terça-feira, 4 de dezembro de 2012

O Dilema (Nepal Capítulo 4)

Acordei cedo e saí para andar pela aldeia.
Amanhã, Pradip subiria a montanha para nos levar de volta a civilização, o que me fazia refletir mais ainda sobre divulgar ou não os segredos de “Pedra Sobre as Nuvens” e seu povo.
Passei pelo curral dos yaks, onde as mulheres ordenhavam as fêmeas. Eles utilizavam quase tudo dos yaks: leite, lã, esterco, menos a carne.
Depois caminhei pelas plantações, em forma de grandes degraus, que só eram cultivadas na primavera e verão. Os aldeões usavam a água de um rio que se originava da neve e gelo derretidos no alto das montanhas para irrigar o plantio, aliás essa água era usada para tudo.
Passo por uma jovem mãe, que na frente de sua casa, sobre uma manta, aproveita o sol matutino para fazer exercícios de “rolamento” com o seu bebê, que ainda mal andava. Assim era a iniciação do “povo tatu bola”.
Todos me cumprimentavam no caminho, alguns até sorriam, e isso só me fazia sentir pior. Ou “trairia” os aldeões ou a confiança que Fabrício Quintana, editor da revista Cultura Paulistana (e meu melhor amigo), tinha depositado em mim e em meu trabalho. Publicar uma matéria dessas poderia me proporcionar também grande visibilidade e destaque profissional.
Pela manhã as crianças frequentavam a escola, na casa maior da aldeia, cuja professora era Ashmi, neta de Mama Tamushyo. Ashmi era bela e longilínea, mais alta e diferente do padrão geral dos habitantes da aldeia. Foi conversando com ela (ela falava inglês!!!), que conheci um pouco mais da vida da matriarca da aldeia e sua família.
Mama era muito irrequieta e curiosa quando jovem. Com vinte anos incompletos, ela foi embora da aldeia em busca de um universo mais amplo. Foi para Kathmandu, onde arrumou trabalho na casa de uma família aristocrática, muito rica. Incentivada por eles, aproveitou o tempo disponível para estudar. Sete anos depois, Mama, repentinamente, voltou para a aldeia. Trazendo com ela um bebe de colo, era Sophia, a mãe de Ashmi.
Dizem que o pai de Sophia era o filho caçula da família rica. Existiam versões de estupro e de uma grande paixão, mas de qualquer maneira, Mama e a filha não foram aceitas como membros da família e ela nunca quis falar sobre o assunto.
Usou o dinheiro que guardou, mais a “indenização” dada pela família, para construir a escola da aldeia e comprar o material didático necessário. Mesmo com a rejeição inicial dos mais velhos, a escola provou o seu valor e Tamushyo , sua primeira professora, começou a se tornar, ali, a mulher mais poderosa da aldeia.
Na adolescência, Sophia, foi mandada para a capital para estudar em uma escola de freiras, a “Sacre Coeur de Marie”. Contrariando a vontade de Mama, Sophia se apaixonou por um professor durante a faculdade de medicina e ficou morando em Kathmandu. Mas o professor, pai de Ashmi, veio a falecer em um acidente de carro, no trânsito caótico da cidade e Sophia retornou a “Pedra sobre as Nuvens”. Ashmi, só conheceu a aldeia e sua avó aos nove anos de idade e não sabia rolar, como um pneu, como as outras crianças. Nunca pode participar da competição de verão da aldeia, que era uma corrida “downhill” do “Povo Tatu Bola”. Era alvo de “bullying” por ser magra, alta e incapaz de rolar.  Como professora, hoje, era muito respeitada, mas até a adolescência, odiava a aldeia e seu sonho era voltar a viver na capital.
Por falar em rolar, eu tinha feito minhas tentativas junto com Kumar, o maior dos três “meninos pneu”  que eu conhecera no nosso primeiro encontro. Ele se tornou o meu melhor amigo na aldeia. Seguindo suas orientações e copiando sua movimentação, coloquei um casaco com capuz do maior morador da aldeia, com reforço na nuca e coluna e tentei rolar ladeira abaixo. Fracasso total!!! Tudo o que consegui foi uma crise de hérnia lombar. O chá e a massagem com mosha bustão de Sophia, mãe de Ashmi e médica da aldeia, ajudaram bastante em minha recuperação. Claro que tomei também os meus inseparáveis analgésicos e desinflamatórios halopáticos.
Encontrei Maritza tirando suas fotos pela aldeia.
- Bom dia!!! Aproveitando a luz da manhã??? Perguntei indo em  seu encontro.
- Com certeza!!! E você, caiu da cama??? Ironizou.
- Estou meio ansioso, não consegui dormir bem. Digo alongando as costas, demonstrando um certo desconforto físico.
- É...temos que decidir que fim vamos dar a esse material. Se entregamos tudo, parte ou nada para Fabrício. E temos que decidir juntos, a minhas fotos não podem contrariar a sua matéria.
- Eu sei...de todo jeito vamos enganar alguém. O pior é que acho que como jornalista deveria entregar o trabalho que aceitei fazer...
- Mas a exposição desnecessária da aldeia e suas consequências me incomodam mais. Afirmou Maritza.
 Sua convicção chegou a me perturbar, pois eu ainda não tinha conseguido chegar a uma decisão. Senti vontade de argumentar, mas cocei a barba mal feita e disse:
- É... você pode ter razão.
Voltei a caminhar só.

Retorno à cabana para o almoço. Cardápio: arroz, churpi, um queijo de leite de yak e verduras em conserva. Os complementos, palitos de carne seca (corned beef sticks, made in USA),  e os saquinhos de pozinho mágico para comer com o arroz (furikake, made in Japan), foram as saborosas contribuições de Maritza à nossa refeição.
Limpei a louça enquanto nossa fotógrafa armava seu carregador solar portátil para recarregar seu equipamento. Não sabendo que contaria com tal tecnologia, deixei o meu notebook em casa e fazia todas minhas anotações por escrito, em um bloco de papel. Maritza me ofereceu seu computador, mas orgulhoso, declinei, fingindo que preferia escrever.

A tarde encontro Kumar e saímos para caminhar.
Eu lhe ensino o nome das coisas em português e ele me ensina em Parbatya*.
Sentamos em uma grande pedra onde ele assobia, e logo, surgido do nada, temos a companhia de seu mascote, o leopardo das neves. O felino deita aos pés do menino e pede carinho como qualquer gato doméstico. Arrisco um primeiro e leve afago e vejo que o grande bichano não me estranha mais. Estar ali naquela paisagem grandiosa, com o “menino pneu” e seu leopardo, mexem comigo e me trazem lágrimas aos olhos. Kumar me pergunta por que choro.
 - Paz...sinto muita paz aqui e tenho um grande dilema!!! Respondo sem precisar tentar traduzir e acaricio a cabeça do menino.
De dentro do casaco, tiro um de meus maiores tesouros e dou de presente a Kumar.
- Brazil!!! Football!! Grita o menino.
Era a camisa da seleção brasileira de futebol, campeã do mundo em 2002, com o autógrafo de Ronaldo, o Fenômeno.
- O-bri-go-do!!! Diz Kumar, extasiado.
- O-bri-ga-do. Corrijo.
- Ah!!! Obrigado!!! Repete o menino feliz.
Caminhamos por mais um tempo, com Kumar, já vestindo a camisa amarela, ensaiando  jogadas maravilhosas com uma bola imaginária. Dava dribles desconcertantes  em seu marcador implacável, o leopardo, e eu como se fizesse parte de uma torcida em um estádio lotado, vibrava e gritava olé.
Vejo ao longe Maritza com sua teleobjetiva, documentando aquele momento.
Até hoje essa foto é o papel de parede de meu notebook.

No dia seguinte Pradip, nosso guia, chega cedo a aldeia.
Temos que aproveitar a luz do sol, a viagem é longa.
Nos despedimos dos habitantes da aldeia com um profundo sentimento de gratidão, por essa experiência ímpar.
Ganhamos várias lembranças e Maritza leva como seu bem mais precioso, um grande saco de estopa, cheio da milagrosa folha “anti-chulé”, presente de Mama Tamushyo.
Na despedida Mama me aconselha:
- You’re a good man. Let your mind follow your heart.
Fico pasmo, como ela sabia do meu dilema???
Ashmi me da um abraço caloroso e um beijo no rosto.
- Gostou, hein??? Cutuca Maritza.
- Estou me sentindo o próprio Humphrey Bogart em Casablanca, respondo.
É hora de ir, subimos nos yaks para a partida.
Alguns aldeões vão até a entrada de “Pedra sobre as Nuvens” acenar, e
as crianças nos acompanham rolando por um trecho em ladeira.
Maritza com os olhos úmidos, não parava de tirar fotos.
Não vi Kumar, sinto sua falta, mas talvez ele não quisesse se despedir.

Uns dois kilometros adiante ouço o chamado de uma voz familiar.
Era Kumar e seu leopardo, em uma encosta lateral, sobre a nossa trilha.
Vestindo a camisa da Seleção Brasileira ele grita a plenos pulmões:
- Gooooool do Brasil!!!!!!!!
Emocionado, levanto o punho e soco o ar, comemorando com ele.
O eco de sua voz ressoa entre as montanhas. 

Não tinha mais dúvidas, ali tomei minha decisão.


Parbatya*: língua das montanhas do Nepal

O Gênio Da Grande Área


Diferente do volley ou basquete, onde a altura exerce uma real influência, o futebol é um esporte onde os baixinhos geniais ainda podem fazer a diferença. Um em especial, mudou a sorte do Brasil, na Copa de 1994. Aquele apelidado pelo craque holandês Johan Cruijff de “o gênio da grande área”: Romário.
Graças a teimosia da dupla Parreira e Zagallo, o “baixinho” vinha sendo excluído do grupo da seleção brasileira nas eliminatórias, por motivos disciplinares, e só foi convocado na última partida, contra o Uruguai, por pressão popular. O Brasil estava “mal das pernas”e corria o risco de ficar, pela primeira vez, fora de uma Copa do Mundo. Resultado: Brasil 2X0 Uruguai.  Estávamos classificados, com dois gols dele, Romário, ídolo e jogador do poderoso Barcelona da Espanha.
Aos vinte e quatro anos,  eu cursava o último ano da faculdade de Jornalismo na Cásper Líbero. Antes tinha cursado um ano e meio de Música, na ECA, da Universidade de São Paulo, mas desisti.
O aprendizado formal de música não me fascinou tanto, e na realidade, eu não era um músico tão talentoso como gostaria de ser. Estava decidido a ser um jornalista. Apesar de já escrever matérias pra revistas culturais, principalmente sobre música, ainda tinha a vontade de abordar o assunto esporte também.
Tinha perdido meu pai em um fulminante ataque do coração, em março de 1991. Meu pai era Palmeirense fanático, e graças a ele, desenvolvi uma grande paixão pelo esporte bretão. Só parou de me levar aos estádios, quando aos 14 anos, assumi minha opção de ser Corinthiano. Ficou uns seis meses, quase sem falar comigo. Comigo pouco falava, mas questionava minha mãe:
- Mas Beth, por que ele quer ser Corinthiano???
- Deixa o menino escolher o que quer Rafael.
- A família é toda italiana!!! Tem que torcer pro Palmeiras!!!
- A família é italiana, e você torce pelo Brasil!!! Retrucava minha mãe.
- Mas tinha que ser logo pelo Corinthians???
A Copa dos Estados Unidos, seria a primeira sem meu querido pai.
Apesar de sua participação em todas as Copas, o Brasil estava a cinco torneios mundiais sem vencer, ou seja, a última vitória tinha sido no México, em 1970, ano de meu nascimento. A essa altura já tinha deletado aquela história de  ser o “Amuleto da Sorte” da seleção, inventado por meu pai.
Apesar do azar como torcedor  da Seleção Brasileira, não podia me queixar da sorte quando o assunto era amor. Estava apaixonado por Larissa, com quem namorava há três meses. Alta, esguia, com cabelos castanhos claros e olhos mel, Larissa, neta de espanhóis, era uma mulher belíssima. Com uma postura altiva, quase pedante, pernas fortes, e gestos graciosos e precisos de muitos anos de ballet. “Lissa”, como eu a chamava, passava longe do esteriótipo “linda e burra”, era a melhor aluna da nossa turma de Jornalismo.
Marina, Anna, Isabella e Larissa. Eu já era Tetra e torcia para Brasil ser também.
Após o show na vitória contra o Uruguai, nas eliminatórias, a convocação de Romário se tornou obrigatória.
O Brasil, passou pela primeira fase da Copa, com duas vitórias e um empate: 2X0 na Rússia, 3X0 em Camarões e 1X1 com a Suécia. Romário, balançou a rede em todos os jogos.
Nos Estados Unidos, a seleção apresentou um futebol burocrático, cheio de preocupações defensivas e pouca criatividade, dependendo quase que exclusivamente dos lampejos geniais do ”baixinho”. A torcida brasileira estava cética, muitos times brasileiros “morreram na praia”, jogando um futebol bem melhor que o do time de Parreira.
Assistimos os jogos no mesmo grande sofá marrom de couro de outras Copas, eu sentado entre minhas mulheres, mamãe e Lissa. Na ponta esquerda, deixamos livre o lugar preferido de papai. Às vezes, esperava ouvir um comentário exaltado e irônico, mas a voz de meu pai não soava mais naquela sala. O que diria ele desse time sem encanto???
No dia 4 de julho, dia da Independência Americana, o Brasil enfrentou o time da casa pelas oitavas de final. Numa partida dura, com toda a torcida contra, disputando grande parte do jogo com um a menos, Leonardo, nosso lateral esquerdo, foi expulso após dar uma cotovelada no americano Tab Ramos, o Brasil vence: 1X0!!! Gol de Bebeto, com passe genial do “baixinho”, é claro.
Nas quartas de final um grande jogo contra a Holanda, com direito a quebra de um tabu de vinte anos sem vitória brasileira. Cinco gols, todos no segundo tempo. O Brasil saiu na frente com gols, dele, Romário, e  de Bebeto, com a sua comemoração “nana nenê”. A Holanda empatou com Bergkamp e Winter, e Branco fez o gol da vitória do Brasil, batendo falta, com uma fantástica tirada de bunda do caminho de Romário, que confundiu o goleiro holandês. Brasil 3x2 Holanda!!!
A semifinal nos aguardava.
Comecei a sentir o receio da sina futebolística de azarado das Copas, que me acompanhava por 24 anos, ou seja, por toda minha vida, com exceção do dia de meu nascimento, começasse a valer. Meio envergonhado em admitir tal superstição, conversei com Lissa a respeito. Contei a estória do “Amuleto da Sorte”, achei que ela fosse achar ridículo, mas sua reação me surpreendeu:
- Relaxe, eu acredito em você. Você só me trouxe sorte. É o meu “Amuleto da Sorte” e não vai dar azar pra ninguém!!! Seu pai sabia das coisas. Me abraçou forte e me deu um beijo cheio de paixão e confiança.
“Adoro essa mulher!!!” Pensei.
Na semifinal, nova partida contra a Suécia, de Thomas Brolin e do goleiro Ravelli. Jogo ainda mais difícil que o 1X1 anterior. O zero no placar se arrastou até os 35 minutos do segundo tempo quando aconteceu o gol salvador. De maneira inusitada, do alto de seus 1,69m, o gigante Romário decretou de cabeça, Brasil 1X0.
Estávamos na final!!!
E por ironia, nossa adversária, era novamente, a também tricampeã Itália, que tinha seu grande líder Franco Baresi de volta, após uma artroscopia no joelho, e  Roberto Baggio, seu craque maior, em uma forma esplendorosa.
O mundo conheceria seu primeiro Tetracampeão.
Como o futebol que o Brasil vinha jogando não convencia, a torcida era por um novo milagre de “São Romário”.
Para um jogo final de Copa do Mundo, a partida rolou morna, truncada, sem grandes emoções. As duas equipes se mostraram com excessivas preocupações defensivas.
O Brasil parecia um cavalo de raça querendo disparar, mas contido por um jockey pouco ousado, jockey de nome Carlos Alberto Parreira.
O zero não saiu do placar, nem no tempo normal, nem na prorrogação.
Pênaltis!!!
Pela primeira vez uma Copa do Mundo seria decidida nos pênaltis.
Senti um frio na espinha e a célebre frase “O pênalti é tão importante, que deveria ser batido pelo presidente do clube”, me veio a cabeça.* Mas o presidente do “clube” Brasil, em 1994, era Itamar Franco. Acho que não teria dado muito certo.
Baresi foi o primeiro a bater...pra fora!!!
Pagliuca defende a cobrança de Márcio Santos!!!
Albertini desloca Taffarel e marca!!!
A bola de Romário bate na trave... e entra!!!
Evani e Branco marcam!!!
Massaro bate e... “Vai que é sua Taffarel!!!”*
O Capitão Dunga marca e vibra muito!!!
Cabe ao grande craque italiano, Roberto Baggio, bater o pênalti decisivo...
Pra fora!!!
Dou um salto, quase bato a cabeça no teto e saio correndo pela sala.
Baggio perde o gol mais importante de sua vida, fato que ofuscaria o brilho de toda a sua grande carreira.
O Brasil é Tetracampeão!!! Sorte ou competência??? Importa???
Depois de 24 longos anos, voltávamos ao topo do Pódio.
Romário é eleito o craque da Copa. Com certeza, sorte do Brasil, contar com a competência do “baixinho”.
Abracei as duas mulheres de minha vida e gritei muito, exorcizando o azar!!!
Larissa me beijou e disse: - “Viu” como você deu sorte???
Eu não acreditava muito nisso, mas me livrar da sina de azarado era bom demais!!!
Com lágrimas nos olhos, fui ao terraço da casa, olhei para o céu, polvilhado de fogos de artifício e pensei:
“Esse título é pra você pai!!!”

*Bordão criado pelo locutor esportivo Galvão Bueno.
*Não se sabe ao certo de quem é a autoria da frase, que é atribuída a Nenê Prancha ou João Saldanha.

A Caverna dos Anciões (Nepal Capítulo 3)

Estava tudo muito escuro, mesmo tirando a venda dos olhos.
Não estava morto, mas não sabia direito onde estava.

Talvez não devesse ter sido tão curioso.
Quando perceberam que eu era um jornalista e estava ali para escrever sobre os segredos do “Povo Tatu Bola” e divulgar ao mundo, houve uma revolta dos aldeões.
A matriarca da aldeia ainda tentou intervir ao nosso favor, mas fizeram um julgamento sumário: culpados, eu e Maritza!!! Nos deram um chá de ervas, perdemos a consciência e quando acordamos, já estávamos de olhos vendados. Acho que nos fizeram caminhar por mais de cinco horas, uma caminhada lenta, subindo trilhas íngremes. O medo, o cansaço e muito frio faziam nossas pernas tremerem, aumentando a pressão e tornando a caminhada ainda mais perigosa. Será que iriam nos jogar do alto do Manaslu*, em algum desfiladeiro, onde nunca mais encontrariam nossos restos mortais??? Mil idéias passavam pela minha cabeça, nenhuma favorável a nós.
Pelos resmungos sabia que Maritza estava no grupo, mulher valente, ela xingava e reclamava, mas escondia o medo e não pedia clemência aos aldeões, que deviam ser mais uns quatro ou cinco, que nos cutucavam com bastões quando “empacávamos”, nos davam um chá energético e empurravam para seguirmos adiante.
Tentei conversar e negociar, disse que “deletaria” tudo que tinha escrito e pesquisado sobre eles, mas eu não falava Parbatiya*, só algumas poucas palavras, que aprendi ao longo da semana, e eles não queriam se comunicar comigo.
Exaustos, chegamos a um lugar muito alto, onde ventava bastante. Seria o fim???
Chamei Maritza e segurei firme a sua mão.
- Quando Pradip voltar, vocês vão assassiná-lo também??? Gritei desesperado, mas novamente fui ignorado.
Ouço conversas entre eles, barulho de pedra, rochas sendo movidas, empurradas, arrastadas.
De novo somos cutucados  com os bastões e nos fazem caminhar mais uns vinte e cinco passos.
O barulho do empurra-empurra de rochas se repete, as vozes vão ficando abafadas, até que se faz silêncio. Não há mais vento. O frio diminuiu sensivelmente.
Tiro a venda dos olhos, mas a escuridão permanece.
Chamo por Maritza e pela resposta vejo que ela está ao meu lado.
- É uma caverna??? Pergunto.
Acho que sim...ela responde.
Sem saber o que fazer, resmungo:
- Pensei que iam nos jogar do alto da montanha. Pelo menos estamos vi...
- Espera um pouquinho, ela interrompe.
 Ouço barulho de ziper e movimentação de roupas
- Pronto, espero que ainda tenha bateria, diz pegando sua inseparável câmera digital, que ficara guardada dentro de seu casaco.
Maritza consegue ligá-la, e pela luz do monitor de LCD, põe no modo com flash e começa a disparar a câmera.
Mas as revelações, não são das mais agradáveis.
- É uma caverna mesmo...mas o que é isso??? Digo assustado.
Mais alguns flashes e temos a certeza!!!
- São esqueletos!!! Grita Maritza aterrorizada.
- É um cemitério!!! Merda, nos enterraram vivos!!!
De repente, uma voz pequena e envelhecida, soa atrás de nós.
- É a caverna dos Anciões. Somos deixados aqui para fazer a passagem.
Instintivamente, Maritza vira a câmera na direção da voz e a dispara.
Pra nossa surpresa era a matriarca da aldeia. Ela estava de pé segurando todos os presentes que Maritza  tinha lhe dado. Ela tinha sido deixada pra morrer conosco.
- Mas por quê, Mama Tamushyo??? Perguntei eu.
- Eu deixei vocês ficarem na aldeia. Eu fui considerada uma traidora pelo meu povo. Acreditei em vocês...e vocês me traíram!!!
Nesse momento, a culpa não coube mais em mim e desesperado começo a gritar, batendo na grande pedra que tampa a saída da caverna:
- Não!!!! Não!!! Mama Tamushyo é inocente!!! Tirem a gente daqui!!! Eu não vou publicar nada!!! Eu prometo!!!
Acordo de sobressalto com um grito, suado e ofegante. Foi um pesadelo!!!

Maritza traz um chá e senta ao meu lado na cama.
- Tome, pra você se acalmar.
- Obrigado. Foi um pesadelo horrível!!!
- Deu pra notar, você gritou muito.
Conto o sonho para ela, com todos os detalhes que lembrava.
- Espero que isso não seja uma premonição, diz Maritza.
- Acho que tem a ver com o que tenho sentido, sabendo que vamos divulgar para o mundo, como vivem aqui na aldeia e o que isso pode vir a causar.
- Sabe que eu tenho pensado nisso também??? Diz demonstrando preocupação.
Tomo um gole de chá.
- É chá de que??? Pergunto.
- De folha anti-chulé!!! Responde Maritza rindo.
- Engraçadinha...
- Mentira bôbo, é chá de cogumelo de bosta de yak, relaxa e deixa você “viajandão”.
Dou risada junto com ela, mas retomo o assunto do pesadelo:
- Você sabe que no sonho, Mama Tamushyo falava português???
- Será que na verdade ela entende tudo que falamos??? Pergunta Maritza sorrindo.
Conversamos mais um pouco e ela acaba adormecendo ali mesmo com a cabeça apoiada em meu ombro.
Deito procurando uma posição mais confortável para os dois.
O contato com o corpo quente de Maritza aflora em mim o desejo, mas a lembrança de que ela tem um “affair”, com certeza de terceiro grau, com meu amigo Fabrício, evita que as coisas esquentem ainda mais.
Tento dormir, mas não consigo mais pregar os olhos até o amanhecer.


Manaslu*: é uma das dez montanhas mais altas do mundo. Seu nome significa “A Montanha do Espírito”.
Parbatya*: língua das montanhas do Nepal

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Felicidade

Felicidade nasceu no interior da Bahia, naquele vale, onde o ouro fez uma cidade,
Mas com o tempo o ouro acabou, a cidade definhou e muita gente foi embora.
A família aristocrata de Felicidade, ou Lis, como preferia ser chamada, tentou resistir a decadência e lá permaneceu.
O seu pai foi prefeito da cidade em diversas ocasiões.
Filha caçula, única menina e temporã, Lis cresceu entre árvores, o futebol dos meninos, plantações, o trilho do trem e a excessiva proteção familiar.  Pequena no tamanho, tinha bateria de carga dupla e uma vontade imensa de saber das coisas. Dizem que gostava mais das árvores e animais do que de gente. Vivia abraçada ao seu Gonçalo Alves, sua árvore predileta.
Seu único grande amigo era Emílio, com seus cabelos vermelhos cor de milho, ou “É mio” como o chamava Lis. Da caminhada matutina para a escola, até a hora do recolher, ao cair da tarde, os dois eram inseparáveis. Emílio era o filho mais velho do Seu Manuel Lisboa, dono da mercearia da cidade. A famílias de Lis e Emílio, por razões diversas, não eram muito a favor dessa convivência assídua. Os pais de Lis achavam que ela tinha que ter amigas, brincar com meninas, e não ter um amigo, tão amigo assim. Seu pai teimava, apesar da decadência, em manter um certa pompa de aristocrata e não era muito a favor dessa mistura classista.
Certa vez um irmão de Felicidade tentou intimidar Emílio tentando convencê-lo a ficar longe de sua irmã. No primeiro empurrão que ele deu no seu amigo, Lis pulou nas costas de seu irmão, deu tantos cascudos e puxou seu cabelo tão forte, que sobraram os tufos nas suas mãos. Ela e seu irmão ficaram semanas sem se falar.
Lis fugia sorrateiramente de sua casa para brincar, driblando a vigilância familiar e as tábuas rangentes de madeiras nobres, que cobriam o assoalho do casarão colonial da família Braga.
Roupa de menina só na missa de domingo pra não fazer desgosto a mãe.
Pouco antes da época do colégio, por decisão familiar, preocupados com os seus modos pouco femininos, resolveram mandar Lis para Salvador, a capital, estudar em um internato de freiras. Ela protestou o quanto pode, passou dois dias sem querer descer do Gonçalo Alves, mas de nada adiantou.
Na véspera de sua partida, na volta do jogo de futebol, Emílio a abraçou forte, sem querer soltar, mas tomou um senhor empurrão de Lis e caiu de bunda no chão.
-“É mio”, tá querendo me sufocar, é??? Eu só vou viajar, não vou morrer não, viu???!!!
Deu as costas para seu amigo e foi para casa, disfarçando as lágrimas, que teimavam em rolar pela sua face, ruborizada com o abraço inesperado. Um turbilhão descontrolado de emoções percorriam o seu ser.
E foi no trem que Lis foi embora. Emílio acompanhou a partida de sua Felicidade, correndo ao lado do do seu vagão enquanto aguentou. Ela acenava pela janela gritando:
- Eu vou voltar, “É mio”!!! Eu vou voltar!!!
Tentou engolir o choro que transbordava de seus olhos, para não ter uma atitude de “menininha” na frente da mãe, que a acompanhava, mas não aguentou e chorou muito. A mãe carinhosamente a abraçou.

Durante alguns anos Emílio pouco viu Lis. Ela só voltava para a cidade em datas especiais, ficava pouquíssimo tempo e muito bem vigiada pelos irmãos. Emílio rodeava a casa e subia em árvores próximas, só pra ter a chance de vê-la passando rapidamente por uma janela ou de ganhar um raro aceno.
Um dia, véspera de Natal, subindo no Gonçalo Alves de Lis, encontrou uma carta.
“Querido Emílio,
Como vai você? Espero que bem.
Gostaria muito de poder te encontrar e contar as novidades pessoalmente.
Consegui ir além da rejeição inicial que sentia e tenho gostado bastante das coisas que aprendo no internato. As aulas de literatura, biologia e línguas são as minhas preferidas.
Adoro também quando montamos as peças de teatro, mesmo que quase sempre, os temas sejam religiosos. Tem algumas freiras que são mais liberais e incentivam nossa criatividade. E é claro que as aulas de religião são um “saco”.
Fiz uma amiga, Amanda, ela é muito legal, temos gostos semelhantes, ela é mais tímida, mas adora as coisas que eu invento. As outras meninas são riquinhas enjoadas do “nariz empinado”.
Claro que sinto muita saudade de você e de nossas brincadeiras, mas sei que de alguma maneira o que aprendo no internato será útil no futuro.
Lembre-se, na minha ausência você é o guardião. Não deixe os “malas” invadirem nosso território.
Cuide bem de nossos esconderijos, nossas árvores, insetos, pássaros, peixes, da vaca Mimosa, nossas nuvens e nossos segredos. E cuide-se também.
Ah!!! Eu te perdôo pelo abraço. Desculpe o empurrão.
Sua sempre amiga,
Lis.”
Junto, encontrou um pequeno embrulho escrito “Feliz Natal”, dentro um potinho com balas de jenipapo, feitas por Rosenita, a cozinheira da casa de Lis. Emílio adorava essas balas. Pensou em guardá-las para sempre, mas não resistiu e comeu todas de uma vez.  Decidiu que guardá-las na memória era bem melhor

Quase dez anos depois, Emílio e sua esposa Geisa, cuidavam da Mercearia Lisboa, eles tinham uma menina, que acabara de completar um ano. Geisa, era de fora e tinha vindo morar na cidade para o casamento, arranjado pelas famílias. Por muito tempo, a lembrança de Felicidade, permanecera viva demais na memória de Emílio, foi muito difícil convencê-lo a casar com outra mulher, mas ele acabou cedendo para contentar o pai, que já estava muito doente.
Entre clientes que entravam e saíam do estabelecimento, Geisa, que arrumava as gôndolas, vem falar com o marido no caixa:
 -Tem uma moça na porta querendo falar com você.
- Quem é???
- Sei não...
Emílio se dirige à entrada do estabelecimento.
- Pois não, posso ajudar???
A mulher de cabelos castanhos, presos com uma caneta, 1,67m de altura, camiseta branca de alcinhas, sem soutien, bermuda cargo e tênis All Star sem meias, tira os óculos escuros e cumprimenta:
- Oi, "É mio"...
A voz soa familiar, ele toma um susto e seu coração dispara.
- Lis... é você,  Lis!!!
- Sou eu sim!!! Olha!!! Diz mostrando uma cicatriz na perna, adquirida nos tempos de “Batman e Robin” (Claro que Lis era “Batman”). - Como vai você??? Diz ela em um tom saudoso, muito carinhoso.
Com o coração saindo pela boca, ele responde.
- Eu... eu “tô” bem!!! Olha pra sua mulher, que mesmo sem chegar perto, não desgrudava o olhar deles, e diz: - Nós “tamo” bem...
- Que bom!!! É sua esposa?
- É...
- Me apresenta...
Meio tímido, ele caminha na direção de Geisa.
- Mulher, essa é Lis.
- A famosa Lis!!! Responde Geisa.
- Famosa? Indaga Felicidade.
- É,  por muito tempo ele só falava em você. Era Lis pra cá, Lis pra lá... Ultimamente, depois que a nenê nasceu, até tinha dado uma sossegada...
Havia uma certo despeito na fala de Geisa, mas a revelação deixara Emílio todo sem jeito
- E você é?
- Geisa, Geisa Lisboa!!! O sobrenome fora dito como forma de marcar território.
- Muito prazer Geisa! Responde amávelmente Lis.
Quebrando o silêncio que veio a seguir, ela comenta:
- Vocês deram uma modernizada aqui, no armazém, ficou bacana!!!
- É, a gente vai dando um jeitinho aos poucos. Responde Emílio.
- Fiquei sabendo de seu pai. Sinto muito...  Diz Lis se referindo a morte de Seu Manuel, que ocorrera há cerca de dois anos.
- Obrigado...
Vendo que Geisa não se sentia confortável com sua presença, Lis se despede:
- Bom, eu já vou indo... Bom te conhecer Geisa.
Emílio acompanha Lis até a calçada na entrada do armazém.
- Você faz o que Lis?
- Faz como?
- De trabalho.
- Eu trabalho em uma ONG, um centro de reeducacão ambiental, sou Bióloga Ecologista...
- Ecologista?
- É, ajudo a preservar o meio ambiente,  para que as coisas que a gente tanto gosta não desapareçam.
- Eu sei o que é...legal!!! Diz Emílio sorrindo.
- Pensando bem, tem tudo a ver com você, Lis. Ah!!! Seu Gonçalo Alves continua firme e forte!!!
- Com certeza!!! Esse vai viver muito mais que a gente.
Um Jeep sem capota, daqueles antigos, conduzido por uma motorista, estaciona na frente deles.
- Bom, você se cuida, viu?  Diz Lis abraçando Emílio com força e emenda:
- Para de olhar os meus peitos, sem vergonha... e não me empurra não!!!
Os dois caem na gargalhada.
Lis se despede e sobe no carro.
- Lis, eu tenho uma filhinha. Você sabe que ela também se chama Felicidade??? Revela Emílio.
Por alguns instantes Lis fica muda, em um ímpeto desce do Jeep e abraça de novo seu velho amigo.
- Obrigada!!! Cochicha em seu ouvido, entre as lágrimas que não conseguia conter. - Você vai morar sempre no meu coração... Vai ser sempre meu “É mio”!!!
Enxuga as lágrimas no avental de Emílio e sobe de novo no carro.
- Ah, essa é Amanda!!! Diz apresentando a motorista, que acena. - Aquela mesma das freiras, lembra? Reencontrei ela há uns dois anos... É minha namorada. Se cuida, “viu”??? Beijos.
O carro vai embora deixando um Emílio boquiaberto para trás.
Geisa se aproxima resmungando:
- Precisava ter abraçado??? E duas vezes ainda...
Emílio prefere nem responder.
Assim era Felicidade, ou Lis, diferente, sempre surpreendente.
Essa foi a última vez que os dois se encontraram.