quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Nepal (Capítulo Um)

Cordilheira do Himalaia, ou Morada das Neves, mais de 4000m acima do nível do mar. Na tarde do sexto dia, éramos três a subir lentamente por aquelas trilhas desertas. Pradip, o guia sherpa*, que seguia a pé, Maritza, a fotógrafa, e eu montados nos yaks, que nos carregavam e levavam a nossa bagagem. Respirava com certa dificuldade, o ar rarefeito parecia que não chegava aos pulmões. Sentia cansaço e um pouco de tontura. Minha hérnia de disco lombar incomodava bastante e o cheiro forte dos yaks me enjoava também. Estávamos no Reino do Nepal.
Mas o que eu estava fazendo ali???
Eu explico. Ia sair de férias e pretendia passar um mês sem escrever nada, nem um email se quer. Mas aí recebi um telefonema de Fabrício Quintana, editor chefe da revista Cultura Paulistana, que sempre me considerou um competente “pau pra toda obra”, com uma proposta irrecusável: passagem, todos os custos da viagem pagos e mais US$3.500 dólares. Ele estava fascinado com um email e fotos que recebera de seu amigo francês, Phillip Tresour, sobre um povoado himalaio. Não quis me dar muitos detalhes de seus habitantes misteriosos, simplesmente disse com entusiasmo: “Cara, se pudesse, eu mesmo iria!!!”
Mesmo sendo conhecido como um jornalista ou cronista musical (odeio a denominação crítico, parece alguém destrutivo, que tem prazer em falar mal do trabalho alheio) me julgo bastante versátil para abordar convincentemente vários assuntos (e adoro desafios!!!). Mas esse, em especial, foi o mais inusitado de todos. Pode ser classificado como... hummm...uma grande curiosidade antropológica, ou um apêndice do caminho evolutivo.
O Nepal é o país mais pobre da Ásia, localizado entre a China e a Índia. Pousei em Kathmandu, a capital, situada a 1.300m de altitude, num final de tarde de maio. A cidade fica em um vale do mesmo nome e, por incrível que pareça, o grande problema dela é a poluição ambiental.
Encontrei Maritza no saguão do Hotel Shanker, um antigo palácio transformado em um belíssimo hotel, ela chegou direto de um editorial de moda na Muralha da China. Já tínhamos sido apresentados por Fabrício no Brasil, mas era o nosso primeiro trabalho em conjunto. Fizemos um passeio noturno de taxi pelas ruas estreitas e jantamos no restaurante Barbamahal, provamos o Alu Tama, um prato típico com brotos de bambu temperado com curry. Viemos na Primavera local, com uma temperatura bastante agradável, pelo menos nas baixas altitudes.
No dia seguinte, após subir os nove andares da Torre Dharahara para uma visão panorâmica da cidade e uma rápida visita ao Templo Budista Swayambhunath, conhecido como o templo do macaco pela grande presença de pequenos símios no seu interior e arredores, fomos de taxi bicicleta, estilo "rikisha", até os limites da cidade. Lá, subimos na carroceria de uma antiga caminhonete e viajamos os primeiros 150km em uma estreita estrada de terra de mão dupla, onde passamos por muitos sustos de quase acidentes. Fomos deixados em uma bifurcação da estrada, onde nos esperavam o guia e três carregadores, iniciamos nossa jornada por um caminho ascendente de trilhas de terra batida com um calçamento esparso de pedras de diversos tamanhos. Caminhávamos com a ajuda de “bengalas”, que pareciam tacos de cricket com um apoio lateral para a mão.
Atravessamos algumas pontes muito altas, sobre vale e rios, umas rústicas, outras já mais modernas de metal, suspensas por cabos de aço.
Encontramos muitos turistas estrangeiros subindo e descendo essas trilhas, com carregadores locais, transportando sua bagagem, além de grupos de peregrinos liderados por seus shamans. Passamos por inúmeros vilarejos até chegar a Phakding, situado a 2.610 m de altitude, onde trocamos os carregadores por yaks e pegamos uma trilha alternativa, não utilizada por turistas ou alpinistas que vão ao Everest e ao Parque Nacional de Sagarmatha**. O caminho agora se tornara mais estreito e íngreme. Nossa “missão” devia ser executada com toda a discrição possível.
A beleza da paisagem, com os picos sempre cobertos de neve e os vales verdejantes abaixo, é encantadora e única. Maritza documentava tudo com sua câmera. Fazia belas fotos com um olhar muito particular. Sem dúvida uma mulher interessante. De olhos expressivos e falantes. Os olhos falantes e muitas vezes a boca também.
Quase morri de raiva quando ela me contou que Fabrício aceitou aumentar o cachet dela para US$5.000,00 dólares por causa do equipamento.
Pela disposição e firmeza, via-se que ela praticava exercícios regulares.Tinha um corpo mignon, mas bem provida de formas, escondidas pelo excesso de roupas largas e confortáveis. Algo no jeito como ela falava de Fabrício fazia crer que existia algum envolvimento especial entre eles.
Parávamos de tempos em tempos para descansar, alongar e fazer uma refeição, da qual faziam parte chura, que são bolinhos de arroz batido, carne seca e salgada de yak, chhurpi, o queijo de leite de yak e tomávamos um chá gorduroso e enjoativo de manteiga de yak, um energético local. Comia, com uma certa culpa, sem coragem de encarar os nossos animais de carga. A carne seca vinha de alguns povoados das planícies baixas, não hinduístas ou budistas, que permitem o sacrifício animal. O guia comia sempre pequenas pimentas verdes, muito fortes, dizia que fazia bem para o coração, espantava o frio e ajudava a manter a atividade corporal.
Dormimos as três primeiras noites em pequenos vilarejos, onde o nosso maior luxo foi ter um chalé com banheiro. Provamos o Dal Bhat, que é o arroz com feijão nepalês, só que em vez de feijão usam lentilhas. Grande parte do povo do Nepal come Dal Bhat todos os dias, duas vezes ao dia. A presença de verduras na refeição é constante, a de carne é rara. A plantação local é feita em forma de grandes degraus, platôs escavados nas encostas.
Em nossa quarta noite, a primeira em barracas ao relento, Maritza descalçou sua bota, junto à fogueira. Na hora pensei que um yak havia flatulado e me afastei. Mas logo percebi que aquele cheiro horroroso era o “chulé” do pé de Maritza, que ficara em “conserva” dentro daquela bota o dia todo. Argh!!! Já estava enjoado. Fiquei verde musgo!!! Quase vomitei... O guia olhava para mim e gargalhava. Maritza ficou sem jeito calçou a bota de volta e resmungou disfarçando: “Que animais fedorentos, meu Deus!!!” Não conseguia acreditar que aquela “bomba biológica” tinha vindo do pé de uma mulher tão pequena e atraente.
Às vezes ouvíamos rugidos de Leopardos das Neves, mas o guia dizia que dificilmente eles atacam seres humanos, pelo contrário, sabiamente, eles nos evitam
Queríamos chegar a misteriosa aldeia "Pedra sobre as Nuvens", antes do anoitecer do sexto dia.
Nosso guia, Pradip, entoava ciclicamente um incompreensível mantra, cheio de comas***, mal falava inglês e utilizava mais gestos e mímica do que palavras para se comunicar conosco. Ele tinha sido o guia de Philippe Tresour, e era um dos poucos que conhecia esse caminho.
Já era quase o fim de tarde do dia previsto para a nossa chegada, vendo o nosso cansaço, Pradip sinaliza que estamos perto, quase chegando.
Subimos mais um ou dois quilômetros, já não sabia ao certo, e chegamos a um certo ponto da trilha onde repentinamente as pedras acabam e continua em um chão de terra batida alisada e com marcas que lembravam as de pneus. Pneus??? Será que usam algum tipo de carro nessas alturas??? As marcas eram muito largas para serem de rodas de carroça.
De repente, surge pela trilha algo que vem rolando ladeira abaixo em nossa direção!!! Rolando velozmente como um pneu!!! E logo em seguida vêm mais dois menores!!!
Olhava boquiaberto com o coração disparado. O que era aquilo??? Maritza fotografava sem parar.
- Children!!! Disse o guia.
- What??? Perguntei.
- Children!!! Repetiu, apontando os "pneus".
De repente, chegando a uns cinco metros de nós, frearam, se desenrolaram e num pulo se puseram de pé e baixaram o capuz do casaco.
- São crianças!!! Disse Maritza, sorrindo.
Eu estava extasiado sem palavras.
Ali estavam a nos fitar com suas bochechas rosadas, corpos pequenos e fortes, três crianças. Um garoto de uns doze, treze anos e outros dois, um menino e uma menina, que não passavam de dez. Esse era o nosso primeiro contato com os fantásticos habitantes daquela aldeia, que apelidei mais tarde de “O povo Tatu Bola”.
-Namastê!!! Saudou Pradip sorrindo e aproximou-se deles oferecendo bolinhos de chura. Parece que já eram conhecidos. As crianças aceitaram sem tirar os olhos de nós. A fascinação era mútua.
Maritza agilmente saltou do yak e começou a se aproximar dos meninos para fotografá-los. Os dois menores correram para trás do maior. O guia fez um gesto para que ela parasse. Não seria bom assustar o nosso comitê de “boas vindas.
Pradip pediu a eles que nos guiassem até a aldeia. Seguimos mais um tempo pela trilha, mas esquecemos completamente do cansaço com a presença dos meninos. Minha hérnia quase não incomodava mais. As crianças iam à nossa frente. Corriam e depois paravam esperando que chegássemos perto. Não como pneus, lógico, eles não rolavam ladeira acima. De repente correram e começaram a gritar. As crianças anunciavam a nossa presença à aldeia.
Chegamos!!! Finalmente, chegamos a "Pedra sobre as Nuvens"!!!
Em um platô, cercado por um muro baixo de pedras, estavam acomodadas em um semicírculo, não mais do que 15 casas, todas de madeira, com chaminés de pedra. Ao fundo se destacava imponente o pico nevado do Manaslu*, uma das montanhas mais altas do mundo.
Com o grito das crianças, os moradores saíam de suas casas e nos observavam. Alguns vinham em nossa direção e paravam a uma distância respeitosa. Olhavam para nós com um misto de curiosidade e desconfiança. Eram todos de pequena estatura, os homens não tinham mais de 1,65m e as mulheres eram uns 10cm menores. Fortes, de cabeças grandes, pescoços curtos e grossos. A pele parda, queimada, e os olhos amendoados. Lembravam um pouco os esquimós.
-Namastê, repetíamos para aqueles olhos curiosos, mas sem resposta alguma.
Nosso guia se aproximou para tentar conversar. Na realidade, éramos os primeiros estrangeiros, em mais de vinte anos, na aldeia. Phillip montou acampamento perto do vilarejo e limitou-se a tirar fotos com uma teleobjetiva.
Fomos encaminhados a uma casa que ocupava uma posição central no semicírculo, a casa da matriarca da aldeia. Ela estava à porta observando tudo. Uma pequena senhora toda enrugada, com uns 80 anos de idade, não mais do que 1,50m de altura, com o cabelo todo branco e preso. A ela caberia a decisão de podermos ou não ficar na aldeia.
O guia ofereceu mantimentos em troca de nossa estadia, mas a anciã, “dura na queda”, não parecia muito disposta a ceder. Já estavam a discutir avidamente por mais de quinze minutos. Pradip nos dizia que ela queria saber o porquê e o para quê de nossa visita. Por mais que argumentássemos, ela não se dava por satisfeita, e era proibido nos dirigirmos diretamente à matriarca. Quando tudo parecia se encaminhar para a nossa frustrante volta trilha abaixo, Maritza mexe em sua mochila e para espanto geral se encaminha para a anciã. O que ela pretendia fazer???
- Maritz...Antes que eu terminasse de chamá-la ela se aproxima com uma reverência respeitosa e presenteia a matriarca com alguns objetos.
A anciã fita demoradamente aqueles presentes: uma sandália de borracha, bem feminina com estampa floral, tamanho 35/36, grande para ela, uma escova de cabelo e um batom vermelho com protetor solar. Ela parece que não entende bem como destampar o batom. Maritza pega o seu no bolso do casaco e faz uma demonstração.
De repente, a matriarca abre um sorriso e diz algumas palavras.
Pradip traduz: “ Ok. One week!!!”
O povoado todo comenta a decisão, a maioria se mostra resistente à nossa presença, mas comemoramos como um gol em final de campeonato.
Abracei Maritza e cochichei: “É assim que os colonizadores tapeavam os índios...”
- Desça a trilha com Pradip, se você preferir... Ironizou ela.
A permissão de estadia não se extendia a Pradip. Ficaríamos sem o guia durante nossa aventura na aldeia.

*sherpa: etnia originária das altas regiões montanhosas do Nepal.
**Sagarmatha: ou Grande-mãe do Universo é o nome original do monte Everest.
***comas: no intervalo temperado de 1 tom existem 9 comas musicais. No sistema temperado ocidental de tons e semi- tons eles não são considerados.

Um comentário:

  1. Muito bom!! Também acho o Nepal um lugar fascinante!! Adorei tudo, em especial a descrição de Maritza... haha!! Quem conhece sabe que ela é desse jeitinho mesmo.

    ResponderExcluir