrevivência

São Paulo, 7:45 P.M.
Hoje foi meu último dia como contratado da revista Cultura Paulistana. Foram quase três anos. Três anos que passaram como o vento. Foi um período muito bom, tanto pessoal como profissionalmente. Recuperei a minha auto-estima após uma separação conjugal conturbada, e adquiri desenvoltura e conhecimento para escrever sobre vários assuntos, sem preconceitos. Mas vinha sentindo que minha vida se tornara meio “morna” ultimamente.
Fabrício Quintana, meu amigo e editor chefe da revista, recusou veementemente minha demissão, mas eu insisti. Senti que chegou a hora de sair da comodidade de um emprego fixo, aceitar novos desafios e voltar a escrever sobre o que mais gosto: música.
A revista ocupa todo o décimo sétimo andar de um prédio com vista para a Marginal Pinheiros, próximo a Berrini. A grande sala da redação está praticamente vazia. Acho que somente uns “dois gatos pingados”, escondidos pelas divisórias, ainda permanecem trabalhando. Hoje é sexta feira, o “happy hour” é sagrado e, como estamos em dezembro, já festejam o final do ano. Aproveito o momento tranquilo para evitar uma despedida longa e chorosa.
Esvazio a minha “baia”, mas como não trouxe uma caixa de madeira ou papelão, como nos filmes americanos, pedi à Dona Antonia, da limpeza, dois enormes sacos de lixo preto. Seleciono o que presta e guardo nos sacos, o lixo mesmo fica de fora.
Em uma gaveta da escrivaninha, entre anotações quase incompreensíveis e agora inúteis, encontro uma folha de papel envelhecida com frases manuscritas. Sento na cadeira e dou um longo suspiro saudoso. Esse papel me acompanha desde o início da carreira profissional. Eu, na época, um sonhador candidato a escritor famoso, compilei essas frases como uma inspiração, como um guia, o meu “Guia de Sobrevivência”:
- Não há no mundo coisa mais difícil do que a sinceridade e mais fácil do que a lisonja. (Fiódor Dostoievsky)
- Aceita o conselho dos outros, mas nunca desista de sua própria opinião. (William Shakespeare)
- Escrever é traduzir em palavras o que já está escrito dentro de nós. (Kan Kato)
- O rascunho escrevemos com o coração. Depois reescrevemos com o cérebro. (William Forrester)
- Noventa por cento do que escrevo eu invento. Só dez por cento é mentira. (Manoel de Barros)
- Mentir com graça, de uma maneira pessoal, é quase melhor do que dizer a verdade à maneira de toda gente. (Dostoievsky)
- Os homens de poucas palavras são os melhores. (Shakespeare)
- Não há assunto tão velho que não possa ser dito algo de novo sobre ele. (Dostoievsky)
- Tenho pensamentos que, se pudesse revelá-los e fazê-los viver, acrescentariam nova luminosidade às estrelas, nova beleza ao mundo e maior amor aos homens. (Fernando Pessoa)
- Deus está nos detalhes. (Lema de Walter Clark)
E uma observação ao pé da página: Leia sempre “O menino que carregava água na peneira”. Um poema de Manoel de Barros que Larissa, meu grande amor dos tempos de faculdade, enquadrou e me deu de presente de formatura com a dedicatória: “Pro meu menino que carrega água na peneira”.
Fico feliz, que mesmo não tendo sido um Nobel de literatura, essas frases continuam reverberando e sendo verdadeiras dentro de mim.
Enxugo as lágrimas e vou para casa, eu e meus preciosos sacos de lixo.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Nepal (Capítulo Um)

Cordilheira do Himalaia, ou Morada das Neves, mais de 4000m acima do nível do mar. Na tarde do sexto dia, éramos três a subir lentamente por aquelas trilhas desertas. Pradip, o guia sherpa*, que seguia a pé, Maritza, a fotógrafa, e eu montados nos yaks, que nos carregavam e levavam a nossa bagagem. Respirava com certa dificuldade, o ar rarefeito parecia que não chegava aos pulmões. Sentia cansaço e um pouco de tontura. Minha hérnia de disco lombar incomodava bastante e o cheiro forte dos yaks me enjoava também. Estávamos no Reino do Nepal.
Mas o que eu estava fazendo ali???
Eu explico. Ia sair de férias e pretendia passar um mês sem escrever nada, nem um email se quer. Mas aí recebi um telefonema de Fabrício Quintana, editor chefe da revista Cultura Paulistana, que sempre me considerou um competente “pau pra toda obra”, com uma proposta irrecusável: passagem, todos os custos da viagem pagos e mais US$3.500 dólares. Ele estava fascinado com um email e fotos que recebera de seu amigo francês, Phillip Tresour, sobre um povoado himalaio. Não quis me dar muitos detalhes de seus habitantes misteriosos, simplesmente disse com entusiasmo: “Cara, se pudesse, eu mesmo iria!!!”
Mesmo sendo conhecido como um jornalista ou cronista musical (odeio a denominação crítico, parece alguém destrutivo, que tem prazer em falar mal do trabalho alheio) me julgo bastante versátil para abordar convincentemente vários assuntos (e adoro desafios!!!). Mas esse, em especial, foi o mais inusitado de todos. Pode ser classificado como... hummm...uma grande curiosidade antropológica, ou um apêndice do caminho evolutivo.
O Nepal é o país mais pobre da Ásia, localizado entre a China e a Índia. Pousei em Kathmandu, a capital, situada a 1.300m de altitude, num final de tarde de maio. A cidade fica em um vale do mesmo nome e, por incrível que pareça, o grande problema dela é a poluição ambiental.
Encontrei Maritza no saguão do Hotel Shanker, um antigo palácio transformado em um belíssimo hotel, ela chegou direto de um editorial de moda na Muralha da China. Já tínhamos sido apresentados por Fabrício no Brasil, mas era o nosso primeiro trabalho em conjunto. Fizemos um passeio noturno de taxi pelas ruas estreitas e jantamos no restaurante Barbamahal, provamos o Alu Tama, um prato típico com brotos de bambu temperado com curry. Viemos na Primavera local, com uma temperatura bastante agradável, pelo menos nas baixas altitudes.
No dia seguinte, após subir os nove andares da Torre Dharahara para uma visão panorâmica da cidade e uma rápida visita ao Templo Budista Swayambhunath, conhecido como o templo do macaco pela grande presença de pequenos símios no seu interior e arredores, fomos de taxi bicicleta, estilo "rikisha", até os limites da cidade. Lá, subimos na carroceria de uma antiga caminhonete e viajamos os primeiros 150km em uma estreita estrada de terra de mão dupla, onde passamos por muitos sustos de quase acidentes. Fomos deixados em uma bifurcação da estrada, onde nos esperavam o guia e três carregadores, iniciamos nossa jornada por um caminho ascendente de trilhas de terra batida com um calçamento esparso de pedras de diversos tamanhos. Caminhávamos com a ajuda de “bengalas”, que pareciam tacos de cricket com um apoio lateral para a mão.
Atravessamos algumas pontes muito altas, sobre vale e rios, umas rústicas, outras já mais modernas de metal, suspensas por cabos de aço.
Encontramos muitos turistas estrangeiros subindo e descendo essas trilhas, com carregadores locais, transportando sua bagagem, além de grupos de peregrinos liderados por seus shamans. Passamos por inúmeros vilarejos até chegar a Phakding, situado a 2.610 m de altitude, onde trocamos os carregadores por yaks e pegamos uma trilha alternativa, não utilizada por turistas ou alpinistas que vão ao Everest e ao Parque Nacional de Sagarmatha**. O caminho agora se tornara mais estreito e íngreme. Nossa “missão” devia ser executada com toda a discrição possível.
A beleza da paisagem, com os picos sempre cobertos de neve e os vales verdejantes abaixo, é encantadora e única. Maritza documentava tudo com sua câmera. Fazia belas fotos com um olhar muito particular. Sem dúvida uma mulher interessante. De olhos expressivos e falantes. Os olhos falantes e muitas vezes a boca também.
Quase morri de raiva quando ela me contou que Fabrício aceitou aumentar o cachet dela para US$5.000,00 dólares por causa do equipamento.
Pela disposição e firmeza, via-se que ela praticava exercícios regulares.Tinha um corpo mignon, mas bem provida de formas, escondidas pelo excesso de roupas largas e confortáveis. Algo no jeito como ela falava de Fabrício fazia crer que existia algum envolvimento especial entre eles.
Parávamos de tempos em tempos para descansar, alongar e fazer uma refeição, da qual faziam parte chura, que são bolinhos de arroz batido, carne seca e salgada de yak, chhurpi, o queijo de leite de yak e tomávamos um chá gorduroso e enjoativo de manteiga de yak, um energético local. Comia, com uma certa culpa, sem coragem de encarar os nossos animais de carga. A carne seca vinha de alguns povoados das planícies baixas, não hinduístas ou budistas, que permitem o sacrifício animal. O guia comia sempre pequenas pimentas verdes, muito fortes, dizia que fazia bem para o coração, espantava o frio e ajudava a manter a atividade corporal.
Dormimos as três primeiras noites em pequenos vilarejos, onde o nosso maior luxo foi ter um chalé com banheiro. Provamos o Dal Bhat, que é o arroz com feijão nepalês, só que em vez de feijão usam lentilhas. Grande parte do povo do Nepal come Dal Bhat todos os dias, duas vezes ao dia. A presença de verduras na refeição é constante, a de carne é rara. A plantação local é feita em forma de grandes degraus, platôs escavados nas encostas.
Em nossa quarta noite, a primeira em barracas ao relento, Maritza descalçou sua bota, junto à fogueira. Na hora pensei que um yak havia flatulado e me afastei. Mas logo percebi que aquele cheiro horroroso era o “chulé” do pé de Maritza, que ficara em “conserva” dentro daquela bota o dia todo. Argh!!! Já estava enjoado. Fiquei verde musgo!!! Quase vomitei... O guia olhava para mim e gargalhava. Maritza ficou sem jeito calçou a bota de volta e resmungou disfarçando: “Que animais fedorentos, meu Deus!!!” Não conseguia acreditar que aquela “bomba biológica” tinha vindo do pé de uma mulher tão pequena e atraente.
Às vezes ouvíamos rugidos de Leopardos das Neves, mas o guia dizia que dificilmente eles atacam seres humanos, pelo contrário, sabiamente, eles nos evitam
Queríamos chegar a misteriosa aldeia "Pedra sobre as Nuvens", antes do anoitecer do sexto dia.
Nosso guia, Pradip, entoava ciclicamente um incompreensível mantra, cheio de comas***, mal falava inglês e utilizava mais gestos e mímica do que palavras para se comunicar conosco. Ele tinha sido o guia de Philippe Tresour, e era um dos poucos que conhecia esse caminho.
Já era quase o fim de tarde do dia previsto para a nossa chegada, vendo o nosso cansaço, Pradip sinaliza que estamos perto, quase chegando.
Subimos mais um ou dois quilômetros, já não sabia ao certo, e chegamos a um certo ponto da trilha onde repentinamente as pedras acabam e continua em um chão de terra batida alisada e com marcas que lembravam as de pneus. Pneus??? Será que usam algum tipo de carro nessas alturas??? As marcas eram muito largas para serem de rodas de carroça.
De repente, surge pela trilha algo que vem rolando ladeira abaixo em nossa direção!!! Rolando velozmente como um pneu!!! E logo em seguida vêm mais dois menores!!!
Olhava boquiaberto com o coração disparado. O que era aquilo??? Maritza fotografava sem parar.
- Children!!! Disse o guia.
- What??? Perguntei.
- Children!!! Repetiu, apontando os "pneus".
De repente, chegando a uns cinco metros de nós, frearam, se desenrolaram e num pulo se puseram de pé e baixaram o capuz do casaco.
- São crianças!!! Disse Maritza, sorrindo.
Eu estava extasiado sem palavras.
Ali estavam a nos fitar com suas bochechas rosadas, corpos pequenos e fortes, três crianças. Um garoto de uns doze, treze anos e outros dois, um menino e uma menina, que não passavam de dez. Esse era o nosso primeiro contato com os fantásticos habitantes daquela aldeia, que apelidei mais tarde de “O povo Tatu Bola”.
-Namastê!!! Saudou Pradip sorrindo e aproximou-se deles oferecendo bolinhos de chura. Parece que já eram conhecidos. As crianças aceitaram sem tirar os olhos de nós. A fascinação era mútua.
Maritza agilmente saltou do yak e começou a se aproximar dos meninos para fotografá-los. Os dois menores correram para trás do maior. O guia fez um gesto para que ela parasse. Não seria bom assustar o nosso comitê de “boas vindas.
Pradip pediu a eles que nos guiassem até a aldeia. Seguimos mais um tempo pela trilha, mas esquecemos completamente do cansaço com a presença dos meninos. Minha hérnia quase não incomodava mais. As crianças iam à nossa frente. Corriam e depois paravam esperando que chegássemos perto. Não como pneus, lógico, eles não rolavam ladeira acima. De repente correram e começaram a gritar. As crianças anunciavam a nossa presença à aldeia.
Chegamos!!! Finalmente, chegamos a "Pedra sobre as Nuvens"!!!
Em um platô, cercado por um muro baixo de pedras, estavam acomodadas em um semicírculo, não mais do que 15 casas, todas de madeira, com chaminés de pedra. Ao fundo se destacava imponente o pico nevado do Manaslu*, uma das montanhas mais altas do mundo.
Com o grito das crianças, os moradores saíam de suas casas e nos observavam. Alguns vinham em nossa direção e paravam a uma distância respeitosa. Olhavam para nós com um misto de curiosidade e desconfiança. Eram todos de pequena estatura, os homens não tinham mais de 1,65m e as mulheres eram uns 10cm menores. Fortes, de cabeças grandes, pescoços curtos e grossos. A pele parda, queimada, e os olhos amendoados. Lembravam um pouco os esquimós.
-Namastê, repetíamos para aqueles olhos curiosos, mas sem resposta alguma.
Nosso guia se aproximou para tentar conversar. Na realidade, éramos os primeiros estrangeiros, em mais de vinte anos, na aldeia. Phillip montou acampamento perto do vilarejo e limitou-se a tirar fotos com uma teleobjetiva.
Fomos encaminhados a uma casa que ocupava uma posição central no semicírculo, a casa da matriarca da aldeia. Ela estava à porta observando tudo. Uma pequena senhora toda enrugada, com uns 80 anos de idade, não mais do que 1,50m de altura, com o cabelo todo branco e preso. A ela caberia a decisão de podermos ou não ficar na aldeia.
O guia ofereceu mantimentos em troca de nossa estadia, mas a anciã, “dura na queda”, não parecia muito disposta a ceder. Já estavam a discutir avidamente por mais de quinze minutos. Pradip nos dizia que ela queria saber o porquê e o para quê de nossa visita. Por mais que argumentássemos, ela não se dava por satisfeita, e era proibido nos dirigirmos diretamente à matriarca. Quando tudo parecia se encaminhar para a nossa frustrante volta trilha abaixo, Maritza mexe em sua mochila e para espanto geral se encaminha para a anciã. O que ela pretendia fazer???
- Maritz...Antes que eu terminasse de chamá-la ela se aproxima com uma reverência respeitosa e presenteia a matriarca com alguns objetos.
A anciã fita demoradamente aqueles presentes: uma sandália de borracha, bem feminina com estampa floral, tamanho 35/36, grande para ela, uma escova de cabelo e um batom vermelho com protetor solar. Ela parece que não entende bem como destampar o batom. Maritza pega o seu no bolso do casaco e faz uma demonstração.
De repente, a matriarca abre um sorriso e diz algumas palavras.
Pradip traduz: “ Ok. One week!!!”
O povoado todo comenta a decisão, a maioria se mostra resistente à nossa presença, mas comemoramos como um gol em final de campeonato.
Abracei Maritza e cochichei: “É assim que os colonizadores tapeavam os índios...”
- Desça a trilha com Pradip, se você preferir... Ironizou ela.
A permissão de estadia não se extendia a Pradip. Ficaríamos sem o guia durante nossa aventura na aldeia.

*sherpa: etnia originária das altas regiões montanhosas do Nepal.
**Sagarmatha: ou Grande-mãe do Universo é o nome original do monte Everest.
***comas: no intervalo temperado de 1 tom existem 9 comas musicais. No sistema temperado ocidental de tons e semi- tons eles não são considerados.

A Manhã Seguinte ( Nepal Capítulo 2)

Acordo de sobressalto com os gritos de Maritza. Corro para a porta da casa que nos cederam e a encontro paralisada de medo. Um jovem leopardo das neves estava na entrada da casa agachado, com o olhar fixo sobre ela. Puxo Maritza para dentro da casa e falo baixo, quase cochichando: - Calma, devagar...muita calma...
O susto foi mútuo. O leopardo está numa posição defensiva, não de ataque. Pego uma vassoura  de palha  que estava encostada na parede e tento enxotar a fera: - Xô!!! Sai daqui...Passa!!! Ela ruge e responde com patadas na vassoura.
Vários habitantes observam nossa situação, mas ninguém toma providência alguma ou demonstra grande preocupação.
 Será que é assim que exterminam os estranhos que visitam a aldeia???
Mas percebo que as patadas do leopardo são leves, ele não tem intenção de me ferir. Mas o que será que esse felino quer de nós???
De repente ouço um assobio. O leopardo prontamente reconhece o chamado e vai em sua direção. Vejo que quem chamou a fera foi o “menino pneu”, o maior, do dia anterior. Ele o espera com uma tigela cheia de leite de yak na porta de outra casa. O leopardo docemente se aproxima do menino e ganha sua refeição matinal e carinho. Os aldeões que acompanharam a confusão toda dão risada e voltam aos seus afazeres. Entendi!!! A casa que ocupávamos era da família do “menino pneu”. O leopardo, como de costume, veio receber o seu café da manhã, e deu de cara com Maritza. E na verdade, ninguém queria nos aniquilar.
Fiquei meio envergonhado e volto para dentro de casa. Não sem antes notar que as botas de Maritza, que dormiram do lado de fora, por razões óbvias, estavam cheias de folhas. 

Olhei para Maritza e disse: - Exagerada!!!

- Desculpe, como eu ia saber??? Respondeu ela.
- Saber o quê???
- Saber que o bicho é manso...Quase fiz xixi nas calças de medo!!!

- Tá tudo bem...Eu teria feito xixi e cocô... Vou deitar mais um pouco. Resmungo e volto para cama.
 As camas eram peças  de madeira maciça onde estendemos nossos sacos de dormir.
 Eram muito duras e desconfortáveis. Rústicas como todo o resto da casa. Depois da viagem, meu corpo estava todo dolorido, parecia que tinha tomado uma surra.

Ouço a voz de Maritza: - Sacanagem!!! Encheram minhas botas de folhas... Quem será  que fez isso???

- Acho que foi o Leopardo, respondo. 

De repente, uma luz me vem à cabeça:
- Maritza,...
- Oi???

- ...cheire sua bota!!!

- O quê??? Maritza aparece na porta do quarto segurando as botas.
- Cheire suas botas!!!
- Tá de sacanagem, é???

- É sério!!! Levanto da cama e vou em sua direção. Tomo uma bota de sua mão e aspiro profundamente. Faço uma cara feia e simulo um princípio de desmaio.
- É brincadeira!!! Digo me recompondo.

- Engraçadinho!!!
- Como eu pensei!!!

- O quê???

- Não tem chulé, Maritza!!!
- Não??? 

- Essas folhas têm uma mágica muito poderosa!!!! Se não, o leopardo teria fugido do cheiro!!!
- Para com isso!!! Diz Maritza, me acertando um leve tapa no braço.
- Ai!!! Caio na risada e corro pra porta que ficou aberta.
Paro no susto!!! Maritza vem logo atrás e quase tromba em mim.
De pé parada na porta da casa encontro a anciã, matriarca da aldeia.

Envergonhados, parecíamos alunos travessos pegos em flagrante pelo diretor da escola, cada um com uma bota na mão.

A anciã estava de batom, com os longos cabelos brancos escovados. Para não rir, desvio meu olhar para baixo e vejo que ela usa as sandálias dois números acima do tamanho de seu pé. Maritza me dá um cutucão entre as costelas. Tampo a boca, segurando a risada e disfarço com uma tossida.

A matriarca transforma a seriedade em um gentil sorriso e oferece um cesto cheio de folhas para Maritza. Folhas iguais as das botas!!! Era uma retribuição pelos presentes do dia anterior.
Maritza aceita o presente com uma reverência e, sem saber o que dizer, balbucia um “Thank you very much”. Como Pradip não tinha autorização de ficar no vilarejo, descera para uma das aldeias mais próximas e voltaria em uma semana. Não tínhamos guia e não sabíamos Parbatya, o dialeto falado na aldeia.
Para nossa surpresa, Tamushyo, esse era o nome da senhora, responde com clareza:”You’re welcome.” E se vai.

Ficamos boquiabertos. Ouvimos outras risadas pelo vilarejo.
- Maritza, acho que seu chulé ficou famoso na aldeia toda!!!

- É, pior que é verdade....