sábado, 27 de fevereiro de 2010

Conversa de Bar

Após entregar uma matéria encomendada pela revista Cultura Paulistana, sobre as caixas de som, espalhadas pelo Centro de São Paulo, tocando música erudita, e sua influência no cotidiano dos paulistanos, paro no tradicional Bar Brahma, para tomar aquele delicioso chopp. Fui só, como uma comemoração pessoal, mais pra relaxar. Gostei muito daquilo que escrevi e partes do texto voltavam a minha mente, em “looping”. Teci um panorama, tipo Louis Armstrong, cantando “What a Wonderfull World”, com cenas da guerra do Vietnam. A pressa diária e os abandonados do centro de São Paulo, embalados pela Primavera de Vivaldi. A dialética de um universo em desequilíbrio, a Sinfonia da Miséria. Senti, que apesar dos anos passados, continuava tendo “tesão” pelo meu trabalho, não me conformava com o olhar acomodado da mídia, e isso, para mim, era motivo de grande satisfação. Muitas vezes, a satisfação pessoal, é o melhor prêmio que podemos nos conceder.
Um casal de trinta e poucos anos, da mesa ao lado, levemente alcoolizados, ele mais que ela, falava alto. No começo me incomodei, queria sossego, mas acabo não conseguindo deixar de ouvir a conversa deles:
- Ah!!! O que você acha que chama mais atenção em você??? Pergunta ele, achando óbvia a resposta.
- A inteligência, o cérebro, é claro!!! Responde ela com firmeza.
“Hum, que papo de bêbado...”, pensei.
E o papo continuava:
- Você tá louca!!! Olha o tamanho do seu cérebro e olha o tamanho da sua bunda!!! Deus fez assim!!! Deus quis assim!!! Pra quando a mulher passar, os homens desejarem aquela bunda. Desejarem copular com a dona daquela bunda. É assim na natureza!!!
- Na natureza, entre os irracionais!!! Fala, já mostrando certo constrangimento, pela atenção pública gerada.
- O que seria muito mais fácil, né??? Não precisava vir pro bar, gastar dinheiro, beber muita cerveja, jogar conversa fora e só trepar depois, já sem controle total do que a gente está fazendo... Assim prejudica o padrão de qualidade!!! Hahahahaha!!! Só ele ri, achando graça de sua própria piada.
- Seu ridículo!!! Até parece que eu vou pra cama com você. Não vou com ninguém no primeiro encontro, muito menos com alguém como você!!! Seu podre!!! Responde asperamente, já irritada.
- Eu podre??? Sexo... desejo, é o instinto mais primitivo. Se fosse o cérebro o que importasse, vocês, mulheres andariam com o diploma pendurado atrás da bunda, que nem chapa de carro, e não com essas calças tão apertadas, só pra mostrar as formas a-bun-dan-tes. Ele gesticulava moldando as formas femininas com as mãos, acompanhando sua fala.
- A minha não é tão apertada...
- É sim, que eu olhei quando você foi ao banheiro. E olha que é um belo “derriére” esse emoldurado por sua calça “apertadíssima”.
- Descarado!!! Parece apertada porque tem lycra, mas não é!!! Disse desconcertada, com as mãos espalmadas sobre a bunda, mesmo sentada, tentando disfarçar o que o que já fora exposto. Ela sentia, com razão, o olhar curioso de todos ali, pairando sobre seus glúteos.
Ele ri alto, de forma irônica e bebe seu chopp, balançando a cabeça de forma negativa.
Eu, confesso, que como quase todo o bar, estava completamente absorto pela conversa alheia e nem lembrava mais de minha matéria. "Que maluco machista!!!” Pensei. ”Um porco nojento!!! E no primeiro encontro ainda...”
- E outra coisa...disse ela...Você me conheceu conversando pela net. Logo, me convidou pra sair pelas nossas conversas, pela minha inteligência!!! Isso com seus olhos já soltando faíscas.
- É verdade, ele responde, mas só depois de ver suas fotos de biquíni no Instagram!!! E dá uma sonora gargalhada.
Ela explode!!! Levanta derrubando a cadeira e se exalta:
- É por causa dessa desvalorização do cérebro, da inteligência das mulheres e de animais irracionais que nem você que a gente só vê desgraça acontecendo, feminicídio, estupro, gente sem controle, que acha que mulher é só um pedaço de carne... E quer saber, eu vou pra minha casa!!! E não vou dar pra você o prazer da companhia de meu cérebro e muito menos de minha bunda!!! Tchau, seu machista de merda!!!
Silêncio sepulcral no bar!!! Quase devolvo o chopp na caneca!!! Senti culpa, mas não pude deixar de observar seu sacolejar, enquanto ela saía raivosamente, estalando o salto alto de suas botas contra o piso de madeira. Eu e pelo menos toda a ala masculina do salão, inclusive o garçom, que balançava a cabeça, com os olhos arregalados.
Ele, o abandonado sem noção, continuou rindo, tomou o último gole de seu chopp, arrotou, e gritou:
- Garçom, traz mais um chopp, que o cérebro invejoso foi embora e levou aquela bunda maravilhosa com ele!!! Quem não tem pecado que atire a primeira pedra!!!

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Dona Shaci

Vitima de um assalto, Mukitinho da Bahia, pouco conhecido como Paulo dos Santos, maquinista de cinema*, famoso por seu jeito peculiar de pronunciar as palavras, vai com sua esposa, à 15ª. delegacia, no bairro de Sussuarana, registrar a ocorrência.
Na sala, estão presentes a delegada, um escrivão ao computador, um policial em pé na porta, mantida aberta por causa do grande calor, apesar do antigo e barulhento ventilador de teto ligado no máximo, além do próprio Mukito e sua mulher.
Como em todo evento de alto teor burocrático, fazem perguntas à vítima que em nada se relacionam ou ajudam na elucidação do caso.
Delegada: - Seu Paulo, o nome de sua mãe???
- Shaci, Shaci dos Shantosh, responde Mukito.
- Como??? Pergunta a delegada, fazendo um sinal para o escrivão não digitar.
- É Shaci!!! Repete Mukitinho.
- Saci??? Pergunta a delegada, sem conter um leve riso.
Mukitinho irritado diz: - Não, não é Sachi!!! É Shaci!!!
A delegada e todos na sala, menos o próprio Mukito e sua senhora, claro, explodem em uma sonora gargalhada. Alguns curiosos vêm à porta para saber o que está acontecendo.
Sem conter sua raiva crescente, Mukitinho, tira o documento que restou na carteira vazia e quase esfrega na cara da delegada: - Óia aí, ó!!!!
A delegada, vermelha de tanto rir, lê em voz alta: - Jaci dos Santos!!! E a gargalhada volta a soar no recinto. Sua esposa, que até esse momento se mantivera calada, não se contém e cai na risada também. Mukitinho aperta a mão de sua mulher com força e a fuzila com o olhar.
- Calma Seu Paulo!!! Diz a delegada, que se volta ao escrivão e dita: - J-A-C-I dos Santos(sh), com um tom de desdém
Mukito, contrariado, resmunga consigo mesmo: - Shi esha aí não foshi deiegada e muié, merechia é unsh shopaposh!!!

*Maquinista: é um tipo de faz tudo no cinema, executa tarefas e resolve problemas com cérebro e músculos.
Baseado em fato real. Essa crônica é uma homenagem a Mukitinho e seu bom humor.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

"Voa Canarinho, voa..."

Como eu era um bebê em 1970, posso dizer, com certeza, que das seleções que vi jogar, ao vivo, na minha vida, nenhuma se compara a seleção brasileira de 1982, dirigida pelo mestre Telê Santana.
Valdir Peres, Leandro, Oscar, Luizinho e Júnior. Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico, Serginho e Eder. Que timaço!!! Mesmo tendo perdido Careca, nosso melhor centroavante, por contusão, às vésperas da competição, oito entre dez estrangeiros e nove entre dez brasileiros, porque sempre tem um do contra, consideravam essa seleção a grande favorita para vencer a Copa do Mundo da Espanha.
Aos doze anos, meu coração já tinha optado por ser corinthiano, mas ainda não tinha tido coragem suficiente para contar isso a meu pai, palmeirense “roxo”. Ou seria melhor dizer palmeirense verde??? O Corinthians tinha sido campeão paulista, naquele ano, e iniciara uma co-gestão entre atletas e dirigentes, que viria a ser conhecida como a “Democracia Corinthiana”.
Aos doze anos, após duas copas frustrantes, já não acreditava muito nessa estória de “Amuleto da Sorte”.
Também com doze anos conheci Marina, vinda de Salvador com a família. O pai, um alto funcionário do Banco Econômico, tinha sido transferido para São Paulo.
Marina veio estudar na mesma escola, e, por sorte do destino, na mesma classe que eu. A classe dos nomes começados por J, K, L e M. Marina usava os cabelos, longos e lisos, sempre presos. Sua pele era de um moreno aveludado, tinha grandes olhos escuros, que pareciam olhar para dentro da gente, e um lindo sorriso aberto, cheio de dentes.
Um dia sentamos em carteiras vizinhas, e meu braço roçou levemente no seu, tive uma sensação nova e deliciosa, que não queria que acabasse mais, com direito a um friozinho que subiu pela espinha. Tinha sido nosso primeiro contato físico.
Aos doze anos, meu coração já tinha optado por se apaixonar por Marina, mas eu ainda não tinha tido coragem de contar isso para ela.
Mas voltando à Copa, no dia 14 de junho, o Brasil teve uma estréia difícil contra a Rússia, do fantástico goleiro Rinat Dasayev, herdeiro de Lev Yashin, o Aranha Negra. E por falar em goleiros, o nosso, quase sempre seguro, Waldir Peres engoliu um “frango” bisonho, em um chute despretensioso, desferido por Bal da intermediária, aos 34 minutos do primeiro tempo. O nosso habilidoso quarto zagueiro Luisinho, cometeu dois pênaltis, que para a nossa sorte, o árbitro espanhol Castilho, preferiu ignorar. Nossas jogadas de ataque, quando passavam pelo sólido bloco defensivo russo, morriam com facilidade, nas mãos de Dasayev. Era quase inacreditável!!! Seria o nervosismo da estréia??? Parecia que estávamos perdidos “num mato, sem cachorro”!!!
Fim do primeiro tempo. Confesso que ali, temi pelo pior!!! Seria muito azar!!!
- "Bora" filhão, tem que acreditar!!! Acredita na sua sorte!!! Incentivou meu pai, que continuava acreditando na estória do Amuleto.
Minha mãe suspirou e em silêncio, me abraçou e beijou minha cabeça.
Estávamos sentados em um grande sofá marrom de couro. Meu pai na ponta esquerda, minha mãe na meia-direita e eu no meio de campo. Nosso posicionamento habitual em dias de jogo.
Começa o segundo tempo, o Brasil tenta reagir, mas o jogo continua “amarrado”.
A grande vantagem de nossa seleção é que contava com craques fantásticos!!! E quando o coletivo não funcionava, eles podiam, em um lampejo genial, mudar os rumos da partida.
Dr. Sócrates, o Magrão, representante corinthiano na seleção, tinha inclusive parado de fumar para melhorar seu desempenho atlético. Tanta dedicação não poderia ter sido em vão. E, finalmente, aos 30 minutos do segundo tempo(!!!), ele, Sócrates, passa por dois marcadores russos e manda um “canudo” no ângulo superior direito da meta de Dasayev, que ainda quase alcança a bola. É gol do Brasil!!!!! Gooooooolll!!! Pelo menos “achamos o cachorro”.
O Brasil recobrou sua confiança e partiu para o ataque, mas a partida já estava perto de seu final.
Aos 43 minutos, Paulo Isidoro, que tinha entrado no segundo tempo, cruza a bola para Falcão, que como se tivesse uma visão 360 graus, deixa a bola passar, fazendo um “corta luz” para Eder Aleixo (o “queridinho” do público feminino da época), levantar a pelota e soltar a “bomba”. Dasayev não teve tempo de reagir!!! Gol do Brasil!!!! Golaço!!! O gol da virada!!!! “Saímos do mato”!!!
Castilho encerra a partida, vitória brasileira!!!!
- Falei, filho!!! Acredite, você dá sorte!!! Gritava eufórico, meu pai. Minha mãe sorria e me enchia de beijos.
Nas partidas seguintes da primeira fase, o Brasil jogou como o grande time predestinado a ser campeão. Brasil 4X1 Escócia e Brasil 4X0 Nova Zelândia. Com uma sucessão de gols belíssimos!!!
Na primeira partida da segunda fase, reencontramos a Argentina, nós, ainda engasgados pela ”compra” dos peruanos em 78. O Brasil impôs o seu futebol com uma vitória maiúscula: 3X1, gols de Zico, Serginho e Júnior, com Diaz marcando o gol de honra dos “hermanos”.
-“Hermanos” porra nenhuma, que eu não tenho irmão ladrão!!! Toma, Argentina!!! Toma!!! Sem roubalheira vocês não são nada!!! Esbravejou meu pai, lembrando o suspeito título mundial Argentino de 78.
Foi uma vitória para “lavar a alma”, com direito a “sambadinha” de Júnior, nosso lateral esquerdo, comemorando o terceiro gol.
Meu pai, Rafael Mascarenhas Benedetti, cresceu na Mooca, era filho de pai italiano. E passional como todo italiano. Tudo, pra ele, era melhor se fosse da Itália. O país, a comida, as roupas, o Palmeiras, Sophia Loren... Enfim, tudo!!! Tudo menos a seleção!!! Em matéria de seleção de futebol, ele era torcedor fanático do Brasil!!! Felizmente, tudo parecia se encaminhar para o Tetra brasileiro.
No dia 5 de julho, em Barcelona, no estádio Sarriá, o Brasil enfrentava a Itália, que apesar de sua vitória de 2X1 contra a Argentina, se classificou na primeira fase com três medíocres empates. O último, contra Camarões, graças a um escorregão do goleiro N’Kono. Parecia que ia ser um jogo de gato e rato. O Brasil era o gato, lógico!!! E o Brasil só precisava de um empate para passar à semifinal.
Tem gente que acredita em fatalidade, mas como iríamos imaginar, que Paolo Rossi, “Il Bambino D’Oro” em sua juventude - que andou suspenso por participar da manipulação de resultados no Campeonato Italiano, que passara em branco todas as partidas da Copa, até então, ressuscitaria naquele jogo???
Para surpresa geral, aos cinco minutos de jogo, aproveitando a distração da nossa defesa, Paolo Rossi de cabeça: Itália 1X0 Brasil!!! O alívio, veio logo a seguir, Sócrates empata, em passe de Zico, batendo no contrapé do goleiro Dino Zoff!!! Parecia que, apesar do susto inicial, tudo voltava à normalidade. Mas o que é normal em uma partida de futebol??? Aos 25, ainda do primeiro tempo, incompreensivelmente, Toninho Cerezo, que tinha sido palhaço de circo em sua adolescência, resolve fazer graça e dá um passe magistral para Paolo Rossi “fuzilar“ Waldir Perez: Itália 2X1!!! Serginho perde gol feito!!! Aliás, talvez o maior erro de Telê na Copa tenha sido domesticar demais o “selvagem” Serginho, pois o seu rendimento na seleção nunca foi o mesmo demonstrado em seu clube, o São Paulo.
Fim do primeiro tempo. Mas todos ainda acreditavam na virada brasileira.
Os italianos voltam para o segundo tempo se defendendo como podem, até que, aos 23 minutos, o oitavo “Rei de Roma”, Falcão, em um chute forte cruzado, da entrada da área, empata a partida.
– Gooooooool!!! Estamos na semifinal!!! Vamos ser Tetra!!! Comemorou, precipitadamente, meu pai.
Sejamos justos, Cerezo colaborou no lance do gol brasileiro também, levando a marcação que os italianos faziam sobre Falcão, abrindo espaço para ele marcar.
Mas sete minutos depois, após escanteio inexistente para a Itália, e bate e rebate na entrada da área brasileira, a bola sobra para ele, Paolo Rossi, que estaria impedido, se Junior não estivesse parado sobre a linha do gol. Itália 3X2 Brasil!!!
O Brasil se lança ao ataque. A Itália se defende, desesperadamente.
Gentile faz falta em Zico e rasga sua camisa. No lance seguinte, Zico, de camisa 10 rasgada, caminha com a bola na direção de Gentile que recua acovardado. Quando finalmente Gentile reúne coragem e dá o bote, toma um “corte” de Zico e cai sentado de bunda no chão!!! Lance inesquecível!!!
O Brasil não desiste, até que aos 43 minutos do segundo tempo, a cabeçada certeira de Oscar, que já tinha ultrapassado metade da linha do gol italiano, é milagrosamente defendida por Zoff!!!
O Juiz apita o fim da partida... É o fim de um sonho!!!
Não há palavras para descrever a decepção e incredulidade do povo brasileiro naquele momento. Meu pai saiu para fumar na varanda com os olhos marejados, minha mãe foi para a cozinha chorar. Eu permaneço só, naquele imenso sofá, como se minha vida tivesse perdido o rumo. Pensei em Marina, mas naquele momento nem a presença dela resolveria.
Estava provado, minha sorte já era!!! Tudo tinha sido uma mera coincidência ou, se não, uma fantasia criada por meu pai.
Na sala de imprensa, na entrevista pós-partida, jornalistas do mundo inteiro aplaudiram de pé Telê e a seleção do Brasil. A melhor seleção da Copa se despedia do mundial.
A Itália se sagrou campeã, derrotando a Pólônia na semi, e a Alemanha na final. Com Paolo Rossi marcando gols em ambas as partidas e se tornando o artilheiro da Copa. O mundo tinha agora duas seleções Tri-Campeãs.
No dia seguinte da derrota brasileira, fui à escola, estavamos em uma semana de reposição antes das férias, e tudo que eu pensava querer, pra me sentir melhor, era sentar ao lado de Marina. Ficar perto de Marina. Mas para minha surpresa e desgosto, ao chegar, os lugares já estavam ocupados. De um lado Marcela, sua melhor amiga e do outro lado, o lado que deveria ser meu, Lucci (???!!!). O que Lucci, oficialmente João Lucas, aquele “filhinho de papai”, estava fazendo ali???
Sentei no fundão da sala e morri de ciúmes quando presenciei uma animada conversa entre Marina, Lucci e Marcela.
Chegando em casa, não tive fome, quase não almocei.
Fui ao banheiro levando O Jornal da Tarde, cuja a capa, emocionante, era a de um menino chorando na “Tragédia de Sarriá”. Comecei a ler a matérias sobre o jogo, e, de repente, a página ficou manchada com grandes gotas, gotas de lágrimas. Sentado no vaso, chorei muito!!! Chorei tudo que estava reprimido!!! Chorei pelo Brasil, chorei por Marina!!! E pensei: ”Eu sou um grande azarado, isso sim!!!”

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Fausto e Otaviano

“... E assim sendo, podemos deduzir que essas obras de Manon Briscout, são de menor importância em sua carreira ou frutos de uma fase de notada ausência de inspiração.
Acreditamos que tão grandiosa comemoração pela presença dessas obras em Terras Brasilianas, seja um equívoco que atesta o total desconhecimento do potencial desse artista franco-belga e do melhor de sua obra...”
A coluna dos críticos Fausto e Otaviano não deixava pedra sobre pedra, como o habitual. Denegriam as obras do artista e evidenciavam nossa falta de apuro estético. Nosso papel era sempre o de pobres ignorantes, comprando gato por lebre.
Disfarçavam suas maledicências com uma retórica pomposa. Na verdade, parecia mais uma coluna de fofocas.
Enigmaticamente, alguns artistas passavam de “vilões” a “heróis”, ou vice e versa, em um passe de mágica, sem mais explicações. Será que a dupla era de alguma forma "agraciada" por essa inexplicável mudança de opinião???
Mas as críticas criaram um efeito dialético. Quanto pior a crítica, mais aguçava a curiosidade de seus leitores, que não eram poucos, e mais gente comparecia aos eventos, como as críticas da Folha de São Paulo em décadas passadas.
Assim, apesar de não serem queridos, eram quase sempre bem recebidos.
Era comum encontrá-los em teatros, ballet, restaurantes, recitais e concertos de música erudita, feiras de antiguidades e, claro, exposições de arte. Andavam sempre juntos, aliás, gostavam muito dos “holofotes”.
Não sei se sempre escreviam em parceria ou se, muitas vezes, era um vôo solitário, mas a coluna era sempre assinada pela dupla, melhor dizendo, pelo casal. Saiu até uma matéria na revista “Primal Faces”, quando se casaram, em primeiro de janeiro de 2007, no vilarejo de Campillo de Ramos, província de Guadalajara, a 90 minutos de carro de Madri, Espanha. Uma cidade casamenteira, considerada o paraíso do casamento gay.
Mas a parceria “artística” já existia desde 2004.
Conheci a dupla na mostra inaugural de uma exposição de artefatos da China Imperial, somente para convidados, em agosto de 2007. Na época, ainda estava casado, mas como não conseguimos babá, Ligia a contragosto ficou com as crianças. Fui só, sem nenhum amigo, para não aumentar sua irritação.
Inácio Villalba, curador da exposição, nos apresentou.
- Muito prazer!!! A-do-ra-mos suas críticas e artigos!!! Você é uma pessoa que merece nosso respeito e realmente enobrece a música!!! “Declamou” Fausto, de forma afetada. Otaviano limitou-se a concordar com a cabeça.
- Obrigado. Respondi, com uma sobriedade proposital, não acreditando em uma palavra do que dizia aquela “hiena”.
- E está gostando da exposição? Perguntou.
- Acabei de chegar. Na verdade, estava encantado com as peças expostas.
- Pois está fan-tás-ti-ca!!! Esses chineses vão dominar o mundo!!!
Apesar da sua tentativa de agradar, senti um extremo desconforto. Tudo soava falso naquela conversa.
- Com licença. Retirei-me, aproveitando a saída de Inácio.
- Arrivederci!!! Disse Fausto, dando ”tchauzinho” com a mão.
- Meio esnobe, não??? Eu achava que ele era mais alto, cochichou Fausto.
Notei que comentavam mais sobre os convidados do que sobre as obras de arte.
Os dois tinham aparências antagônicas. Fausto era pequeno, quase careca, gordo e elétrico. Usava roupas de cores berrantes e gosto duvidoso. Virava uma taça de espumante e logo saia na busca de outra.
Otaviano tinha a pele de um branco quase transparente, magro, muito magro, e alto. Um tipo longilíneo e esquizóide. Usando grandes óculos de aro preto e grosso, com um rosto pequeno de queixo quadrado. Blazer preto, camisa branca, calça preta e tênis All star bordô, quase roxo. Roxo???!!! Segurava com delicadeza sua taça de champagne, que consumia lentamente. Os dois tinham entre trinta e cinco e quarenta anos, Fausto era o mais velho, sem dúvida.
Fausto falava sem parar e se esticava todo para fofocar no ouvido de Otaviano, que concordava com a cabeça, sem pronunciar palavra alguma. Quando achava muita graça, dava uma risada fungada, de curta duração.
“Quanta maldade nesses coraçõezinhos”, pensei e me afastei.
Meia hora depois, ao me desviar de uma linda adolescente apressada, esbarrei casualmente no garçom que servia champagne a Fausto.
- Oh!!!Mil perdões!!! Tentei me desculpar.
- Otaviano!!! Otaviano!!! Me deram um banho!!! Minha roupa nova!!!Venha me ajudar!!! Gritava Fausto, me “fuzilando” com os olhos.
Acho que naquele momento acabara de entrar para a sua lista negra.
Dias depois, leio em Fausto e Otaviano:
“...mesmo sabendo que não é do nosso “metier” a crítica musical, muito nos surpreendeu, de forma negativa, o concerto do Fat Hat Trio, em sua performance burocrática e pouco inspirada, no Memorial da América Latina.
Música linear e letárgica, que sem dúvida, nada acrescentou `a sensação de estarmos ouvindo um interminável cd, World Music, de relaxamento.
Uma real decepção, é “vero”, para um concerto tão incisivamente recomendado e classificado como imperdível por nosso colega....”.
Era a vingança!!!

sábado, 20 de fevereiro de 2010

2009

Não tenho boas lembranças de 2009. Foi um ano muito conturbado que demorou demais pra passar.
Gritos constantes, choro de filhas e o silêncio que às vezes durava dias. Aliás, foi uma relação que começamos como estranhos interessados e acabamos como estranhos que se odeiam.
Quem era aquela mulher??? Eu me perguntava. Como tive coragem de casar com ela??? Acho que o questionamento era similar de ambas as partes.
O desgaste já se fazia notar e cresceu muito quando tive um "affair" com Larissa, jornalista, ex-namorada da época de faculdade, que reencontrei na cobertura do Festival de Música Flamenca em Madri, em 2007, e que durou por quase todo o ano seguinte.
Já tinha terminado, mas fui flagrado!!! Mensagens de texto, algumas eróticas, que salvei no celular. Um apaixonado romântico e...idiota!!!
Culpa!!! Me sentia um sacana com Lígia, minha ex, mas principalmente por ter feito do lar de minhas filhas um inferno.
Isso tudo culminou com uma separação judicial, muito desgastante e nada razoável, no dia seis de agosto de 2009, depois de nove anos casado. Ligia, não queria ser razoável, aliás nenhuma mulher magoada quer.
Beijei minhas filhas enquanto dormiam e disfarcei o choro.
Sai de casa sorrateiramente, com minhas roupas, minha escova de dentes, dois livros, meus cds, meu violão, um Martin D15 1987, e meu carro, um Polo sedan 2005. O carro era de segunda mão, o violão, não.
Passei um mês em um flat de Higienópolis, antes de decidir o que fazer. E mais dois meses depois que decidi, e ainda mudei de idéia milhares de vezes.
Um vazio anestesiante, que conferia total falta de sentido as coisas, tomara conta de mim. Saía muito pouco e não atendia o telefone. Só falava com minhas filhas uma vez por dia, menos aos domingos, que não suportava falar.
Voltei a fumar após sete anos, seis meses e tres dias. Tinha largado o cigarro desde o nascimento de Michelle, minha primeira filha.
Passava o dia no quarto, ouvindo música alta em minha única aquisição, um cd player, assistia TV, tocava violão e fumava muito. Às vezes, tudo ao mesmo tempo.
Vivia nu e me cobria com o lençol, quando a camareira entrava. Ela era morena, baixinha, um rosto até bonito, com os dentes levemente tortos e um baita bundão, mas me ignorava completamente. Isso a tornava interessante. Limpava o quarto como se não houvesse ninguém ali. Uma vez, peidei alto, só para ver a sua reação, abriu a cortina e escancarou a janela, mas não disse uma palavra, nem mudou a sua expressão.
Permanecia horas com o violão no colo sem conseguir tocar uma música inteira sequer. Quando a quarta corda (D) arrebentou, passei por várias lojas de música, no Centro, examinei marcas novas e antigas de encordamentos, perguntei o preço de todas elas, mas não comprei nada. Não pelo preço, mas pela simples falta de ânimo, de decisão.
Só andava a pé. O carro nunca saía da garagem do flat.
Fabrício Quintana, editor chefe da revista Cultura Paulistana, meu melhor amigo e padrinho de minha filha mais velha, entre outras coisas, descobriu minha “caverna”, apareceu uma noite e me arrastou para jantar. Fomos no seu carro, que parecia um foguete espacial comparado ao meu.
- Cara, você tá um lixo!!! Assim não dá!!! Já te indiquei para duas matérias, até para a apresentação da Filarmônica de Israel com o Mehta, mas ninguém te achou!!! Desembestou a falar:
- Não dá pra parar de viver, não. Eu mesmo já te liguei milhare...
- Como me encontrou??? Perguntei, interrompendo.
- O telefone de sua mulher tem bi..
- Ex-mulher!!! E não é dela, fui eu que comprei!!! Interrompi de novo.
- É, o telefone que Lígia usa tem bina e você liga pra suas filhas todos os dias...
- Todos os dias, menos domingo!!! Na verdade, eu sentia muita falta de nossos passeios aos domingos.
- Para de me interromper, porra!!! É, eu liguei no número que aparece no bina e deu no flat.
Muito esperto, pensei. Estava agoniado, não queria companhia. Tive vontade de descer no primeiro semáforo.
- Ahah!!! Nem pense nisso, disse lendo meus pensamentos. E apertou a trava geral das portas do carro.
- Põe o cinto, vai, pediu.
Fomos ao restaurante Jardim de Napoli, pedi um spaghetti com funghi a la crema, que orientalizado, veio com shiitake e Fabrício, um polpettone.
Dei duas ou três garfadas e parei, não sentia fome.
- Já te disse que você está um lixo??? Parece doente!
- Obrigado, é a terceira vez que você me diz isso, respondi. Uma no quarto, outra no carro, aqui...
- Ah é mesmo, concordou. Abaixou o tom e perguntou:
-Você tá fodendo pelo menos???
Fiz que não ouvi e acendi um cigarro. O garçom me pediu para apagar, aquela era a área de não fumantes.
Fabrício adorava vinho. Enchia a boca com um longo gole, que sorvia lentamente, dando a impressão que o vinho derretia, murchando suas bochechas.
- Sabe, domingo de manhã, pego você e vamos olhar uns apartamentos para alugar.
É importante que não seja muito longe de sua ex-casa, pras meninas poderem freqüentar quando quiserem.
- Quem disse? Perguntei.
- Quem disse o quê? Retrucou.
- Quem disse que eu quero???
- Eu disse, e não vou discutir. Se você soubesse o que é bom pra você não estaria esse lixo!!!.
- É a quarta vez... Eu gosto de ser um lixo, desdenhei irritado.
- Gosta porra nenhuma!!! Tá querendo ser coitadinho??? Perguntou exaltado. Parece menino teimoso!!! Você sempre foi vaidoso. Só usa roupa de marca!!! Ninguém sorriu pra você hoje, nem aqui, nesse restaurante que você sempre freqüentou!!! E abocanhou o último pedaço de seu polpettone
Era verdade... Fabrício era um grande amigo, mesmo contra a minha vontade.
- E tem mais uma coisa...Segunda, dia sete, sete de dezembro, quero você lá na revista para tirar as férias do Romeu, disse enchendo a minha taça de vinho tinto.
- Do Romeu??? Tá louco??? O Romeu fala de urbanismo, da arquitetura da cidade, eu só sei o que é barroco e moderno, e olhe lá. Não estou interessado... Só quando ouvi o dia sete de dezembro é que me dei conta que já estávamos quase no final de 2009!!!
- Foda-se!!! Você se vira...Um brinde ao recomeço!!! Ele ergueu a taça.
Brindei, mas não pronunciei mais palavra alguma. Nem no restaurante, nem no caminho de volta ao flat.
Na despedida ele me abraçou forte e beijou minha bochecha.
- Faz a barba, seu viado!!! Disse, arrancando o carro.
Domingo, não saí para procurar o apartamento com Fabrício. Lígia finalmente cedeu e fui passear com as minhas filhas.
Mas, na segunda, apareci no emprego. E aquele emprego de um mês acabou durando dois anos, quase três. Claro, que não falando só de arquitetura. Foi uma das minhas melhores fases profissionais, sem dúvida.
Foi muito bom pra reconstrução de meu ego e a reorganização de minha vida.
Parei de fumar.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Ex-plicação*

Em épocas de solteiro, viajava muito para a cidade de São Simão, perto de Ribeirão Preto, no Nordeste do estado de São Paulo, a 300 quilômetros da capital.
Cidade charmosa, bucólica, dos Casarões dos Barões de Café e suas ruas de paralelepípedo. Dizem que até Dom Pedro II esteve por lá e se rendeu aos seus encantos.
Por incrível que pareça para uma cidade colonial fundada em 22 de abril de 1865, em tempos de férias e feriados, São Simão abriga um grande número de jovens, moradores ou não. E as lindas jovens eram, sem dúvida, um bom motivo pra visitar a cidade. Mas fiz bons amigos por lá também.
Viajávamos em turma e ficávamos em Bento Quirino, no sítio do Zeppa Tudisco, um amigo ímpar, criativo e engraçado. Uma de nossas diversões era inventar brincadeiras “cult”. Lembro especialmente de uma onde cada um atribuía uma explicação “sui generis” ao significado das palavras começadas por ‘Ex’, sobre coisas que foram e por que deixaram de ser. E, como era uma brincadeira falada, sonora e não escrita, as palavras começadas com ‘Es’ também eram consideradas válidas.
Vou citar aqui algumas “pérolas” para ilustrar:
— Exibir: mostrar com orgulho. Ibir era um menino pequeno e muito tímido, até que, com a maioridade, ele cresceu, tornou-se o maior de toda a sua aldeia, tomou gosto por se “amostrar” e até mudou de nome.
— Excitação: a transmutação de algo antes somente citado, para um “frenesi” constatado.
— Esposo(a): ser que insiste em se tornar, sabendo que está fadado a deixar de ser e a perder sua pose.
— Esquilo: pequeno roedor servido como iguaria nos restaurantes dos índios Navajos americanos que, por sua pequena gramatura, deixou de ser vendido a quilo e passou a ser oferecido por unidade.
— Escola: instituição frequentada por seres que querem deixar de praticar a “cola”; mas, por ironia, onde mais se “cola” é na Escola.
— Estrume: o que antes era 'trume' e virou bosta. 'Trume', sinônimo de 'cremento'.
— Excremento: o que antes era 'cremento' e virou merda. Cremento, sinônimo de 'trume'.
— Escamas: placas alérgicas defensivas surgidas na pele daqueles que trocaram suas camas por superfícies mais ásperas para dormir. “E os peixes, onde dormem???”
— Estratégia: forma planejada de ação. Tratégia, do romano Trategis, era a forma desorganizada como os gauleses gordos e bêbados travavam suas batalhas. E venciam!!! Mas, curiosamente, só funcionava com eles. Mágica???
— Escargots: moluscos gastrópodes herbívoros. Os Cargots, do latim afrancesado carga, eram lesmas muito velozes que, de origem, não carregavam o caracol. Foram designadas pelos Deuses do Olimpo a ajudar outros insetos no transporte de alimentos e provisões. Revoltadas com essa função subserviente, mandaram sua lesma campeã desafiar Mercúrio, o mais veloz dos Deuses, em uma corrida. Como prêmio pela vitória, almejavam a liberdade. Derrotadas, como castigo exemplar, ganharam um enorme e pesado caracol que reduz a sua velocidade em 99,9%. Assim, tornaram-se seres lentos, de fácil captura. Atualmente, em sua velocidade máxima, conseguem percorrer até cinco metros em uma hora. Os Escargots são considerados uma iguaria culinária pelos franceses, mas servem de alimento ao homem desde a pré-história.
— Esfera: forma arredondada abstraída da posição fetal depressiva, adotada pelos grandes campeões, os chamados “feras”, após inesperada sucessão de derrotas.
— Esquimó: povo que migrou de planícies desérticas escaldantes, onde se localizava a cidade de Qui-mó-calô, para regiões mais “frescas”.
— Excalibur: espada com a qual Arthur, rei dos bretões, aniquilava todos aqueles que zombavam de seu pequeno 'calibur' ou calibre, após a traição de Guinevere com Lancelot.
— Exílio: referente à expulsão de Ílio, grande guerreiro, que lutou bravamente para defender Fódera, sua cidade natal, da invasão dos cartagineses. Mas, derrotado e abandonado por Ímio, seu irmão, foi condenado a passar seus últimos anos de vida longe de sua amada cidade e de sua família.
— Exímio: referente à transformação sofrida por Ímio, irmão mais novo de Ílio, que fugiu covardemente durante a invasão de Fódera pelos cartagineses e se refugiou em uma caverna nos arredores da cidade. Lá, conhece um monge chinês cego que concorda em treiná-lo de forma intensa e insana. Milagrosamente, em cerca de uma hora de filme, esse treinamento torna Ímio o maior guerreiro já visto em Fódera!!! No segundo longa-metragem da saga, volta à Fódera para vingar seu irmão.
— Extinto: Aniquilado, eliminado por causas naturais ou não. Referente ao costume medieval de “dar cabo” de um sujeito e, de preferência, de toda a sua família, todos os seus parentes, todos os seus amigos, todos os seus serviçais, todos os seus conhecidos e alguns desconhecidos através da ingestão de vinho tinto envenenado.
— Extraterrestre: é alguém que já esteve… Hummm!!! O que era mesmo um ‘traterrestre’??? Talvez um terrestre “Extra”, um fora de série tão fora de série que parece que veio de outro planeta.
— Esclarecimento (Explicação): É o que nós damos para tornar claro e nos complica ainda mais. Uma forma abreviada de “Claro como pisar em cimento”.
E assim vai... Quer mais??
Quanta bobagem, meu Deus!!!
Saudade de São Simão e de sua gente querida e amiga, principalmente do Zeppa!!! Bons tempos!!!

*Ex-plicação é uma homenagem ao querido amigo Giuseppe Tudisco, o Zeppa, que nos deixou em 2022.