sexta-feira, 13 de maio de 2022

Clarice

Passando por aquele ponto de ônibus vazio, no meio do nada, Guto viu aquela morena linda, rosto de anjo e corpo de rainha de bateria da Mangueira. Talvez um pouco mignon, mas tudo em um equilíbrio perfeito, vestindo uma blusa branca de alcinhas e com suas belas pernas torneadas surgindo de uma saia jeans muito curta, bolsa pendurada no ombro e sandália alta de cor branca.
Instintivamente ele freou o carro e deu uma ré:
“Oi! Quer uma carona?”
Ela hesitou, olhou nos olhos dele por um instante e entrou no carro.
“Pra onde você vai?” Perguntou ele.
“Pra onde você você quer ir?” Ela respondeu com uma voz aveludada.
“Pra onde era o ônibus que você estava esperando?"
“Ônibus???” Rebateu ela, com um estranheza inesperada. “Eu não estava esperando o ônibus!!!”
“Não? E por que estava sozinha ali naquele ponto no meio do nada???”
“Ah!!! Porque os clientes preferem encontros em lugares desertos, discretos. A maioria é casado, pai de família e não quer que ninguém fique sabendo. Entende???”
A ficha finalmente caiu naquele instante e ele ficou momentaneamente mudo. Mudo e envergonhado!!!
"Hahhahahhahaha… ela caiu na gargalhada. Você não sabia, não sabia mesmo!!!”
“É, nem desconfiava…” disse ele visivelmente sem jeito.
“É o seguinte, não tem problema. Você não quer aproveitar já que estou aqui e contratar meus serviços?”
“Seus serviços?”
“Sim, oral R$30,00, na frente R$50,00, atrás R$100,00, pode ser no carro. No Motel R$100,00 a hora, e só transo de camisinha. E nada hard core!!!. Realizo fantasias, mas nada extremo. Odeio apanhar, no máximo uns tapas na bunda!!!” Falou com firmeza, direta e com uma falta de pudor inesperada.
“Entendi…” respondeu meio desapontado, sem conseguir ainda imaginar aquela menina com rosto de anjo exercendo a profissão mais antiga do planeta.
Toca o celular no viva voz do carro, interrompendo o playlist de Guto.
“Alô???" Ele atendeu fazendo sinal de silêncio pra ela.
“Guto, você está atrasado!!! Tá todo mundo te esperando pra apresentar a nova campanha!!!”
Disse uma voz feminina impaciente do outro lado.
“Já tô indo!!! Daqui a pouco eu chego!”
“Daqui a pouco quanto???”
“Sei lá, uns 15 minutos! Enrola um pouco que eu já tô aí!!!”
“Ai, tá bom! Corre Guto, corre! Sempre atrasado!!!”
“Ok, tô chegando!!!”
Assim que ele desligou a chamada, ela perguntou:
“Namorada, Guto?”
“Não, colega de trabalho.”
“Mandona!!!! Parecia namorada…”
“É, já foi! Mas terminamos há um tempo…”
“Sabia!!!”
Sabida hein??? Ele pensou
"Bom, eu sou o Guto e você?”
“Clarice, mas é nome de Guerra.”
“E por que Clarice?”
“Porque eu amo Clarice Lispector!!!”
A resposta novamente surpreendeu Guto.
“E você lê Clarice Lispector?”
“Claro! Leio tudo de Clarice. Tudo!!!”
Guto não quis admitir, mas fora “A Hora da Estrela” ele conhecia pouco da obra de Clarice Lispector.
“Surpreendente, Clarice!!!” Comentou.
“Por que, Guto? Você acha que as putas são burras e incultas??? Pelo contrário, ao longo da história, as grandes cortesãs eram muito inteligente e cultas!!! E espertas também! Se um dia eu tiver tempo e "tempo"(fazendo com os dedos como se contasse dinheiro) ainda vou cursar letras, literatura, ou psicologia, porque alguns clientes me procuram mais pra conversar, contar os problemas, do que pra sexo.”
Guto reparou que Clarice era bem desenvolta e falava um português correto.
“Clarice, eu trabalho em uma agência de publicidade, sou redator. Posso tentar arrumar um estágio pra você lá!!!” Falou ele em um impulso, mas se arrependendo logo a seguir. Pensou em como justificaria isso para os colegas.
“Jura? Que legal, Guto, obrigada!!! Mas eu não posso aceitar, tenho um filho pequeno e uma mãe diabética que fica com ele pra mim. O estágio não vai render o necessário. Uma pena! Com a crise, a clínica onde eu era recepcionista fechou e agora tenho que literalmente “ralar" o dia todo pra segurar a onda.”
Guto suspirou aliviado por ela não ter aceito.
“E tudo bem pra você, isso de…???” Perguntou ele sem achar o termo adequado.
“Tudo bem, bem, não! Mas não sinto mais culpa ou choro a noite toda como no início. O dinheiro não é ruim, ganho mais do que antes, e ali no meu pedaço não tem cafetão querendo mandar em mim. Quero dar uma vida digna pra meu filho e poder comprar os remédios pra minha mãe. Claro, não é pra vida toda. Se Deus quiser, mais alguns anos e acabou!!! Por enquanto faço minha academia e uma terapiazinha pra cuidar da minha saúde.”
“Terapia? Clarice, estou admirado!!! Torço pra você conseguir sair dessa!!! Se quiser, claro.” Disse Guto em um misto de surpresa e indulgência.
“A vida é boa, Deus é bom!!! Eu vou conseguir!!!”
“E a polícia? Você não tem problemas com a polícia, Clarice?”
“Hahhahahha! Não! Meu irmão é da polícia. Quando contei, ficou um tempão sem falar comigo, mas agora manda um carro passar de vez em quando pra ver se estou bem.”
“Com segurança particular??? Legal!!!”
“E trabalho até sexta! Sábado só se algum cliente querido, muito vip, pedir. E tem que pagar bem!!! Domingo é dia da família!!! Dia do filho!!!”
Guto viu em Clarice uma consciência, uma coerência, e valores surpreendentes, insuspeitos, quando ofereceu carona àquela jovem figura.
“Ai, eu adoro essa música!!!
Na playlist do carro toca “Infinito Particular" e ela faz um dueto com Marisa Monte em uma interpretação deliciosamente sensual:

"Vem cá, não tenha medo
A água é potável
Daqui você pode beber
Só não se perca ao entrar
No meu infinito particular"

Essa menina não cansa de me surpreender!!! Pensou ele.
Guto, a essa altura,  já não sentia remorso algum pelo seu atraso.
“Escuta, sei que o papo tá bom, mas sei que você tá com pressa, Guto. Me deixa por aqui que eu pego um Uber e volto para o meu pedaço.”
Guto concordou. Meio a contra gosto, estacionou o carro e Clarice lhe estendeu a mão. Ele retribuiu com um aperto de mão, mas ela continuava com a mão estendida.
“O que foi?” Perguntou ele.
“Cinquenta reais!!! O Uber e o tempo de serviço que passei com você. E estou cobrando o preço mínimo da tabela.”
“Mas a gente nem… e eu não tenho dinheiro vivo…” Argumentou surpreso, meio contrariado.
“Tenho Pix, anota aí: 71 9981… Se vc quiser falar comigo, manda um zap. Já tem o meu número agora!!!”
Clarice deu um beijo de despedida no rosto de Guto, comentando:
“Sexo bom, conversa boa, se beijar na boca os homens logo se apaixonam!!! Só beijo no rosto!!! Hahhahahhhaha”
Hummm, que perfume gostoso!!! E que figura interessante!!! pensou Guto.
E lá se foi Clarice, jovem, rosto de anjo, corpo de deusa, inteligente, articulada, amante de homens e de poesia, afinada, surpreendente, com sua risada solta e contagiante.
E lá se foi Guto, atrasado, fascinado e meio apaixonado pela figura de Clarice. Mesmo com Pix, sem sexo, nem beijo na boca.

PS: "Mentir dá remorso. E não mentir é um dom que o mundo não merece..."  Clarice Lispector