Boiando em um mar sem ondas, com os olhos fechados, Taís queria sentir-se como uma oferenda à Iemanjá. Deixava-se levar pelas águas, em busca da comunhão perfeita.
Naquele dia, aquele trecho da praia em Salvador encontrava-se surpreendentemente deserto, com poucos frequentadores.
Taís passava por uma daquelas crises de final de adolescência, na qual sentia a necessidade de dar um significado dramático e idiossincrático para todas as suas atitudes. A frustração pelo insucesso recente no vestibular, também somava nesse processo. Ela tentava se afastar do mundo dos adultos, de todos eles, com exceção de sua querida e compreensiva avó. Sua avó, que nesse momento estava na praia, deitada em uma espreguiçadeira, também de olhos fechados, ouvindo Maria Bethânia no MP3 de Taís a cantar: "Quando o mar tem mais segredos, é quando é calmaria..." E foi surpreendida pela figura morena de um rapaz, que agachando ao seu lado, cochichou algo em seu ouvido.
A vovó reagiu de sobressalto: - Oxiii!!! Que susto moço! Disse, tirando o fone de ouvido. - Eu nem vi você se aproximando!!!
O rapaz retribuiu com um leve sorriso sem graça.
- E aí, continuou a senhora, você está vendendo o quê??? É de comer???
- Não faça escândalo, sussurrou o rapaz, isso é um assalto!!!
- É um assa...??? Tentou repetir a vovó, quando foi cutucada, na lateral das costelas, por um objeto pontiagudo, coberto por um pano.
- Quieta e ninguém se machuca vovó!!! Interrompeu o rapaz.
O pavor, evidente, surgiu nos olhos da velhinha, mas ninguém estava perto o suficiente para entender o que se passava e oferecer socorro.
- Mas o que é que você quer de mim moço???
Oferecendo um cesto de palha, parte de seu disfarce de vendedor, ele disse:
- Fala baixo vovó!!! Coloca o dinheiro e o que mais tiver de valor, aí dentro do cesto.
Respirando forte, fazendo hiperventilação para tentar manter a calma, ela respondeu:
- Olha moço, vou te dar o dinheiro, o “radinho” é de minha neta, não posso te dar, viu???
Nesse momento, Taís, levada pela corrente marítima, percebeu que se afastou muito da praia. Tentou nadar de volta, mas não conseguiu. O pavor tomava conta de seu corpo e paralisava seus músculos. E, já desesperada, gritando por socorro, começou a engolir água salgada.
Da praia a avó ouviu os gritos da neta e deixando o ladrão falando só, correu para a beira d’água.
- Socorro gente!!! Alguém ajude minha neta, pelo amor de Deus!!! Suplicava a velhinha, vendo ao longe os braços e a cabeça de Taís, que agora resistindo ferreamente a ideia de se tornar um presente da Rainha do Mar, debatia-se tentando não afundar.
Desesperada, sem ninguém para socorrer sua neta, a senhora caiu em prantos:
- Deus, por favor, salva minha neta!!! Por favor, salva a minha netinha!!!
Nesse momento, com os olhos cheios de lágrimas, sentiu um vulto, que passou por ela como um raio e se lançou ao mar.
“Graças a Deus, uma alma caridosa!!!” Agradeceu a vovó.
Ao ver aquele homem nadando com braçadas fortes, na direção de sua neta, a velhinha caiu de joelhos e começou rezar. Não se sabe por quanto tempo permaneceu assim, mas pareceu uma eternidade em “slow motion”. Ao se dar conta, o homem já havia conseguido trazer Taís para águas mais rasas e outras pessoas caiam na água para ajudar.
- Aleluia!!! Glória a Deus!! ! Louvado seja o Senhor!!! Gritava a senhora.
Quando finalmente, conseguiram conduzir Taís até perto da praia, ela correu para abraçá-la chorando.
- Deus misericordioso!!! Eu pensei que ia perder você, minha filha!!!
Taís já sentada na areia tossia convulsivamente, tentando expelir a grande quantidade de água que engolira. Ela foi cercada, repentinamente, por vários curiosos e palpiteiros de plantão, daqueles que dizem: faça assim, faça assado, surgidos não se sabe da onde.
Ainda com os olhos marejados e as mãos trêmulas, a avó procurou pelo herói salvador, querendo agradecer: - Cadê o rapaz que salvou minha neta???
- Ele foi pra lá!!! - Indicou um dos banhistas que ajudou no resgate.
Ao longe, a avó viu a figura do herói que se afastava apressadamente. Era a figura de um rapaz moreno com sua cesta de palha na mão!!!
Mais tarde, debruçada na janela da casa de praia da família, com um misto de medo e culpa, Taís observava o mar, o mar que quase a levou. Na verdade, ela sabia que a ideia idiota de se tornar uma oferenda foi dela, o mar só havia aceitado.
Sua avó lhe contara como Deus enviara um anjo, na forma de um ladrão, para salvá-la.
Ela ainda tossia um pouco e sentia a sua garganta ressecada pela água salgada.
De repente... é ele!!! O salvador de Taís!!! Ele passava como um raio pela praia, carregando uma mochila. Atrás dele um casal de turistas vinha em sua perseguição, gritando palavras que Taís não entendia, mas compreendia. Instintivamente ela passou a torcer pelo sucesso de seu herói.
Seu herói bandido.
PS: ”Pense em um absurdo, na Bahia tem precedente.” Frase de Otávio Mangabeira, ex-governador da Bahia.
Baseado em fatos reais.
sexta-feira, 15 de junho de 2012
terça-feira, 5 de junho de 2012
O Substituto
- Foi você, Paulo??? Disse incrédulo Ricardo Estrrela. - Mas por quê, por quê???
Sentado em uma confortável e suntuosa poltrona, com uma xícara de chá na mão esquerda, Paulo Tiago paira seu olhar sobre o Tâmisa, através dos janelões inteiriços de vidro de seu espaçoso escritório.
Lentamente toma seu chá orgânico, sem creme e sem açúcar refinado, e seu olhar parece viajar para muito além daquela paisagem de outono.
- Eu tenho muitas respostas, Rico, mas nenhuma delas me convence plenamente, nenhuma...
- Paulo, nós fomos como...irmãos!!! Enfrentamos todas as barras juntos. Brigamos muito, mas nos divertimos muito também!!! Fomos a maior banda do mundo, aliás, ainda somos... E você...
- Rico, eu amava JW...ainda amo. Entendia a raiva dele. Claro, passamos momentos difíceis também. Mas acho que a banda podia ter dado muito mais. A gente ainda tinha a química. Se JW acreditasse nisso e não tivesse nos trocado por aquela japonesa maluca... Artista plástica de merda!!! Nunca vi nada de bom na arte dela!!! Primeiro quis que ela entrasse na banda...
- Mas aí fomos todos contra!!!
- Mas ele achava que era o dono da banda... E ela não sabia cantar nem tocar nada!!! Depois, se ela não podia entrar na banda, ele também não queria ficar. Pô, isso foi traição, uma facada! Um desrespeito a tudo que passamos juntos. Eu sei o quanto ralei pra conseguir o meu lugar.
- Mas aí, você pra ficar por cima, anunciou que estava saindo da banda antes dele. E o trato era esperar o lançamento do disco. Ninguém podia falar do fim da banda até lá.
- Eu sei, Rico, eu sei...eu estava com o orgulho ferido. Puto da vida!!! E queria muito sacanear o JW.
- Mas aí me sacaneou, sacaneou o Jorginho e sacaneou todo mundo também!!
Paulo Tiago faz silêncio, toma um último gole de chá e descansa a sua xícara sobre a mesa de centro.
- É, Rico, faz tanto tempo... e parece que foi ontem.
Levanta e vai em direção a um quadro na parede com um portrait de sua mulher, Bella, que perdeu a batalha contra o câncer há alguns anos. Retira cuidadosamente o quadro e o apoia no chão cantarolando: ”But it ain't me, babe. No, no, no, it ain't me, babe. It ain't me you're lookin' for...”*
Parecia clichê de algum filme policial, mas atrás do quadro, realmente, havia um cofre. Colocando os óculos, como o senhor octagenário que escondia ser, Paulo começa a digitar a combinação secreta do cofre, recitando os números em voz alta, sem se importar com a presença de Rico.
- 06, 18, 19, 42...
“Quem colocaria a data de seu aniversário como parte da combinação secreta de seu cofre??? Só um grande idiota ou alguém com o ego monstruoso, como Paulo.” Pensou Ricardo Estrrela.
- Você já teve dificuldade em memorizar a data de seu nascimento Rico??? Perguntou Paulo, como se lesse pensamentos.
O cofre se abre, Paulo Tiago tira de lá um maço de papel manuscrito.
- O que é isso??? Indagou Rico.
- Um manuscrito autobiográfico... e Cartas de Marcos Davi, o assassino de JW!!! Responde calmamente Paulo.
Pasmo, Rico perde a voz por instantes.
- Até hoje ele manda cartas da prisão. Claro que para outro endereço e para um pseudônimo.
- Mas por que, Paulo??? Por que esse sujeito se corresponde com você???
- Você sabe que quando ele assassinou JW, tinha um livro nas mãos...
- “O apanhador no campo de centeio”.*
- Isso... fui eu que mandei esse livro para ele, Rico. O livro fala de um jovem americano, seus anseios, sua falta de perspectiva, da necessidade de ter algo em que acreditar, algo que valha a pena...
Rico sente seu estômago embrulhar, conhece Paulo Tiago há muito e sabe o quão manipulador ele pode ser.
- Conheci Marcos Davi quando visitava o MOMA, em Nova Iorque - continuou Paulo. De repente o cara apareceu na minha frente e disse: “Odeio o que JW fez com você e a banda. Ele merecia morrer.” Tomei um susto, ele tinha um olhar de maluco. Me afastei rapidamente, mas vi que ele continuava me seguindo. Bella queria chamar os seguranças, foi quando tive uma ideia e mandei entregar meu cartão pra ele.
O ambiente se tornara pesado demais e Rico, um eterno ex-alcoólatra, corre até a bandeja de bebidas, enche um copo de scotch cowboy, desaba em uma poltrona e vira a bebida em um só gole.
- Você é maquiavélico, Paulo!!! Diz, recuperando o fôlego.
- Nos cinco anos que JW ficou recluso, cuidando do filho, ele escreveu essa autobiografia, que pretendia publicar. Claro que ele deu um jeito para que eu ficasse sabendo disso. Uma autobiografia com muita coisa que não gostaríamos de lembrar e muito menos que o público e os tablóides tomassem conhecimento. Pedi a JW, aliás, implorei, ofereci milhões...e nada. Fingi uma viagem de lazer com Bella e me mandei pra Nova Iorque, achei que cara a cara a gente ainda podia se entender, mas não aconteceu... ele não quis nem me receber. Aliás, ele nunca me aceitou como um igual.
Rico nota que a mágoa em Paulo ainda existia.
- Aí, encontrei Marcos no museu... convencê-lo que JW destruiu a banda e que agora queria destruir a sua memória não foi das coisas mais difíceis. O livro foi só pra dar um ar mais idealista e justificar...
- Que você era o mocinho e JW o bandido... Paulo, você é um monstro!!! Que nojo!!! Rico levanta e enche o copo novamente.
- Rico, eu não queria matar o cara, eu juro, eu só queria que ele parasse. Mas eu precisava me proteger, precisava nos proteger. Era pra ser só um susto...mas o Marcos se apavorou, perdeu o controle. Eu já estava mal e fiquei muito pior. Até hoje me sinto mal, gostaria que tivesse sido diferente. Aí, arrumar um gatuno pra invadir o prédio e roubar o manuscrito, foi fácil. Eu tinha família, filhos pequenos... Bella nunca soube.
- O que tem de tão ”bombástico” aí??? Interrompe Rico, apontando o manuscrito.
Paulo suspira lentamente e procura uma folha no manuscrito.
- Isso, por exemplo...
Rico ajeita os óculos e lê atentamente. De repente solta uma sonora gargalhada:
- Hahhahaha!!!! Foi por isso, Paulo??? Foi por isso??? Não acredito!!! A página que acabara de ler era a descrição minuciosa de uma orgia gay/hetero da qual Paulo e JW participaram ativamente, promovida por BE, empresário da banda na época.
- Você matou JW para o mundo não saber que você já transou com outro cara???
- Éramos jovens, Rico, loucos e inconsequentes. A fama e a grana nos faziam achar que podíamos fazer qualquer coisa.
- Vá se foder, Paulo!!! A gente adorava extrapolar... Hahhahaha!!! Rico não conseguia parar o riso histérico, - Noventa e nove por cento dos “rockstars” daquela época fizeram surubas com homens e mulheres e você matou seu melhor amigo por causa disso??? Quem sabe aparece um velhinho dizendo que já te comeu, Paulo Tiago??? Finalizou, irônico.
- Não Rico, foi porque... eu não fiz nada disso!!! Diz Paulo, oferecendo lhe outras folhas.
Rico empalideceu com a resposta de Paulo.
Folhas de papel e papel picado bóiam sobre o Tâmisa.
Num surto de raiva, Rico rasgou aquelas folhas que explicavam o motivo do assassinato de JW, e jogou junto com todas as outras do manuscrito por um dos janelões do escritório de Paulo Tiago.
- Eu nem lembrava mais!!! Juro que nem lembrava dos detalhes...E não queria lembrar mais!!! Como você pode, JW??? Repetia Rico, ofegante.
Aquelas folhas explicavam em detalhes o processo de... Substituição!!!
Os anos em que a banda parou com os shows ao vivo. Alegaram desentendimentos com os críticos e insatisfação com as suas performances no palco, mas na realidade um de seus membros fundadores e fundamentais morreu em um acidente automobilístico, após ingerir grande quantidade de álcool e drogas.
A barra pesou!!! Será que os críticos aceitariam outro baixista??? Será que as fãs aceitariam a ausência do seu membro mais “bonitinho”??? Como seguir sem alguém tão determinante no estilo e nas composições da banda??? Temiam pelo fim da grupo, as finanças não andavam boas e nenhum deles, exceto JW, tinha segurança para se lançar em uma carreira solo.
Por sorte conseguiram encobrir a tragédia da imprensa e do grande público.
Foi quando um roadie encontrou na Escócia um quase sósia, por sorte ambidestro, tres anos mais novo e com o timbre de voz parecido com o falecido companheiro. Ele foi treinado intensamente por quase dois anos. Aulas de baixo, violão e canto, inflexão de voz, sotaque... A barba foi usada por longo tempo para disfarçar as cicatrizes das operações plásticas. Normalmente não usava sapato nas fotos, por ser um pouco mais alto que o original. A foto com o cigarro na mão direita foi um pequeno deslize.
Enquanto o novato se preparava, JW e Jorginho faziam as linhas do baixo nas gravações e usavam também a voz de material já gravado pelo finado amigo. Um filme em desenho animado e sua trilha cheia de orquestrações também ajudou a ganhar tempo.
A banda adotou uma estratégia singular para combater as suspeitas e os boatos crescentes sobre a morte do companheiro. Em vez de negar, ajudavam a espalhar a boataria, fazendo tudo soar como uma brincadeira jocosa, uma jogada de marketing.
Bella já conhecera o sósia fazendo o papel do finado, quando se apaixonou e casou com ele. Pra ela, ele sempre foi o original.
Mas, apesar da atitude amistosa da maioria, inclusive de Rico e Jorginho, JW nunca aceitou a substituição do antigo e amado parceiro. Após os porres etílicos, comumente o chamava de farsante sem talento e tentava agredi-lo, inclusive fisicamente. Na época JW escreveu : “Eu não acredito na banda. Só acredito em mim. Essa é a realidade. O sonho acabou.” Esse foi o verdadeiro início do fim.
Mas mesmo com o fim da banda o substituto se saiu bem, demonstrou talento e desenvoltura pra continuar vivendo a vida alheia, até que dez anos depois JW resolvera ressuscitar o morto e trazer à tona a verdade.
Sentindo o vento frio no rosto, Paulo olhava para aquelas folhas que há muito queria se livrar e não tivera coragem, boiando e se espalhando pelo Tâmisa. Aquelas folhas antigas e manuscritas, com a tinta borrada pela água, onde algumas começavam a afundar. Provavelmente o rio esconderia seu segredo para sempre, finalmente, ele poderia ser só o grande Paulo Tiago.
- Paulo, talvez você receba uma grande multa por poluição ambiental. Diz Rico
- Mando pra você pagar, Ricardo Estrrela, retrucou Paulo.
- Fifty& fifty??? Propõe Rico com um brinde de scotch.
* "But it ain't me, babe, no, no, no, it ain't me, babe. It ain't me you're lookin' for, babe*: da canção "It Ain't Me Babe" de Bob Dylan.
“O apanhador no campo de centeio”.*: romance do escritor americano J.D.Salinger
Sentado em uma confortável e suntuosa poltrona, com uma xícara de chá na mão esquerda, Paulo Tiago paira seu olhar sobre o Tâmisa, através dos janelões inteiriços de vidro de seu espaçoso escritório.
Lentamente toma seu chá orgânico, sem creme e sem açúcar refinado, e seu olhar parece viajar para muito além daquela paisagem de outono.
- Eu tenho muitas respostas, Rico, mas nenhuma delas me convence plenamente, nenhuma...
- Paulo, nós fomos como...irmãos!!! Enfrentamos todas as barras juntos. Brigamos muito, mas nos divertimos muito também!!! Fomos a maior banda do mundo, aliás, ainda somos... E você...
- Rico, eu amava JW...ainda amo. Entendia a raiva dele. Claro, passamos momentos difíceis também. Mas acho que a banda podia ter dado muito mais. A gente ainda tinha a química. Se JW acreditasse nisso e não tivesse nos trocado por aquela japonesa maluca... Artista plástica de merda!!! Nunca vi nada de bom na arte dela!!! Primeiro quis que ela entrasse na banda...
- Mas aí fomos todos contra!!!
- Mas ele achava que era o dono da banda... E ela não sabia cantar nem tocar nada!!! Depois, se ela não podia entrar na banda, ele também não queria ficar. Pô, isso foi traição, uma facada! Um desrespeito a tudo que passamos juntos. Eu sei o quanto ralei pra conseguir o meu lugar.
- Mas aí, você pra ficar por cima, anunciou que estava saindo da banda antes dele. E o trato era esperar o lançamento do disco. Ninguém podia falar do fim da banda até lá.
- Eu sei, Rico, eu sei...eu estava com o orgulho ferido. Puto da vida!!! E queria muito sacanear o JW.
- Mas aí me sacaneou, sacaneou o Jorginho e sacaneou todo mundo também!!
Paulo Tiago faz silêncio, toma um último gole de chá e descansa a sua xícara sobre a mesa de centro.
- É, Rico, faz tanto tempo... e parece que foi ontem.
Levanta e vai em direção a um quadro na parede com um portrait de sua mulher, Bella, que perdeu a batalha contra o câncer há alguns anos. Retira cuidadosamente o quadro e o apoia no chão cantarolando: ”But it ain't me, babe. No, no, no, it ain't me, babe. It ain't me you're lookin' for...”*
Parecia clichê de algum filme policial, mas atrás do quadro, realmente, havia um cofre. Colocando os óculos, como o senhor octagenário que escondia ser, Paulo começa a digitar a combinação secreta do cofre, recitando os números em voz alta, sem se importar com a presença de Rico.
- 06, 18, 19, 42...
“Quem colocaria a data de seu aniversário como parte da combinação secreta de seu cofre??? Só um grande idiota ou alguém com o ego monstruoso, como Paulo.” Pensou Ricardo Estrrela.
- Você já teve dificuldade em memorizar a data de seu nascimento Rico??? Perguntou Paulo, como se lesse pensamentos.
O cofre se abre, Paulo Tiago tira de lá um maço de papel manuscrito.
- O que é isso??? Indagou Rico.
- Um manuscrito autobiográfico... e Cartas de Marcos Davi, o assassino de JW!!! Responde calmamente Paulo.
Pasmo, Rico perde a voz por instantes.
- Até hoje ele manda cartas da prisão. Claro que para outro endereço e para um pseudônimo.
- Mas por que, Paulo??? Por que esse sujeito se corresponde com você???
- Você sabe que quando ele assassinou JW, tinha um livro nas mãos...
- “O apanhador no campo de centeio”.*
- Isso... fui eu que mandei esse livro para ele, Rico. O livro fala de um jovem americano, seus anseios, sua falta de perspectiva, da necessidade de ter algo em que acreditar, algo que valha a pena...
Rico sente seu estômago embrulhar, conhece Paulo Tiago há muito e sabe o quão manipulador ele pode ser.
- Conheci Marcos Davi quando visitava o MOMA, em Nova Iorque - continuou Paulo. De repente o cara apareceu na minha frente e disse: “Odeio o que JW fez com você e a banda. Ele merecia morrer.” Tomei um susto, ele tinha um olhar de maluco. Me afastei rapidamente, mas vi que ele continuava me seguindo. Bella queria chamar os seguranças, foi quando tive uma ideia e mandei entregar meu cartão pra ele.
O ambiente se tornara pesado demais e Rico, um eterno ex-alcoólatra, corre até a bandeja de bebidas, enche um copo de scotch cowboy, desaba em uma poltrona e vira a bebida em um só gole.
- Você é maquiavélico, Paulo!!! Diz, recuperando o fôlego.
- Nos cinco anos que JW ficou recluso, cuidando do filho, ele escreveu essa autobiografia, que pretendia publicar. Claro que ele deu um jeito para que eu ficasse sabendo disso. Uma autobiografia com muita coisa que não gostaríamos de lembrar e muito menos que o público e os tablóides tomassem conhecimento. Pedi a JW, aliás, implorei, ofereci milhões...e nada. Fingi uma viagem de lazer com Bella e me mandei pra Nova Iorque, achei que cara a cara a gente ainda podia se entender, mas não aconteceu... ele não quis nem me receber. Aliás, ele nunca me aceitou como um igual.
Rico nota que a mágoa em Paulo ainda existia.
- Aí, encontrei Marcos no museu... convencê-lo que JW destruiu a banda e que agora queria destruir a sua memória não foi das coisas mais difíceis. O livro foi só pra dar um ar mais idealista e justificar...
- Que você era o mocinho e JW o bandido... Paulo, você é um monstro!!! Que nojo!!! Rico levanta e enche o copo novamente.
- Rico, eu não queria matar o cara, eu juro, eu só queria que ele parasse. Mas eu precisava me proteger, precisava nos proteger. Era pra ser só um susto...mas o Marcos se apavorou, perdeu o controle. Eu já estava mal e fiquei muito pior. Até hoje me sinto mal, gostaria que tivesse sido diferente. Aí, arrumar um gatuno pra invadir o prédio e roubar o manuscrito, foi fácil. Eu tinha família, filhos pequenos... Bella nunca soube.
- O que tem de tão ”bombástico” aí??? Interrompe Rico, apontando o manuscrito.
Paulo suspira lentamente e procura uma folha no manuscrito.
- Isso, por exemplo...
Rico ajeita os óculos e lê atentamente. De repente solta uma sonora gargalhada:
- Hahhahaha!!!! Foi por isso, Paulo??? Foi por isso??? Não acredito!!! A página que acabara de ler era a descrição minuciosa de uma orgia gay/hetero da qual Paulo e JW participaram ativamente, promovida por BE, empresário da banda na época.
- Você matou JW para o mundo não saber que você já transou com outro cara???
- Éramos jovens, Rico, loucos e inconsequentes. A fama e a grana nos faziam achar que podíamos fazer qualquer coisa.
- Vá se foder, Paulo!!! A gente adorava extrapolar... Hahhahaha!!! Rico não conseguia parar o riso histérico, - Noventa e nove por cento dos “rockstars” daquela época fizeram surubas com homens e mulheres e você matou seu melhor amigo por causa disso??? Quem sabe aparece um velhinho dizendo que já te comeu, Paulo Tiago??? Finalizou, irônico.
- Não Rico, foi porque... eu não fiz nada disso!!! Diz Paulo, oferecendo lhe outras folhas.
Rico empalideceu com a resposta de Paulo.
Folhas de papel e papel picado bóiam sobre o Tâmisa.
Num surto de raiva, Rico rasgou aquelas folhas que explicavam o motivo do assassinato de JW, e jogou junto com todas as outras do manuscrito por um dos janelões do escritório de Paulo Tiago.
- Eu nem lembrava mais!!! Juro que nem lembrava dos detalhes...E não queria lembrar mais!!! Como você pode, JW??? Repetia Rico, ofegante.
Aquelas folhas explicavam em detalhes o processo de... Substituição!!!
Os anos em que a banda parou com os shows ao vivo. Alegaram desentendimentos com os críticos e insatisfação com as suas performances no palco, mas na realidade um de seus membros fundadores e fundamentais morreu em um acidente automobilístico, após ingerir grande quantidade de álcool e drogas.
A barra pesou!!! Será que os críticos aceitariam outro baixista??? Será que as fãs aceitariam a ausência do seu membro mais “bonitinho”??? Como seguir sem alguém tão determinante no estilo e nas composições da banda??? Temiam pelo fim da grupo, as finanças não andavam boas e nenhum deles, exceto JW, tinha segurança para se lançar em uma carreira solo.
Por sorte conseguiram encobrir a tragédia da imprensa e do grande público.
Foi quando um roadie encontrou na Escócia um quase sósia, por sorte ambidestro, tres anos mais novo e com o timbre de voz parecido com o falecido companheiro. Ele foi treinado intensamente por quase dois anos. Aulas de baixo, violão e canto, inflexão de voz, sotaque... A barba foi usada por longo tempo para disfarçar as cicatrizes das operações plásticas. Normalmente não usava sapato nas fotos, por ser um pouco mais alto que o original. A foto com o cigarro na mão direita foi um pequeno deslize.
Enquanto o novato se preparava, JW e Jorginho faziam as linhas do baixo nas gravações e usavam também a voz de material já gravado pelo finado amigo. Um filme em desenho animado e sua trilha cheia de orquestrações também ajudou a ganhar tempo.
A banda adotou uma estratégia singular para combater as suspeitas e os boatos crescentes sobre a morte do companheiro. Em vez de negar, ajudavam a espalhar a boataria, fazendo tudo soar como uma brincadeira jocosa, uma jogada de marketing.
Bella já conhecera o sósia fazendo o papel do finado, quando se apaixonou e casou com ele. Pra ela, ele sempre foi o original.
Mas, apesar da atitude amistosa da maioria, inclusive de Rico e Jorginho, JW nunca aceitou a substituição do antigo e amado parceiro. Após os porres etílicos, comumente o chamava de farsante sem talento e tentava agredi-lo, inclusive fisicamente. Na época JW escreveu : “Eu não acredito na banda. Só acredito em mim. Essa é a realidade. O sonho acabou.” Esse foi o verdadeiro início do fim.
Mas mesmo com o fim da banda o substituto se saiu bem, demonstrou talento e desenvoltura pra continuar vivendo a vida alheia, até que dez anos depois JW resolvera ressuscitar o morto e trazer à tona a verdade.
Sentindo o vento frio no rosto, Paulo olhava para aquelas folhas que há muito queria se livrar e não tivera coragem, boiando e se espalhando pelo Tâmisa. Aquelas folhas antigas e manuscritas, com a tinta borrada pela água, onde algumas começavam a afundar. Provavelmente o rio esconderia seu segredo para sempre, finalmente, ele poderia ser só o grande Paulo Tiago.
- Paulo, talvez você receba uma grande multa por poluição ambiental. Diz Rico
- Mando pra você pagar, Ricardo Estrrela, retrucou Paulo.
- Fifty& fifty??? Propõe Rico com um brinde de scotch.
* "But it ain't me, babe, no, no, no, it ain't me, babe. It ain't me you're lookin' for, babe*: da canção "It Ain't Me Babe" de Bob Dylan.
“O apanhador no campo de centeio”.*: romance do escritor americano J.D.Salinger
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