Acordei de sobressalto com os gritos de Maritza. Corri para a porta da casa que nos cederam e a encontro paralisada de medo. Um jovem leopardo das neves estava na entrada da casa agachado, com o olhar fixo sobre ela. Puxei Maritza para dentro da casa e falei baixo, quase cochichando: - Calma, devagar...muita calma...
O susto foi mútuo. O leopardo estava numa posição defensiva, não de ataque. Pego uma vassoura de palha que estava encostada na parede e tentei enxotar a fera: - Xô!!! Sai daqui...Passa!!! Ela rugiu e respondeu com patadas na vassoura.
Vários habitantes observavam nossa situação, mas ninguém tomava providência alguma ou demonstrava grande preocupação.
Será que é assim que exterminavam os estranhos que visitam a aldeia???
Mas percebi que as patadas do leopardo são leves, ele não tinha intenção de me ferir. Mas o que será que esse felino queria de nós???
De repente ouvi um assobio. O leopardo prontamente reconheceu o chamado e foi em sua direção. Vi que quem chamou a fera foi o “menino pneu”, o maior, do dia anterior. Ele o esperava com uma tigela cheia de leite de yak na porta de outra casa. O leopardo docemente se aproximaou do menino e ganhou sua refeição matinal e carinho. Os aldeões que acompanharam a confusão toda deram risada e voltaram aos seus afazeres. Entendi!!! A casa que ocupávamos era da família do “menino pneu”. O leopardo, como de costume, veio receber o seu café da manhã, e deu de cara com Maritza. E na verdade, ninguém queria nos aniquilar.
Fiquei meio envergonhado e voltei para dentro de casa. Não sem antes notar que as botas de Maritza, que dormiram do lado de fora, por razões óbvias, estavam cheias de folhas.
Olhei para Maritza e disse: - Exagerada!!!
- Desculpe, como eu ia saber??? Respondeu ela.
- Saber o quê?
- Saber que o bicho é manso...Quase fiz xixi nas calças de medo!!!
- Hahhahhaha! Tá tudo bem...Eu teria feito xixi e cocô... Vou deitar mais um pouco. Resmunguei e voltei para cama.
As camas eram peças de madeira maciça onde estendemos nossos sacos de dormir.
Eram muito duras e desconfortáveis. Rústicas como todo o resto da casa. Depois da viagem, meu corpo estava todo dolorido, parecia que tinha tomado uma surra.
Ouvi a voz de Maritza: - Sacanagem!!! Encheram minhas botas de folhas... Quem será que fez isso???
- Acho que foi o Leopardo, respondi.
De repente, uma luz me veio à cabeça:
- Maritza,...
- Oi?
- ...cheire sua bota!!!
- O quê??? Maritza apareceu na porta do quarto segurando as botas.
- Cheire suas botas!!!
- Tá de sacanagem, é???
- É sério!!! Levantei da cama e fui em sua direção. Tomei uma bota de sua mão e aspirei profundamente. Fiz uma cara feia e simulei um princípio de desmaio.
- É brincadeira!!! Disse me recompondo.
- Engraçadinho!!!
- Como eu pensei!!!
- O quê???
- Não tem chulé, Maritza!!!
- Não???
- Essas folhas têm uma mágica muito poderosa!!!! Se não, o leopardo teria fugido do cheiro!!!
- Para com isso!!! Disse Maritza, me acertando um leve tapa no braço.
- Ai!!! Cai na risada e corri pra porta que ficou aberta.
Parei no susto!!! Maritza veio logo atrás e quase tromba em mim.
De pé parada na porta da casa encontramos a anciã, matriarca da aldeia.
Envergonhados, parecíamos alunos travessos pegos em flagrante pela diretora da escola, cada um com uma bota na mão.
A anciã estava de batom, com os longos cabelos brancos escovados. Para não rir, desviei meu olhar para baixo e vi que ela usava as sandálias dois números acima do tamanho de seu pé. Maritza me deu um cutucão entre as costelas. Tampei a boca, segurando a risada e disfarcei com uma tossida.
A matriarca transformou a seriedade em um gentil sorriso e ofereceu um cesto cheio de folhas para Maritza. Folhas iguais as das botas!!! Era uma retribuição pelos presentes do dia anterior.
Maritza aceitou o presente com uma reverência e, sem saber o que dizer, balbuciou um “Thank you very much” em inglês. Como Pradip não tinha autorização de ficar no vilarejo, descera para uma das aldeias mais próximas e só voltaria em uma semana, não tínhamos guia e não sabíamos Parbatya, o dialeto falado na aldeia.
Para nossa surpresa, Tamushyo, esse era o nome da senhora, respondeu com clareza: ”You’re welcome.” E se foi sorrindo.
Ficamos boquiabertos. Ouvimos outras risadas pelo vilarejo.
- Maritza, acho que seu chulé ficou famoso na aldeia toda!!!
- É, pior que é verdade....
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