Em um clube de dança daqueles antigos, parecendo de filme, com um salão largo com piso em preto e branco, como um grande tabuleiro de xadrez, seres anônimos, comuns, comerciantes e donas de casa, se sentiam como estrelas. O extravagante e o exagero estavam presentes nos movimentos previamente coreografadas dos dançarinos, exceto em alguns poucos, que desfilavam sua arte em movimentos graciosos, precisos e sensuais, com classe e refinamento. A maioria com seus cabelos grisalhos, brancos ou tingidos, frequentava o estabelecimento há décadas. A banda também permanecia a mesma, desde a inauguração da casa, nos anos 70 do século passado, só com a reposição de alguns integrantes por motivos de força maior, um por alcoolismo, uma por invalidez e outros dois por falecimento.
Ana Luz, como era conhecida Ana Luzia Conceição Carvalhal Fontes Sobrinho, cantora única, contralto de voz poderosa, de descendência portuguesa, foi acometida pelo mal alemão, Alzheimer, começou a ter brancos repentinos e esquecer as letras das canções, e infelizmente foi a aposentada por invalidez há um ano. Desde lá, três cantoras foram testadas e reprovadas pelo gosto popular. A quarta candidata, que não era ruim, fazia a sua estreia, mas a comparação era sempre inevitável e desfavorável.
Um grande candelabro centralizado sobre a pista era a única fonte de luz do salão, nos cantos escuros, do lado oposto ao palco, ficavam as mesas.
Magro, assim o chamavam e ninguém sabia ao certo o seu nome, sentava na mesma mesa do canto, isolada, costas para a parede, longe do bar, há 11 anos, desde a primeira vez que apareceu. Magro não dançava, não conversava ou procurava companhia. Tomava lentamente o seu conhaque Corvoisier. O garçon deixava a garrafa e não o perturbava, ficava sempre atento, mas raramente era chamado. Mas por algum motivo desconhecido, Magro, bebia cada vez menos.
Segurando a taça na mão esquerda, parecia canhoto, ficava por horas apreciando a exibição dos dançarinos no salão.
Mas naquela noite, algo diferente estava para acontecer.
Duas horas depois de Magro, chegava ao clube um senhor bem vestido, notadamente acima do peso, com um uso excessivo de anéis adornando os dedos rechonchudos, acompanhado de uma bela loira, uns trinta anos mais nova, usando salto alto e algo que poderia ser chamado de mini vestido com um casaquinho, e junto com eles, um “armário” de quase dois metros de altura, com certeza o guarda-costas do senhor gordo . O “armário" entrou primeiro, observou o local e apontou a mesa de Magro para o seu chefe.
Nesse momento soaram os aplausos de final de música, que o gordo bem vestido abrindo os braços, agradeceu como se as palmas fossem em homenagem a sua chegada.
- Narciso, então é aqui que você se esconde? Disse em um tom ironicamente afável, o gordo, se dirigindo a Magro, que era magro, aliás cada vez mais magro, tinha entre 60 a 65 anos, sua pele tinha adquirido um tom amarelado, nunca tirava o casaco, usava um boné cinza escuro, que se tornara um companheiro inseparável, estilo “Andy Capp”*, e sua imagem em nada combinava com a de Narciso, que se apaixonara pelo próprio reflexo.
- Posso me sentar com você? Perguntou o gordo e antes que Magro respondesse, puxou uma cadeira para a loira e outra para ele. A loira agradeceu, sentou e cruzou as belas pernas, longas e torneadas.
- O lugar está ocupado, disse Magro, em tom baixo e seco, com sua voz rouca.
- Realmente, agora está!!! Hahhahahahhaha!!! Respondeu o gordo enquanto sentava.
- Caia fora, não falo de negócios aqui!!!
- Mas o local é publico. Retrucou o gordo, mantendo o tom afável.
- Então senta em outra mesa!!! A voz rouca de Magro fazia sua fala parecer um sussurro, mesmo quando ríspida.
- Já está ocupada, responde o gordo, mandando o “armário” que ficara em pé sentar na mesa ao lado.
Magro se exalta:- Olha aqui, seu filho da..., mas o gordo interrompe:
- Calma, “take it easy, my friend”, ela, indicando a loira, é muito nova pra ser minha mãe e o assunto é do nosso interesse!!! E chamou o garçon em seguida.
A loira tentou disfarçar, mesmo ficando visivelmente sem graça com a piada.
- Pois não??? Chegou o garçon.
- Ele não quer nada, já está de saída!!! Disse o Magro subindo um pouco o tom rouco.
- Estou, diz o gordo, mas antes quero brindar com meu amigo, que me ofereceu um pouco de seu delicioso conhaque. E pra ela um Campari. Ah!!! E água para o pequeno, que ele está dirigindo, disse se referindo ao "armário”.
- E o senhor, Seu Narciso, quer mais alguma coisa??? Perguntou o garçon.
- Seu o que??? Do que você me chamou, seu enxerido??? Indagou Magro subindo ainda mais o tom rouco.
- Me desculpe, Seu… seu… respondeu o garçom, completamente perdido e sem jeito.
- Calma, intervém o gordo, um sujeito tão bonito assim tinha que chamar Narciso!!! Hhahahahhaha!!! E colocando a mão em concha, cochicha para o garçon: - É só um apelido, mas claro que ele não gosta!!!
O garçon se retirou rápidamente.
- Belo esconderijo, bem conservado, boa bebida, sem câmeras de segurança, os que dançam nem sabem que você existe… Elogiou o gordo.
- Venho aqui para relaxar, não pra me esconder. O que você quer??? Perguntou Magro, voltando ao tom baixo.
- Você desapareceu e não cumpriu nosso último contrato.
- Desisti.
- Como assim??? Não existe desistência, você sabe disso!!! Disse sério o gordo.
- Eu devolvi o dinheiro.
- Você sabe que não é só uma questão de dinheiro, é uma questão de honra!!! E os que me contrataram estão perdendo a paciência, querem ver o negócio finalizado.
- Eu desisti. Repetiu Magro.
- Não existe desistência, nunca houve e nem haverá!!! Afirmou categoricamente o gordo, empurrando um envelope cheio de dinheiro na direção de Magro. A loira olhava na direção do envelope com um olhar mais necessitado do que ambicioso.
- Não vai dar, arrume outro.
- Não existe outro!!! Gritou o gordo dando um tapão na mesa. A loira se encolheu assustada.
- Que pena, disse o Magro com um sorriso irônico.
Fez-se uma breve pausa na conversa na volta do garçon.
Após apreciar o conhaque de Magro, o gordo retomou:
- Posso saber o por quê da desistência???
- Não.
- Eu insisto, tantos anos e você nunca falhou.
- Eu não falhei, eu desisti. Retrucou Magro.
- Mas por quê??? Eu quero saber!!!
- Ele tem câncer.
- Que bom, então vai morrer mesmo!!!
- Vai, o médico deu 6 meses a um ano pra ele.
- Então… Disse o gordo gesticulando, ansioso para Magro confessar de vez o motivo.
- Ele tem uma filha de 4 anos, que perdeu a mãe quando nasceu. Não vou tirar dela os últimos meses com o pai.
- Ah, é por isso!!! Virou sentimental!!!
- Sempre fui. Não aceito contratos de mulheres e crianças.
- E agora de doentes também, pelo jeito.
- Pode ser.
Magro notou que a loira também tinha se sensibilizado com a história da filha do pai canceroso, seus olhos marejaram e ela tentava disfarçar. Talvez fosse mãe e exercesse a profissão de “dama de companhia” por necessidade.
- Meu caro, ou a filhinha dele vai ficar triste ou sua netinha vai, você escolhe!!! Ameaçou o gordo colocando uma foto de Magro brincando com sua neta no parque sobre a mesa.
- Isso é uma ameaça??? Perguntou Magro raivoso.
- Entenda como quiser. Ironizou o gordo.
Magro observou que o “armário” sorriu maliciosamente, abrindo o casaco e mostrando que estava armado.
A música soava alto, knipe de metais, quebrada de bateria, glissando do piano, os dançarinos caprichavam na coreografia e ninguém sequer imaginava a tensão que ocorria na mesa de Magro. Tinha o garçon atento a tudo, mas era um risco inevitável.
Repentinamente, Magro engasgou com o conhaque, sempre em sua mão esquerda, teve um acesso violento de tosse e encobriu a boca com o guardanapo branco que estava em seu colo com a outra mão. O Gordo e o “armário" puseram-se a gargalhar com a tosse interminável de Magro, que ficava roxo.
A loira tentou ajudar pedindo água ao garçon.
De repente a mão esquerda de Magro sumiu sob a mesa, a gargalhada cessou com dois estampidos secos que abriram um furo de borda chamuscada no guardanapo. No salão, a música encobria tudo.
- Não grite!!! Não quero ter que atirar em você!!! Sussurrou Magro para a loira apavorada, que fez sim com a cabeça.
Magro guardou sua arma com silenciador sob o casaco, tomou um último gole de conhaque, limpou as suas digitais do copo, levantou, recolheu a sua foto com a neta e endireitou na cadeira o corpo do “armário”, que ameaçava desabar. Mandou a loira abraçar e segurar o gordo.
Pegando o envelope de dinheiro, tirou um "bolo" e deu o resto a loira:
- Mude de vida. Você merece algo melhor do que isso. Você tem um filho, não tem???
A loira concordou assustada com a situação e com a dedução do Magro.
A musica terminou com a ovação dos dançarinos que aplaudiam a banda e suas próprias performances.
Magro ia saindo quando se deparou com o garçon chegando com a água, mas recusou o copo oferecido e colocando o dinheiro do envelope no bolso do garçon, disse::
- Você não me conhece nunca me viu, se eu souber que você deu com a "língua nos dentes"" eu volto!!! Ok???”
- Sim Seu… Seu… Gaguejou o garçon.
- Como é meu nome??? Perguntou Magro.
- Não sei… nunca vi o senhor aqui!!! Respondeu o garçon.
- Bom garoto!!! Maurício, bom garoto!!! Elogiou Magro, olhando o nome do garçon no seu crachá.
No caminho da porta um japonês bêbado saindo do banheiro esbarrou em Magro.
- Omae, bakayaro, doko o mite aruitenda??? ( Seu idiota, olha pra onde anda!!!)
Magro tentou passar, mas o japonês atravessou de novo o seu caminho.
- Ayamare yo!!! (Se desculpe!!!)
Magro respirou fundo, não contava com esse imprevisto atrasando a sua saída.
Providencialmente Maurício interveio tentando resolver o impasse.
- Pode ir Seu Magro, eu dou um jeito aqui!!!
- Maguro??? Omae wa sakana ka??? Temee wa otoko ja nai yo!!! Nigueruna!!! ( Atum??? Você é um peixe??? Homem que não é!!! Não fuja!!!) Bradou o nipônico ofendido, enquanto Maurício tentava acalmâ-lo: - Calma, não chame Seu Magro de sacana, ele pode se irritar!!!
Magro saiu rapidamente, acenou para o porteiro, seu velho conhecido, chamar um taxi. Deu uma última olhada para o luminoso da entrada, Clube 77, e pensou: ”Vou sentir saudades!!!” Tirou o boné como uma reverência, revelando os cabelos ralos, resultantes da quimioterapia,
Magro, nome verdadeiro desconhecido, apelidado também de Narciso, 63 anos, assassino de aluguel, canhoto, com ictericia, diagnosticado com câncer terminal no fígado, deu adeus ao seu clube preferido, colocou o boné, entrou no taxi e foi embora.
"Andy Capp"*: Personagem de Cartoon criado por Reg Smythe (1917/1998), conhecido no Brasil como "Zé do Boné".