quarta-feira, 10 de novembro de 2021

"Alô???"

 “Cansado dos dias vazios,
 Dos vasos sem flores,
 E noites de frio sem cio
Vou-me embora em busca do Sol
Onde livre, sem grandes motivos ou medo,
Sorrio
Mergulho sem volta
Em ondas do Mar revolto
Porque que a ti, Vida
Já não pertenço mais”
Chegando à conclusão de que não queria mais viver daquele jeito, postou esse texto nas redes sociais, para tornar sua despedida mais honrosa. Dos seus mais de 2.500 amigos, recebeu quatro curtidas e um comentário: "Lindo irmão! Faz o que seu coração mandar!”
Achou extremamente frustrante as pessoas não se importarem com o seu “Adeus" e nem, ao menos, tentarem demovê-lo da ideia.
Depois de mais de um ano internado, saindo somente para o estritamente necessário, ele já estava meio “deprê”, aliás, mais do que meio, uns 3/4 “deprê”!!! Aos 47 anos, as vantagens da vida de solteiro, declamadas antes em prosa, verso e redes sociais, virou, na pandemia: o feitiço contra o feiticeiro!!!
O seu “reino” de 55m quadrados, já tinha sido muito bem frequentado, em jantares, onde ele mesmo fazia pratos elaborados e elogiados; "cineminha privê" na sua TV de 50 polegadas; jogos de pôquer e sarau musical pela madrugada com os amigos em "petit comité”, até altas horas, parando só quando os vizinhos ameaçavam chamar a polícia. Isso, sem falar das amigas "libres e calientes”, que eram visitas assíduas. Mas nada além de amigas, pois não assumia nenhum compromisso sério, vivia se gabando de não ter ninguém para "pegar no seu pé”, exceto, claro, Dona Iolanda, sua querida mãe.
Como tinha comorbidade - era diabético, seu "reino" tinha se tornado seu refúgio e sua fortaleza. Mas, também, a sua prisão solitária - um “apertamento claustrofóbico". Andava como um zumbi pela casa, ou passava o dia deitado no sofá, "zapeando" séries, com uma cerveja na mão. Mão, exaustivamente, higienizada com álcool em gel.
Não cozinhava mais, tudo era pedido por “delivery”. A bateria do carro arriou de tanto tempo parado. Trabalhava em "home office”, mas na pandemia, a demanda caiu bastante. As contas estavam maiores que a receita. O violão estava sem cordas, a haste de seu óculos quebrou e foi colado com Super Bonder, a barriguinha saliente mostrava que nunca mais frequentou a academia, seu “parceiro” de aventuras, cabisbaixo, não demonstrava mais o entusiasmo de outrora, nem a velha conhecida “Palmita” (“de la mano”) conseguia motivá-lo para o embate solitário 5 X 1 (cinco contra um).  Comia caixas de chocolate por compulsão!!!
Somente, uma vez por semana, recebia a visita de Dona Sandra, sua diarista, avó de 3 netos, que voltou depois dos primeiros meses de quarentena, pois a bagunça estava insuportável!!! A pilha de caixas de pizzas vazias tinha ultrapassado a sua altura (1.75m) e as garrafas longneck já tomavam todo o chão de sua pequena varanda. Ele ficava no quarto pela manhã, e à tarde no escritório, um segundo quarto minúsculo, sem contato físico ou visual, enquanto Dona Sandra limpava o acúmulo semanal. As instruções do dia, invariavelmente, as mesmas, e o dinheiro da diária eram deixadas de antemão na sala, sob a pequena estátua branca de Buda. Não, ele não era Budista, nem religioso. Costumava dizer, que era ateu, graças a Deus. Só tinha ganhado a estátua como um presente de aniversário, para dar sorte, mas, ultimamente, ela parecia ter parado de funcionar. Apesar dele saber que aquela reclusão e os cuidados sanitários eram para garantir sua sobrevivência, começou a se questionar se valia a pena. Os dias se repetiam, sem novidades, sem alegria e sem aventuras. Nada mais lhe apetecia, dava “água na boca”. A monotonia aumentava a tristeza, que tomava conta de seu corpo e espírito e prejudicava sua saúde mental.
Uma tarde, no desespero, desprezando o ridículo e as normas de segurança, deu uma de “voyeur”, escalou a máquina de lavar para invocar Onã, tentando observar D Sandra em seu banho, antes de ir embora, pela fresta da janela do banheiro, da área de serviço.
Dona Sandra, uma senhora com mais de 60 anos, que em CNTP, não lhe ofereceria nenhum atrativo sexual. De repente, quando procurava uma posição que lhe proporcionasse uma melhor visão, a tampa cedeu e ele caiu dentro da máquina. Quase ficou entalado. Envergonhado correu e se trancou no quarto para não ter que dar explicações a Dona Sandra, assustada com a confusão. Prejuízo: R$435,00 pelo conserto da máquina, uma perna dolorida e roxa e uma quase torção no seu “parceiro” inseparável.
Até a interação pelas medias sociais tinha diminuído muito, e o telefone celular, então, quase não tocava mais, a não ser pelas ligações de sua mãe e dos telemarketings e call centers, que continuavam a oferecer serviços e produtos como se não houvesse pandemia, aliás, nunca tinham ligado tanto!!!
Decidido a desistir de seu cotidiano repetitivo e sem graça, fez um laço em torno de seu chuveiro, com sua gravata de seda italiana - a única que tinha, e que só usara uma vez em um casamento, que nem lembrava mais de quem foi, tirou os óculos, subiu em um banco e colocou o pescoço no laço. Era Ateu, mas fez uma oração pedindo perdão a Deus, para o caso de haver vida após a morte, e saltou derrubando o banco!!!
Os segundos a seguir foram muito rápidos, mas duraram uma eternidade!!! Sentiu o laço apertar o pescoço e se desesperou, debateu-se como louco. Pendurado, não conseguia apoiar os pés para se soltar. Arrependido, queria voltar atrás em sua decisão, mas o fim parecia inevitável!!! Sentiu o celular tocando no bolso da bermuda, tentou em vão atender para pedir socorro e se debateu ainda mais!!! De repente, ouviu um estalo forte e caiu estatelado no chão do box com água caindo sobre seu rosto. Para a sua sorte, o chuveiro de hoje em dia é feito de material plástico ordinário e não aguentou o seu peso (que inclusive aumentou consideravelmente na pandemia). Prejuízo: R$550,00 pela ducha nova mais reinstalação da porta do box.
Afrouxou o laço da gravata e permaneceu deitado no chão gelado do box quando sentiu que a chamada insistente no bolso de sua bermuda continuava.
Sem os óculos e com a vista encharcada, atendeu por impulso sem ver quem era.
- “Alô?" A sua voz quase não saiu.
- “Boa tarde! Tudo bem, como vai o senhor??? O motiv…
Antes que ela continuasse, ele caiu no choro.
- “Senhor, vc está bem? Senhor???!!!”
Ele não conseguia falar mais nada, só chorava copiosamente. E, surpreendentemente, durante todo o tempo, a operadora de telemarketing permaneceu na linha tentando acalmá-lo. Ela se revelou ali, mais humana do que todos os seus amigos, que não estavam nem aí para a sua desesperança.
Quando finalmente ele conseguiu voltar a falar, normalizar a sua respiração, ficou envergonhado e pediu mil desculpas. Ela o tranquilizou, conversou mais um pouco e apesar dos pedidos dele para não desligar, disse que teria que voltar ao trabalho e que mais tarde, assim que possível, ligaria de novo. Mesmo sem acreditar muito, ele gostou da ideia e esperançoso, aguardou com ansiedade a sua ligação. Olhava as horas com frequência e conferia o celular, tentou ligar de volta no número registrado, mas aquele número não recebia chamadas.
19:47 PM, toca o celular!!! Ele atende tentando disfarçar a ansiedade:
- Alô… alô???
- Oi, como vai o Sr? É a Mariana do callcenter.
- Oi, Mariana! Estou bem melhor, graças a você! E não me chame de Senhor, não sou tão velho assim.
Agora sabia o nome da sua salvadora. Ela tinha uma voz aveludada e acolhedora.
Estava a caminho da Faculdade, estudava Enfermagem, tinha 24 anos, era mãe solo, tinha uma filha de 5 anos - Luiza, e morava junto com sua mãe. Cuidava da filha de manhã, trabalhava à tarde, e estudava à noite.
Nos próximos dias se falaram todos os dias e nos outros dias também, viraram amigos e confidentes. E, apesar de morarem em Estados diferentes, combinaram de se encontrar assim que acabasse a Pandemia.
Até Dona Iolanda, ciumenta e controladora, vendo a melhora de humor do filho, aprovou sua nova amiga.
A Esperança voltou, o Sorriso brotou, a Vida renasceu. Graças a uma ligação de telemarketing!!!