Assistir televisão à noite, depois de um longo dia de trabalho e um jantar não tão light é fatal, lá vem Morfeu me chamar. Desligo a TV, levanto do sofá, caindo de sono, quase tropeço em Stich, o Maltês de minhas filhas, que está passando umas férias comigo, até passar a TPM da mãe. Atravesso aquele corredor interminável, de 3.5m de comprimento, trançando as pernas. Chego ao meu quarto, nem acendo a luz, vou espalhando roupas pra todos os lados, e de cueca “samba canção”, mergulho em "slow motion" na minha cama de colchão Queen Size. O King Size, infelizmente, é grande demais para o meu "apertamento".
- Vem Morfeu!!! Vem que eu sou teu!!! E me jogo naqueles braços, que logo começam a me envolver. Humm... Isso soou meio gay, não foi??? Mas tudo bem, sem preconceitos!!!
- Mas, "pera aí", esses braços... Eu conheço!!! Não!!! Você não é Morfeu!!! É Sônia!!!
- Oi, gostosão... Ela responde com intimidade.
- E aí, sentiu saudades???
- Não, Sônia!!! Por favor!!! Cadê Morfeu??? Me deixa dormir!!! Eu tô precisando... Morfeu, me ajuda, porra!!! Grito em vão...
- Aaah!!! Vc vai me desprezar assim??? Vai resistir aos meus carinhos??? Cochicha em meu ouvido, enquanto suas mãos ágeis dançam pelo meu corpo. Aperta firme o meu pênis e diz: - Eu du-vi-do!!!
- Pô, você não entende... A gente já se viu essa semana... Assim eu não aguento!!!
- Relaxa, gato. Vem, fica comigo. Eu já tô toda molhada pra você...
Eu tentava resistir, mas minhas defesas começavam a falhar.
- Assim, dentro de mim... Encaixa!!! Ui... Que delícia!!!
- Ah, Sônia... Soninha... Eu juro que não queria...
Quando me dei conta já estava dominado... Dentro de Sonia, In-Sônia!!! E completamente sem sono!!!
Nosso sexo sempre começava assim, irresistível. Sônia é muito sedutora e tem um corpo maravilhoso. Mas acabava se tornando arrastado, interminável, e, o pior, sem clímax, não havia gozo, orgasmo, e sim um desgaste muito grande de energia e tempo. Tanto vai e vem pra nada. Sinceramente, essa repetição insalubre, sem a liberação de Endorfina, me deixava muito irritado!!! E claro, não tinha o depois pra relaxar!!!
- Chega!!! Sônia, vai pra casa, vai!!! Você não tem outro compromisso???
- Deixa eu ficar mais um pouquinho perto de você, vai???
- Não quero ser chato, mas preciso descansar. Eu trabalho amanhã!!!
- Ah, vai...
Não adiantava. Porta alguma ou fechadura eram empecilhos para ela entrar. E por mais que eu implorasse, Sônia só ia embora quando ela sentia vontade. Alguns dias, partia, quando notava que minha saúde não suportava mais o esforço, e em outros, só ao nascer do dia. Quantas vezes fui trabalhar sem ter pregado os olhos por um só instante sequer. A falta de sono torna meu dia um completo stress.
Após o sexo frustrante, para as noites não serem um total desperdício, comecei a tentar ser produtivo. Escrevo matérias adiantando o trabalho, crônicas, toco violão, leio, assisto filmes... E, uma coisa tenho de admitir, ela me acompanha por horas e mais horas, demonstrando o maior interesse. Às vezes até me surpreende:
- Gostei!!! O jeito como você descreve a dinâmica musical da orquestra... Quase consigo vê-los tocando. Tem vida, graça, movimento!!! "God gave you style and gave you grace"*...Cantarola.
- Obrigado! Apesar do cansaço, agradeço a gentileza e acredito em sua sinceridade. Mas o preço a pagar é caro demais. É como um vício de longa data, cada vez menos prazer, por um custo cada vez mais alto.
Nunca fui de dormir cedo, mas depois que entrei nessa relação louca, a situação saiu completamente de meu controle. Até Stich se escondia e evitava a presença de Sônia.
- Veja bem, não é que eu não goste de você, mas entenda, eu não sou mais um menino, e não aguento mais o ritmo de nossa convivência. Eu quero parar... Eu preciso parar!!! Eu preciso dormir, Sônia!!!
- Eu gosto tanto de você!!! Por que você sempre me rejeita??? E começava a choramingar, era sempre assim. Chantagista!!!
Mas de pouco adiantavam nossas discussões, pois invariavelmente ela voltava. E voltava como se nada tivesse acontecido. Sônia não tinha o mínimo de “se mancol”.
Eu não sabia mais o que fazer...
Meu amigo e editor chefe, Fabrício Quintana, preocupado com minha saúde, entregou me o cartão de um terapeuta de distúrbios do sono:
- Liga pra esse cara!!! Ele me deve um favor. Coloquei uma matéria falando bem dele na nossa revista há um tempo atrás. Não aguento mais ver você com essa cara de Zumbi!!!
Mas como eu ia fazer terapia para mudar a vontade de Sônia???
Liguei!!! Puro desespero. Eu precisava me livrar dela.
Falei à beça!!! Claro que não mencionei Sônia para não parecer maluco. Depois, o tal terapeuta me colocou em uma maca com vários fios na cabeça e um Mantra hipnótico tocando ao fundo. Dormi de roncar!!! Saí de lá com duas caixas, amostra grátis, de um remédio tarja preta. Um ansiolítico poderoso, eu suponho.
Como meu sucesso, dependia da vontade de Sônia de me deixar em paz, e isso, com certeza, não seria de sua espontânea vontade, preparei uma armadilha. Deitei com dois comprimidos na boca e assim quando ela viesse me beijar, passaria um comprimido para a boca dela. Ficaríamos relaxados, os dois, nos braços de Morfeu.
Acordo zonzo, perdi a hora do trabalho!!! Existe uma nuvem entre meu cérebro e meu corpo. Merda!!! Sônia não apareceu!!! Tomei os dois comprimidos. Como ela percebeu??? Sônia realmente é muito esperta!!!
Um café forte e um banho frio. Consigo ir trabalhar.
Fabrício desdenha:
- Quer dizer que ou não dorme nada ou dorme demais???
Nas últimas noites, Sônia não tem aparecido. Ela sabe que posso ter algo preparado.
Tenho conseguido dormir, mas acordo sempre preocupado. E quando o remédio acabar, será que ela vai voltar???
* "God gave you style and gave you grace": da música "God put a smile upon your face" do grupo Coldplay.
Nota do autor: "Grande parte da população mundial sofre de algum distúrbio do sono. Eu sou um deles. Tenho um sério problema de Insônia. E me perdoem o trocadilho infame, mas como não tenho uma namorada Sônia, eu preferia sinceramente estar “Out-Sônia”.
quarta-feira, 13 de janeiro de 2010
In-Sônia
quinta-feira, 7 de janeiro de 2010
Guia de Sobrevivência
São Paulo, 7:45 P.M.
Hoje foi meu último dia como contratado da revista Cultura Paulistana. Foram quase três anos. Três anos que passaram como o vento. Foi um período muito bom, tanto pessoal como profissionalmente. Recuperei a minha auto-estima após uma separação conjugal conturbada, e adquiri desenvoltura e conhecimento para escrever sobre vários assuntos, sem preconceitos. Mas vinha sentindo que minha vida se tornara meio “morna” ultimamente.
Fabrício Quintana, meu amigo e editor chefe da revista, recusou veementemente minha demissão, mas eu insisti. Senti que chegou a hora de sair da comodidade de um emprego fixo, aceitar novos desafios e voltar a escrever sobre o que mais gosto: música.
A revista ocupa todo o décimo sétimo andar de um prédio com vista para a Marginal Pinheiros, próximo a Berrini. A grande sala da redação está praticamente vazia. Acho que somente uns “dois gatos pingados”, escondidos pelas divisórias, ainda permanecem trabalhando. Hoje é sexta feira, o “happy hour” é sagrado e, como estamos em dezembro, já festejam o final do ano. Aproveito o momento tranquilo para evitar uma despedida longa e chorosa.
Esvazio a minha “baia”, mas como não trouxe uma caixa de madeira ou papelão, como nos filmes americanos, pedi à Dona Antonia, da limpeza, dois enormes sacos de lixo preto. Seleciono o que presta e guardo nos sacos, o lixo mesmo fica de fora.
Em uma gaveta da escrivaninha, entre anotações quase incompreensíveis e agora inúteis, encontro uma folha de papel envelhecida com frases manuscritas. Sento na cadeira e dou um longo suspiro saudoso. Esse papel me acompanha desde o início da carreira profissional. Eu, na época, um sonhador candidato a escritor famoso, compilei essas frases como uma inspiração, como um guia, o meu “Guia de Sobrevivência”:
- Não há no mundo coisa mais difícil do que a sinceridade e mais fácil do que a lisonja. (Fiódor Dostoievsky)
- Aceita o conselho dos outros, mas nunca desista de sua própria opinião. (William Shakespeare)
- Escrever é traduzir em palavras o que já está escrito dentro de nós. (Kan Kato)
- O rascunho escrevemos com o coração. Depois reescrevemos com o cérebro. (William Forrester)
- Noventa por cento do que escrevo eu invento. Só dez por cento é mentira. (Manoel de Barros)
- Mentir com graça, de uma maneira pessoal, é quase melhor do que dizer a verdade à maneira de toda gente. (Dostoievsky)
- Os homens de poucas palavras são os melhores. (Shakespeare)
- Não há assunto tão velho que não possa ser dito algo de novo sobre ele. (Dostoievsky)
- Tenho pensamentos que, se pudesse revelá-los e fazê-los viver, acrescentariam nova luminosidade às estrelas, nova beleza ao mundo e maior amor aos homens. (Fernando Pessoa)
- Deus está nos detalhes. (Lema de Walter Clark)
E uma observação ao pé da página: Leia sempre “O menino que carregava água na peneira”. Um poema de Manoel de Barros que Larissa, meu grande amor dos tempos de faculdade, enquadrou e me deu de presente de formatura com a dedicatória: “Pro meu menino que carrega água na peneira”.
Fico feliz, que mesmo não tendo sido um Nobel de literatura, essas frases continuam reverberando e sendo verdadeiras dentro de mim.
Enxugo as lágrimas e vou para casa, eu e meus preciosos sacos de lixo.
Hoje foi meu último dia como contratado da revista Cultura Paulistana. Foram quase três anos. Três anos que passaram como o vento. Foi um período muito bom, tanto pessoal como profissionalmente. Recuperei a minha auto-estima após uma separação conjugal conturbada, e adquiri desenvoltura e conhecimento para escrever sobre vários assuntos, sem preconceitos. Mas vinha sentindo que minha vida se tornara meio “morna” ultimamente.
Fabrício Quintana, meu amigo e editor chefe da revista, recusou veementemente minha demissão, mas eu insisti. Senti que chegou a hora de sair da comodidade de um emprego fixo, aceitar novos desafios e voltar a escrever sobre o que mais gosto: música.
A revista ocupa todo o décimo sétimo andar de um prédio com vista para a Marginal Pinheiros, próximo a Berrini. A grande sala da redação está praticamente vazia. Acho que somente uns “dois gatos pingados”, escondidos pelas divisórias, ainda permanecem trabalhando. Hoje é sexta feira, o “happy hour” é sagrado e, como estamos em dezembro, já festejam o final do ano. Aproveito o momento tranquilo para evitar uma despedida longa e chorosa.
Esvazio a minha “baia”, mas como não trouxe uma caixa de madeira ou papelão, como nos filmes americanos, pedi à Dona Antonia, da limpeza, dois enormes sacos de lixo preto. Seleciono o que presta e guardo nos sacos, o lixo mesmo fica de fora.
Em uma gaveta da escrivaninha, entre anotações quase incompreensíveis e agora inúteis, encontro uma folha de papel envelhecida com frases manuscritas. Sento na cadeira e dou um longo suspiro saudoso. Esse papel me acompanha desde o início da carreira profissional. Eu, na época, um sonhador candidato a escritor famoso, compilei essas frases como uma inspiração, como um guia, o meu “Guia de Sobrevivência”:
- Não há no mundo coisa mais difícil do que a sinceridade e mais fácil do que a lisonja. (Fiódor Dostoievsky)
- Aceita o conselho dos outros, mas nunca desista de sua própria opinião. (William Shakespeare)
- Escrever é traduzir em palavras o que já está escrito dentro de nós. (Kan Kato)
- O rascunho escrevemos com o coração. Depois reescrevemos com o cérebro. (William Forrester)
- Noventa por cento do que escrevo eu invento. Só dez por cento é mentira. (Manoel de Barros)
- Mentir com graça, de uma maneira pessoal, é quase melhor do que dizer a verdade à maneira de toda gente. (Dostoievsky)
- Os homens de poucas palavras são os melhores. (Shakespeare)
- Não há assunto tão velho que não possa ser dito algo de novo sobre ele. (Dostoievsky)
- Tenho pensamentos que, se pudesse revelá-los e fazê-los viver, acrescentariam nova luminosidade às estrelas, nova beleza ao mundo e maior amor aos homens. (Fernando Pessoa)
- Deus está nos detalhes. (Lema de Walter Clark)
E uma observação ao pé da página: Leia sempre “O menino que carregava água na peneira”. Um poema de Manoel de Barros que Larissa, meu grande amor dos tempos de faculdade, enquadrou e me deu de presente de formatura com a dedicatória: “Pro meu menino que carrega água na peneira”.
Fico feliz, que mesmo não tendo sido um Nobel de literatura, essas frases continuam reverberando e sendo verdadeiras dentro de mim.
Enxugo as lágrimas e vou para casa, eu e meus preciosos sacos de lixo.
quarta-feira, 6 de janeiro de 2010
Nepal (Capítulo Um)
Cordilheira do Himalaia, ou Morada das Neves, mais de 4000m acima do nível do mar. Na tarde do sexto dia, éramos três a subir lentamente por aquelas trilhas desertas. Pradip, o guia sherpa*, que seguia a pé, Maritza, a fotógrafa, e eu montados nos yaks, que nos carregavam e levavam a nossa bagagem. Respirava com certa dificuldade, o ar rarefeito parecia que não chegava aos pulmões. Sentia cansaço e um pouco de tontura. Minha hérnia de disco lombar incomodava bastante e o cheiro forte dos yaks me enjoava também. Estávamos no Reino do Nepal.
Mas o que eu estava fazendo ali???
Eu explico. Ia sair de férias e pretendia passar um mês sem escrever nada, nem um email se quer. Mas aí recebi um telefonema de Fabrício Quintana, editor chefe da revista Cultura Paulistana, que sempre me considerou um competente “pau pra toda obra”, com uma proposta irrecusável: passagem, todos os custos da viagem pagos e mais US$3.500 dólares. Ele estava fascinado com um email e fotos que recebera de seu amigo francês, Phillip Tresour, sobre um povoado himalaio. Não quis me dar muitos detalhes de seus habitantes misteriosos, simplesmente disse com entusiasmo: “Cara, se pudesse, eu mesmo iria!!!”
Mesmo sendo conhecido como um jornalista ou cronista musical (odeio a denominação crítico, parece alguém destrutivo, que tem prazer em falar mal do trabalho alheio) me julgo bastante versátil para abordar convincentemente vários assuntos (e adoro desafios!!!). Mas esse, em especial, foi o mais inusitado de todos. Pode ser classificado como... hummm...uma grande curiosidade antropológica, ou um apêndice do caminho evolutivo.
O Nepal é o país mais pobre da Ásia, localizado entre a China e a Índia. Pousei em Kathmandu, a capital, situada a 1.300m de altitude, num final de tarde de maio. A cidade fica em um vale do mesmo nome e, por incrível que pareça, o grande problema dela é a poluição ambiental.
Encontrei Maritza no saguão do Hotel Shanker, um antigo palácio transformado em um belíssimo hotel, ela chegou direto de um editorial de moda na Muralha da China. Já tínhamos sido apresentados por Fabrício no Brasil, mas era o nosso primeiro trabalho em conjunto. Fizemos um passeio noturno de taxi pelas ruas estreitas e jantamos no restaurante Barbamahal, provamos o Alu Tama, um prato típico com brotos de bambu temperado com curry. Viemos na Primavera local, com uma temperatura bastante agradável, pelo menos nas baixas altitudes.
No dia seguinte, após subir os nove andares da Torre Dharahara para uma visão panorâmica da cidade e uma rápida visita ao Templo Budista Swayambhunath, conhecido como o templo do macaco pela grande presença de pequenos símios no seu interior e arredores, fomos de taxi bicicleta, estilo "rikisha", até os limites da cidade. Lá, subimos na carroceria de uma antiga caminhonete e viajamos os primeiros 150km em uma estreita estrada de terra de mão dupla, onde passamos por muitos sustos de quase acidentes. Fomos deixados em uma bifurcação da estrada, onde nos esperavam o guia e três carregadores, iniciamos nossa jornada por um caminho ascendente de trilhas de terra batida com um calçamento esparso de pedras de diversos tamanhos. Caminhávamos com a ajuda de “bengalas”, que pareciam tacos de cricket com um apoio lateral para a mão.
Atravessamos algumas pontes muito altas, sobre vale e rios, umas rústicas, outras já mais modernas de metal, suspensas por cabos de aço.
Encontramos muitos turistas estrangeiros subindo e descendo essas trilhas, com carregadores locais, transportando sua bagagem, além de grupos de peregrinos liderados por seus shamans. Passamos por inúmeros vilarejos até chegar a Phakding, situado a 2.610 m de altitude, onde trocamos os carregadores por yaks e pegamos uma trilha alternativa, não utilizada por turistas ou alpinistas que vão ao Everest e ao Parque Nacional de Sagarmatha**. O caminho agora se tornara mais estreito e íngreme. Nossa “missão” devia ser executada com toda a discrição possível.
A beleza da paisagem, com os picos sempre cobertos de neve e os vales verdejantes abaixo, é encantadora e única. Maritza documentava tudo com sua câmera. Fazia belas fotos com um olhar muito particular. Sem dúvida uma mulher interessante. De olhos expressivos e falantes. Os olhos falantes e muitas vezes a boca também.
Quase morri de raiva quando ela me contou que Fabrício aceitou aumentar o cachet dela para US$5.000,00 dólares por causa do equipamento.
Pela disposição e firmeza, via-se que ela praticava exercícios regulares.Tinha um corpo mignon, mas bem provida de formas, escondidas pelo excesso de roupas largas e confortáveis. Algo no jeito como ela falava de Fabrício fazia crer que existia algum envolvimento especial entre eles.
Parávamos de tempos em tempos para descansar, alongar e fazer uma refeição, da qual faziam parte chura, que são bolinhos de arroz batido, carne seca e salgada de yak, chhurpi, o queijo de leite de yak e tomávamos um chá gorduroso e enjoativo de manteiga de yak, um energético local. Comia, com uma certa culpa, sem coragem de encarar os nossos animais de carga. A carne seca vinha de alguns povoados das planícies baixas, não hinduístas ou budistas, que permitem o sacrifício animal. O guia comia sempre pequenas pimentas verdes, muito fortes, dizia que fazia bem para o coração, espantava o frio e ajudava a manter a atividade corporal.
Dormimos as três primeiras noites em pequenos vilarejos, onde o nosso maior luxo foi ter um chalé com banheiro. Provamos o Dal Bhat, que é o arroz com feijão nepalês, só que em vez de feijão usam lentilhas. Grande parte do povo do Nepal come Dal Bhat todos os dias, duas vezes ao dia. A presença de verduras na refeição é constante, a de carne é rara. A plantação local é feita em forma de grandes degraus, platôs escavados nas encostas.
Em nossa quarta noite, a primeira em barracas ao relento, Maritza descalçou sua bota, junto à fogueira. Na hora pensei que um yak havia flatulado e me afastei. Mas logo percebi que aquele cheiro horroroso era o “chulé” do pé de Maritza, que ficara em “conserva” dentro daquela bota o dia todo. Argh!!! Já estava enjoado. Fiquei verde musgo!!! Quase vomitei... O guia olhava para mim e gargalhava. Maritza ficou sem jeito calçou a bota de volta e resmungou disfarçando: “Que animais fedorentos, meu Deus!!!” Não conseguia acreditar que aquela “bomba biológica” tinha vindo do pé de uma mulher tão pequena e atraente.
Às vezes ouvíamos rugidos de Leopardos das Neves, mas o guia dizia que dificilmente eles atacam seres humanos, pelo contrário, sabiamente, eles nos evitam
Queríamos chegar a misteriosa aldeia "Pedra sobre as Nuvens", antes do anoitecer do sexto dia.
Nosso guia, Pradip, entoava ciclicamente um incompreensível mantra, cheio de comas***, mal falava inglês e utilizava mais gestos e mímica do que palavras para se comunicar conosco. Ele tinha sido o guia de Philippe Tresour, e era um dos poucos que conhecia esse caminho.
Já era quase o fim de tarde do dia previsto para a nossa chegada, vendo o nosso cansaço, Pradip sinaliza que estamos perto, quase chegando.
Subimos mais um ou dois quilômetros, já não sabia ao certo, e chegamos a um certo ponto da trilha onde repentinamente as pedras acabam e continua em um chão de terra batida alisada e com marcas que lembravam as de pneus. Pneus??? Será que usam algum tipo de carro nessas alturas??? As marcas eram muito largas para serem de rodas de carroça.
De repente, surge pela trilha algo que vem rolando ladeira abaixo em nossa direção!!! Rolando velozmente como um pneu!!! E logo em seguida vêm mais dois menores!!!
Olhava boquiaberto com o coração disparado. O que era aquilo??? Maritza fotografava sem parar.
- Children!!! Disse o guia.
- What??? Perguntei.
- Children!!! Repetiu, apontando os "pneus".
De repente, chegando a uns cinco metros de nós, frearam, se desenrolaram e num pulo se puseram de pé e baixaram o capuz do casaco.
- São crianças!!! Disse Maritza, sorrindo.
Eu estava extasiado sem palavras.
Ali estavam a nos fitar com suas bochechas rosadas, corpos pequenos e fortes, três crianças. Um garoto de uns doze, treze anos e outros dois, um menino e uma menina, que não passavam de dez. Esse era o nosso primeiro contato com os fantásticos habitantes daquela aldeia, que apelidei mais tarde de “O povo Tatu Bola”.
-Namastê!!! Saudou Pradip sorrindo e aproximou-se deles oferecendo bolinhos de chura. Parece que já eram conhecidos. As crianças aceitaram sem tirar os olhos de nós. A fascinação era mútua.
Maritza agilmente saltou do yak e começou a se aproximar dos meninos para fotografá-los. Os dois menores correram para trás do maior. O guia fez um gesto para que ela parasse. Não seria bom assustar o nosso comitê de “boas vindas.
Pradip pediu a eles que nos guiassem até a aldeia. Seguimos mais um tempo pela trilha, mas esquecemos completamente do cansaço com a presença dos meninos. Minha hérnia quase não incomodava mais. As crianças iam à nossa frente. Corriam e depois paravam esperando que chegássemos perto. Não como pneus, lógico, eles não rolavam ladeira acima. De repente correram e começaram a gritar. As crianças anunciavam a nossa presença à aldeia.
Chegamos!!! Finalmente, chegamos a "Pedra sobre as Nuvens"!!!
Em um platô, cercado por um muro baixo de pedras, estavam acomodadas em um semicírculo, não mais do que 15 casas, todas de madeira, com chaminés de pedra. Ao fundo se destacava imponente o pico nevado do Manaslu*, uma das montanhas mais altas do mundo.
Com o grito das crianças, os moradores saíam de suas casas e nos observavam. Alguns vinham em nossa direção e paravam a uma distância respeitosa. Olhavam para nós com um misto de curiosidade e desconfiança. Eram todos de pequena estatura, os homens não tinham mais de 1,65m e as mulheres eram uns 10cm menores. Fortes, de cabeças grandes, pescoços curtos e grossos. A pele parda, queimada, e os olhos amendoados. Lembravam um pouco os esquimós.
-Namastê, repetíamos para aqueles olhos curiosos, mas sem resposta alguma.
Nosso guia se aproximou para tentar conversar. Na realidade, éramos os primeiros estrangeiros, em mais de vinte anos, na aldeia. Phillip montou acampamento perto do vilarejo e limitou-se a tirar fotos com uma teleobjetiva.
Fomos encaminhados a uma casa que ocupava uma posição central no semicírculo, a casa da matriarca da aldeia. Ela estava à porta observando tudo. Uma pequena senhora toda enrugada, com uns 80 anos de idade, não mais do que 1,50m de altura, com o cabelo todo branco e preso. A ela caberia a decisão de podermos ou não ficar na aldeia.
O guia ofereceu mantimentos em troca de nossa estadia, mas a anciã, “dura na queda”, não parecia muito disposta a ceder. Já estavam a discutir avidamente por mais de quinze minutos. Pradip nos dizia que ela queria saber o porquê e o para quê de nossa visita. Por mais que argumentássemos, ela não se dava por satisfeita, e era proibido nos dirigirmos diretamente à matriarca. Quando tudo parecia se encaminhar para a nossa frustrante volta trilha abaixo, Maritza mexe em sua mochila e para espanto geral se encaminha para a anciã. O que ela pretendia fazer???
- Maritz...Antes que eu terminasse de chamá-la ela se aproxima com uma reverência respeitosa e presenteia a matriarca com alguns objetos.
A anciã fita demoradamente aqueles presentes: uma sandália de borracha, bem feminina com estampa floral, tamanho 35/36, grande para ela, uma escova de cabelo e um batom vermelho com protetor solar. Ela parece que não entende bem como destampar o batom. Maritza pega o seu no bolso do casaco e faz uma demonstração.
De repente, a matriarca abre um sorriso e diz algumas palavras.
Pradip traduz: “ Ok. One week!!!”
O povoado todo comenta a decisão, a maioria se mostra resistente à nossa presença, mas comemoramos como um gol em final de campeonato.
Abracei Maritza e cochichei: “É assim que os colonizadores tapeavam os índios...”
- Desça a trilha com Pradip, se você preferir... Ironizou ela.
A permissão de estadia não se extendia a Pradip. Ficaríamos sem o guia durante nossa aventura na aldeia.
*sherpa: etnia originária das altas regiões montanhosas do Nepal.
**Sagarmatha: ou Grande-mãe do Universo é o nome original do monte Everest.
***comas: no intervalo temperado de 1 tom existem 9 comas musicais. No sistema temperado ocidental de tons e semi- tons eles não são considerados.
Mas o que eu estava fazendo ali???
Eu explico. Ia sair de férias e pretendia passar um mês sem escrever nada, nem um email se quer. Mas aí recebi um telefonema de Fabrício Quintana, editor chefe da revista Cultura Paulistana, que sempre me considerou um competente “pau pra toda obra”, com uma proposta irrecusável: passagem, todos os custos da viagem pagos e mais US$3.500 dólares. Ele estava fascinado com um email e fotos que recebera de seu amigo francês, Phillip Tresour, sobre um povoado himalaio. Não quis me dar muitos detalhes de seus habitantes misteriosos, simplesmente disse com entusiasmo: “Cara, se pudesse, eu mesmo iria!!!”
Mesmo sendo conhecido como um jornalista ou cronista musical (odeio a denominação crítico, parece alguém destrutivo, que tem prazer em falar mal do trabalho alheio) me julgo bastante versátil para abordar convincentemente vários assuntos (e adoro desafios!!!). Mas esse, em especial, foi o mais inusitado de todos. Pode ser classificado como... hummm...uma grande curiosidade antropológica, ou um apêndice do caminho evolutivo.
O Nepal é o país mais pobre da Ásia, localizado entre a China e a Índia. Pousei em Kathmandu, a capital, situada a 1.300m de altitude, num final de tarde de maio. A cidade fica em um vale do mesmo nome e, por incrível que pareça, o grande problema dela é a poluição ambiental.
Encontrei Maritza no saguão do Hotel Shanker, um antigo palácio transformado em um belíssimo hotel, ela chegou direto de um editorial de moda na Muralha da China. Já tínhamos sido apresentados por Fabrício no Brasil, mas era o nosso primeiro trabalho em conjunto. Fizemos um passeio noturno de taxi pelas ruas estreitas e jantamos no restaurante Barbamahal, provamos o Alu Tama, um prato típico com brotos de bambu temperado com curry. Viemos na Primavera local, com uma temperatura bastante agradável, pelo menos nas baixas altitudes.
No dia seguinte, após subir os nove andares da Torre Dharahara para uma visão panorâmica da cidade e uma rápida visita ao Templo Budista Swayambhunath, conhecido como o templo do macaco pela grande presença de pequenos símios no seu interior e arredores, fomos de taxi bicicleta, estilo "rikisha", até os limites da cidade. Lá, subimos na carroceria de uma antiga caminhonete e viajamos os primeiros 150km em uma estreita estrada de terra de mão dupla, onde passamos por muitos sustos de quase acidentes. Fomos deixados em uma bifurcação da estrada, onde nos esperavam o guia e três carregadores, iniciamos nossa jornada por um caminho ascendente de trilhas de terra batida com um calçamento esparso de pedras de diversos tamanhos. Caminhávamos com a ajuda de “bengalas”, que pareciam tacos de cricket com um apoio lateral para a mão.
Atravessamos algumas pontes muito altas, sobre vale e rios, umas rústicas, outras já mais modernas de metal, suspensas por cabos de aço.
Encontramos muitos turistas estrangeiros subindo e descendo essas trilhas, com carregadores locais, transportando sua bagagem, além de grupos de peregrinos liderados por seus shamans. Passamos por inúmeros vilarejos até chegar a Phakding, situado a 2.610 m de altitude, onde trocamos os carregadores por yaks e pegamos uma trilha alternativa, não utilizada por turistas ou alpinistas que vão ao Everest e ao Parque Nacional de Sagarmatha**. O caminho agora se tornara mais estreito e íngreme. Nossa “missão” devia ser executada com toda a discrição possível.
A beleza da paisagem, com os picos sempre cobertos de neve e os vales verdejantes abaixo, é encantadora e única. Maritza documentava tudo com sua câmera. Fazia belas fotos com um olhar muito particular. Sem dúvida uma mulher interessante. De olhos expressivos e falantes. Os olhos falantes e muitas vezes a boca também.
Quase morri de raiva quando ela me contou que Fabrício aceitou aumentar o cachet dela para US$5.000,00 dólares por causa do equipamento.
Pela disposição e firmeza, via-se que ela praticava exercícios regulares.Tinha um corpo mignon, mas bem provida de formas, escondidas pelo excesso de roupas largas e confortáveis. Algo no jeito como ela falava de Fabrício fazia crer que existia algum envolvimento especial entre eles.
Parávamos de tempos em tempos para descansar, alongar e fazer uma refeição, da qual faziam parte chura, que são bolinhos de arroz batido, carne seca e salgada de yak, chhurpi, o queijo de leite de yak e tomávamos um chá gorduroso e enjoativo de manteiga de yak, um energético local. Comia, com uma certa culpa, sem coragem de encarar os nossos animais de carga. A carne seca vinha de alguns povoados das planícies baixas, não hinduístas ou budistas, que permitem o sacrifício animal. O guia comia sempre pequenas pimentas verdes, muito fortes, dizia que fazia bem para o coração, espantava o frio e ajudava a manter a atividade corporal.
Dormimos as três primeiras noites em pequenos vilarejos, onde o nosso maior luxo foi ter um chalé com banheiro. Provamos o Dal Bhat, que é o arroz com feijão nepalês, só que em vez de feijão usam lentilhas. Grande parte do povo do Nepal come Dal Bhat todos os dias, duas vezes ao dia. A presença de verduras na refeição é constante, a de carne é rara. A plantação local é feita em forma de grandes degraus, platôs escavados nas encostas.
Em nossa quarta noite, a primeira em barracas ao relento, Maritza descalçou sua bota, junto à fogueira. Na hora pensei que um yak havia flatulado e me afastei. Mas logo percebi que aquele cheiro horroroso era o “chulé” do pé de Maritza, que ficara em “conserva” dentro daquela bota o dia todo. Argh!!! Já estava enjoado. Fiquei verde musgo!!! Quase vomitei... O guia olhava para mim e gargalhava. Maritza ficou sem jeito calçou a bota de volta e resmungou disfarçando: “Que animais fedorentos, meu Deus!!!” Não conseguia acreditar que aquela “bomba biológica” tinha vindo do pé de uma mulher tão pequena e atraente.
Às vezes ouvíamos rugidos de Leopardos das Neves, mas o guia dizia que dificilmente eles atacam seres humanos, pelo contrário, sabiamente, eles nos evitam
Queríamos chegar a misteriosa aldeia "Pedra sobre as Nuvens", antes do anoitecer do sexto dia.
Nosso guia, Pradip, entoava ciclicamente um incompreensível mantra, cheio de comas***, mal falava inglês e utilizava mais gestos e mímica do que palavras para se comunicar conosco. Ele tinha sido o guia de Philippe Tresour, e era um dos poucos que conhecia esse caminho.
Já era quase o fim de tarde do dia previsto para a nossa chegada, vendo o nosso cansaço, Pradip sinaliza que estamos perto, quase chegando.
Subimos mais um ou dois quilômetros, já não sabia ao certo, e chegamos a um certo ponto da trilha onde repentinamente as pedras acabam e continua em um chão de terra batida alisada e com marcas que lembravam as de pneus. Pneus??? Será que usam algum tipo de carro nessas alturas??? As marcas eram muito largas para serem de rodas de carroça.
De repente, surge pela trilha algo que vem rolando ladeira abaixo em nossa direção!!! Rolando velozmente como um pneu!!! E logo em seguida vêm mais dois menores!!!
Olhava boquiaberto com o coração disparado. O que era aquilo??? Maritza fotografava sem parar.
- Children!!! Disse o guia.
- What??? Perguntei.
- Children!!! Repetiu, apontando os "pneus".
De repente, chegando a uns cinco metros de nós, frearam, se desenrolaram e num pulo se puseram de pé e baixaram o capuz do casaco.
- São crianças!!! Disse Maritza, sorrindo.
Eu estava extasiado sem palavras.
Ali estavam a nos fitar com suas bochechas rosadas, corpos pequenos e fortes, três crianças. Um garoto de uns doze, treze anos e outros dois, um menino e uma menina, que não passavam de dez. Esse era o nosso primeiro contato com os fantásticos habitantes daquela aldeia, que apelidei mais tarde de “O povo Tatu Bola”.
-Namastê!!! Saudou Pradip sorrindo e aproximou-se deles oferecendo bolinhos de chura. Parece que já eram conhecidos. As crianças aceitaram sem tirar os olhos de nós. A fascinação era mútua.
Maritza agilmente saltou do yak e começou a se aproximar dos meninos para fotografá-los. Os dois menores correram para trás do maior. O guia fez um gesto para que ela parasse. Não seria bom assustar o nosso comitê de “boas vindas.
Pradip pediu a eles que nos guiassem até a aldeia. Seguimos mais um tempo pela trilha, mas esquecemos completamente do cansaço com a presença dos meninos. Minha hérnia quase não incomodava mais. As crianças iam à nossa frente. Corriam e depois paravam esperando que chegássemos perto. Não como pneus, lógico, eles não rolavam ladeira acima. De repente correram e começaram a gritar. As crianças anunciavam a nossa presença à aldeia.
Chegamos!!! Finalmente, chegamos a "Pedra sobre as Nuvens"!!!
Em um platô, cercado por um muro baixo de pedras, estavam acomodadas em um semicírculo, não mais do que 15 casas, todas de madeira, com chaminés de pedra. Ao fundo se destacava imponente o pico nevado do Manaslu*, uma das montanhas mais altas do mundo.
Com o grito das crianças, os moradores saíam de suas casas e nos observavam. Alguns vinham em nossa direção e paravam a uma distância respeitosa. Olhavam para nós com um misto de curiosidade e desconfiança. Eram todos de pequena estatura, os homens não tinham mais de 1,65m e as mulheres eram uns 10cm menores. Fortes, de cabeças grandes, pescoços curtos e grossos. A pele parda, queimada, e os olhos amendoados. Lembravam um pouco os esquimós.
-Namastê, repetíamos para aqueles olhos curiosos, mas sem resposta alguma.
Nosso guia se aproximou para tentar conversar. Na realidade, éramos os primeiros estrangeiros, em mais de vinte anos, na aldeia. Phillip montou acampamento perto do vilarejo e limitou-se a tirar fotos com uma teleobjetiva.
Fomos encaminhados a uma casa que ocupava uma posição central no semicírculo, a casa da matriarca da aldeia. Ela estava à porta observando tudo. Uma pequena senhora toda enrugada, com uns 80 anos de idade, não mais do que 1,50m de altura, com o cabelo todo branco e preso. A ela caberia a decisão de podermos ou não ficar na aldeia.
O guia ofereceu mantimentos em troca de nossa estadia, mas a anciã, “dura na queda”, não parecia muito disposta a ceder. Já estavam a discutir avidamente por mais de quinze minutos. Pradip nos dizia que ela queria saber o porquê e o para quê de nossa visita. Por mais que argumentássemos, ela não se dava por satisfeita, e era proibido nos dirigirmos diretamente à matriarca. Quando tudo parecia se encaminhar para a nossa frustrante volta trilha abaixo, Maritza mexe em sua mochila e para espanto geral se encaminha para a anciã. O que ela pretendia fazer???
- Maritz...Antes que eu terminasse de chamá-la ela se aproxima com uma reverência respeitosa e presenteia a matriarca com alguns objetos.
A anciã fita demoradamente aqueles presentes: uma sandália de borracha, bem feminina com estampa floral, tamanho 35/36, grande para ela, uma escova de cabelo e um batom vermelho com protetor solar. Ela parece que não entende bem como destampar o batom. Maritza pega o seu no bolso do casaco e faz uma demonstração.
De repente, a matriarca abre um sorriso e diz algumas palavras.
Pradip traduz: “ Ok. One week!!!”
O povoado todo comenta a decisão, a maioria se mostra resistente à nossa presença, mas comemoramos como um gol em final de campeonato.
Abracei Maritza e cochichei: “É assim que os colonizadores tapeavam os índios...”
- Desça a trilha com Pradip, se você preferir... Ironizou ela.
A permissão de estadia não se extendia a Pradip. Ficaríamos sem o guia durante nossa aventura na aldeia.
*sherpa: etnia originária das altas regiões montanhosas do Nepal.
**Sagarmatha: ou Grande-mãe do Universo é o nome original do monte Everest.
***comas: no intervalo temperado de 1 tom existem 9 comas musicais. No sistema temperado ocidental de tons e semi- tons eles não são considerados.
A Manhã Seguinte ( Nepal Capítulo 2)
Acordo de sobressalto com os gritos de Maritza. Corro para a porta da casa que nos cederam e a encontro paralisada de medo. Um jovem leopardo das neves estava na entrada da casa agachado, com o olhar fixo sobre ela. Puxo Maritza para dentro da casa e falo baixo, quase cochichando: - Calma, devagar...muita calma...
O susto foi mútuo. O leopardo está numa posição defensiva, não de ataque. Pego uma vassoura de palha que estava encostada na parede e tento enxotar a fera: - Xô!!! Sai daqui...Passa!!! Ela ruge e responde com patadas na vassoura.
Vários habitantes observam nossa situação, mas ninguém toma providência alguma ou demonstra grande preocupação. Será que é assim que exterminam os estranhos que visitam a aldeia???
Mas percebo que as patadas do leopardo são leves, ele não tem intenção de me ferir. Mas o que será que esse felino quer de nós???
De repente ouço um assobio. O leopardo prontamente reconhece o chamado e vai em sua direção. Vejo que quem chamou a fera foi o “menino pneu”, o maior, do dia anterior. Ele o espera com uma tigela cheia de leite de yak na porta de outra casa. O leopardo docemente se aproxima do menino e ganha sua refeição matinal e carinho. Os aldeões que acompanharam a confusão toda dão risada e voltam aos seus afazeres. Entendi!!! A casa que ocupávamos era da família do “menino pneu”. O leopardo, como de costume, veio receber o seu café da manhã, e deu de cara com Maritza. E na verdade, ninguém queria nos aniquilar.
Fiquei meio envergonhado e volto para dentro de casa. Não sem antes notar que as botas de Maritza, que dormiram do lado de fora, por razões óbvias, estavam cheias de folhas.
Olhei para Maritza e disse: - Exagerada!!!
- Desculpe, como eu ia saber??? Respondeu ela.
- Saber o quê???
- Saber que o bicho é manso...Quase fiz xixi nas calças de medo!!!
- Tá tudo bem...Eu teria feito xixi e cocô... Vou deitar mais um pouco. Resmungo e volto para cama. As camas eram peças de madeira maciça onde estendemos nossos sacos de dormir. Eram muito duras e desconfortáveis. Rústicas como todo o resto da casa. Depois da viagem, meu corpo estava todo dolorido, parecia que tinha tomado uma surra.
Ouço a voz de Maritza: - Sacanagem!!! Encheram minhas botas de folhas... Quem será que fez isso???
- Acho que foi o Leopardo, respondo.
De repente, uma luz me vem à cabeça:
- Maritza,...
- Oi???
- ...cheire sua bota!!!
- O quê??? Maritza aparece na porta do quarto segurando as botas.
- Cheire suas botas!!!
- Tá de sacanagem, é???
- É sério!!! Levanto da cama e vou em sua direção. Tomo uma bota de sua mão e aspiro profundamente. Faço uma cara feia e simulo um princípio de desmaio.
- É brincadeira!!! Digo me recompondo.
- Engraçadinho!!!
- Como eu pensei!!!
- O quê???
- Não tem chulé, Maritza!!!
- Não???
- Essas folhas têm uma mágica muito poderosa!!!! Se não, o leopardo teria fugido do cheiro!!!
- Para com isso!!! Diz Maritza, me acertando um leve tapa no braço.
- Ai!!! Caio na risada e corro pra porta que ficou aberta.
Paro no susto!!! Maritza vem logo atrás e quase tromba em mim.
De pé parada na porta da casa encontro a anciã, matriarca da aldeia.
Envergonhados, parecíamos alunos travessos pegos em flagrante pelo diretor da escola, cada um com uma bota na mão.
A anciã estava de batom, com os longos cabelos brancos escovados. Para não rir, desvio meu olhar para baixo e vejo que ela usa as sandálias dois números acima do tamanho de seu pé. Maritza me dá um cutucão entre as costelas. Tampo a boca, segurando a risada e disfarço com uma tossida.
A matriarca transforma a seriedade em um gentil sorriso e oferece um cesto cheio de folhas para Maritza. Folhas iguais as das botas!!! Era uma retribuição pelos presentes do dia anterior.
Maritza aceita o presente com uma reverência e, sem saber o que dizer, balbucia um “Thank you very much”. Como Pradip não tinha autorização de ficar no vilarejo, descera para uma das aldeias mais próximas e voltaria em uma semana. Não tínhamos guia e não sabíamos Parbatya, o dialeto falado na aldeia.
Para nossa surpresa, Tamushyo, esse era o nome da senhora, responde com clareza:”You’re welcome.” E se vai.
Ficamos boquiabertos. Ouvimos outras risadas pelo vilarejo.
- Maritza, acho que seu chulé ficou famoso na aldeia toda!!!
- É, pior que é verdade....
O susto foi mútuo. O leopardo está numa posição defensiva, não de ataque. Pego uma vassoura de palha que estava encostada na parede e tento enxotar a fera: - Xô!!! Sai daqui...Passa!!! Ela ruge e responde com patadas na vassoura.
Vários habitantes observam nossa situação, mas ninguém toma providência alguma ou demonstra grande preocupação. Será que é assim que exterminam os estranhos que visitam a aldeia???
Mas percebo que as patadas do leopardo são leves, ele não tem intenção de me ferir. Mas o que será que esse felino quer de nós???
De repente ouço um assobio. O leopardo prontamente reconhece o chamado e vai em sua direção. Vejo que quem chamou a fera foi o “menino pneu”, o maior, do dia anterior. Ele o espera com uma tigela cheia de leite de yak na porta de outra casa. O leopardo docemente se aproxima do menino e ganha sua refeição matinal e carinho. Os aldeões que acompanharam a confusão toda dão risada e voltam aos seus afazeres. Entendi!!! A casa que ocupávamos era da família do “menino pneu”. O leopardo, como de costume, veio receber o seu café da manhã, e deu de cara com Maritza. E na verdade, ninguém queria nos aniquilar.
Fiquei meio envergonhado e volto para dentro de casa. Não sem antes notar que as botas de Maritza, que dormiram do lado de fora, por razões óbvias, estavam cheias de folhas.
Olhei para Maritza e disse: - Exagerada!!!
- Desculpe, como eu ia saber??? Respondeu ela.
- Saber o quê???
- Saber que o bicho é manso...Quase fiz xixi nas calças de medo!!!
- Tá tudo bem...Eu teria feito xixi e cocô... Vou deitar mais um pouco. Resmungo e volto para cama. As camas eram peças de madeira maciça onde estendemos nossos sacos de dormir. Eram muito duras e desconfortáveis. Rústicas como todo o resto da casa. Depois da viagem, meu corpo estava todo dolorido, parecia que tinha tomado uma surra.
Ouço a voz de Maritza: - Sacanagem!!! Encheram minhas botas de folhas... Quem será que fez isso???
- Acho que foi o Leopardo, respondo.
De repente, uma luz me vem à cabeça:
- Maritza,...
- Oi???
- ...cheire sua bota!!!
- O quê??? Maritza aparece na porta do quarto segurando as botas.
- Cheire suas botas!!!
- Tá de sacanagem, é???
- É sério!!! Levanto da cama e vou em sua direção. Tomo uma bota de sua mão e aspiro profundamente. Faço uma cara feia e simulo um princípio de desmaio.
- É brincadeira!!! Digo me recompondo.
- Engraçadinho!!!
- Como eu pensei!!!
- O quê???
- Não tem chulé, Maritza!!!
- Não???
- Essas folhas têm uma mágica muito poderosa!!!! Se não, o leopardo teria fugido do cheiro!!!
- Para com isso!!! Diz Maritza, me acertando um leve tapa no braço.
- Ai!!! Caio na risada e corro pra porta que ficou aberta.
Paro no susto!!! Maritza vem logo atrás e quase tromba em mim.
De pé parada na porta da casa encontro a anciã, matriarca da aldeia.
Envergonhados, parecíamos alunos travessos pegos em flagrante pelo diretor da escola, cada um com uma bota na mão.
A anciã estava de batom, com os longos cabelos brancos escovados. Para não rir, desvio meu olhar para baixo e vejo que ela usa as sandálias dois números acima do tamanho de seu pé. Maritza me dá um cutucão entre as costelas. Tampo a boca, segurando a risada e disfarço com uma tossida.
A matriarca transforma a seriedade em um gentil sorriso e oferece um cesto cheio de folhas para Maritza. Folhas iguais as das botas!!! Era uma retribuição pelos presentes do dia anterior.
Maritza aceita o presente com uma reverência e, sem saber o que dizer, balbucia um “Thank you very much”. Como Pradip não tinha autorização de ficar no vilarejo, descera para uma das aldeias mais próximas e voltaria em uma semana. Não tínhamos guia e não sabíamos Parbatya, o dialeto falado na aldeia.
Para nossa surpresa, Tamushyo, esse era o nome da senhora, responde com clareza:”You’re welcome.” E se vai.
Ficamos boquiabertos. Ouvimos outras risadas pelo vilarejo.
- Maritza, acho que seu chulé ficou famoso na aldeia toda!!!
- É, pior que é verdade....
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