sexta-feira, 26 de março de 2021

Liliu e Dieguito

 Aguardando a decolagem de seu vôo, Liliu, ou Ulisses para os não íntimos, olha pela janela da aeronave com os olhos úmidos, já saudoso, se despedindo daquele lugar e sua gente. Mesmo sabendo que seria temporário, criou laços profundos, não com muitos, mas amou como poucos, cresceu como ser humano e apesar de adorar esportes, na imobilidade da quarentena pandêmica, o amor pela boa comida e aquela cervejinha gelada, fizeram-no crescer como corpo humano também. Ainda bem que as poltronas desse vôo não eram apertadas e se adequavam ao tamanho do passageiro.
 “ Con permiso...” soou uma voz no corredor.  Não querendo que vissem seus olhos marejados, Liliu fez um sinal de concordância contrariada com a cabeça, para que aquele “intruso indesejado” sentasse ao seu lado,  mas ao olhar de canto de olho a figura, também roliça, que fechava o cinto de segurança com certa dificuldade, não se conteve: “Dieguito!!!”
“Sí, encantado!” Responde o vizinho com um sorriso, lhe oferecendo a mão.
“Você é Dom Diego Armando Maradona!!!” Ulisses quase incrédulo, agora duplamente emocionado, aperta a sua mão, la mano de Dios.
“Sí soy yo! Y vos?”
“Ulisses, Ulisses Guedes!!! Muito prazer!!!”
Vendo os olhos chorosos de Ulisses, Maradona pergunta: “Conmovido???”’
“Muito!!!”’Responde Liliu indicando a janela.
“Mucho?” Pergunta Diego apontando para si mesmo, insinuando que fosse pela emoção de conhecê-lo, e solta uma sonora gargalhada.
Mas transformando o seu semblante, olha também pela janela e diz: “Yo también voy a extrañar mucho todo esto!!! Muchísimo!!!”
Por um momento quase se abraçaram e choraram juntos!
“Do que mais sente falta, Diego?”
“De todo! Família, amigos, no muchos... pero principalmente a la pelota!!  La pelota me lo ha dado todo!!! La pelota es mi mejor amiga!!! Claro, cambiaria algunas cositas en mi vida, pero...” funga e solta outra sonora gargalhada!!!
“Y vos? Sos brasileño, le gusta el fútbol, no?”
“Sim, muito!!! Sou torcedor do Bahia!!!”
“Bahia, no es un lugar?”
“Também, mas é o melhor time do Nordeste!!! Bi Campeão brasileiro!!!”
“Huuummm! No lo sé!!!”
“Pô Diego, quer me humilhar?”
“No, no, no... A mi me gusta el Flamengo, pero a-m-o el Boca!!!”
“Boca Juniors!!!”
“Sí!!!”
“E o Barcelona, Sevilla, Napoli?”
“Me gustan todos, pero principalmente el Napoli!!! Con Napoli batimos todos los gigantes de Itália, Juve, Milan, Inter...!!! Allá jugué con Ricardo (Alemão) Y Antônio (Careca), un bellísimo jugador!!!”
“Careca era melhor que Ramon Diaz?”
“Era mejor que Van Basten!!! Así como yo soy mejor que Pelé!!!” Os dois gargalham juntos.
“Y juegas al fútbol?” Perguntou Diego.
“Não! Depois que eu vi você jogar, desisti!!!” Responde Liliu rindo. “Mas gosto de nadar, principalmente no mar!!!”
“Hummm me gustan las playas de Brasil!!!”
“Praia e futebol, como no Brasil, não tem igual!!!” Diz categórico Ulisses, provocando o gênio canhoto.
Maradona disfarça olhando para o corredor, vendo a bela comissária que passa, emenda: “Que guapa, seguro es argentina!!!”
E os dois voltam a gargalhar.
No restante da viagem conversam como velhos amigos, trocam confidências. Falam sobre tristezas e alegrias, solidão, o encontro de um novo amor, filhos, desafios, drogas, rock’n roll, e claro, futebol. Sobre a saudade do que passou, mas ficou na lembrança e no sentimento.
Quando o comandante anuncia a proximidade do pouso, Ulisses tira um selfie com Maradona. A primeira vontade que vem a sua mente é mandar aquela foto para os filhos e a esposa, contando sobre esse encontro inusitado. Seus olhos se emocionam de novo.
“Mucho conmovido?” Pergunta Dieguito apontando para si de novo, os dois se abraçam entre risos e lágrimas.
No desembarque do avião trocam contatos e combinam de caminhar juntos para melhorarem a forma. Mas já na despedida, um pensativo Ulisses pergunta:”Dieguito, só uma dúvida, será que aqui rola aquela cervejinha???”

PS: uma Homenagem a Ulisses Guedes e Diego Maradona, que pegaram o mesmo vôo em 25/11/2020.

Play!!!

Cícero Delfino da Fonseca, ou CDF como era conhecido pejorativamente pelos colegas, dono das melhores notas de sua sala de Direito, costumava se encaminhar para a biblioteca da Universidade e repassar toda a matéria na véspera dos dias de prova. Como o habitual, sentou-se em uma mesa central, equidistante, mas o máximo distante, de pessoas e das estantes cheias de livros. Quem o conhecia, sabia que ele não gostava de socializar com ninguém nesses momentos.
Ligou seu notebook, abriu um pesado Vade Mecum* da biblioteca, colocou seus fones de ouvido “bluetooth”, e acessou sua lista de músicas preferidas em um canal de streaming do seu celular, que já acusava estar com pouca bateria. Nesses momentos de estudo, ele gostava de ouvir música clássica pra tranquilizar.
Play!!! Começou com Yo-yo Ma tocando a Suíte No1 para Cello de Bach.
De repente, Cícero Delfino notou uma movimentação estranha ao seu redor… Levantou o seu olhar, tirou seus óculos de leitura, e viu que todos os presentes na sala começaram a se movimentar suavemente, sincronizados ao som de sua música. Dançavam como bailarinos e dançavam bem!!! Estranhando o fato, tirou um de seus fones do ouvido e viu que não havia vazamento de som, mas todos pareciam ouvir perfeitamente a Suíte de Bach. A coreografia evoluía inclusive com interação entre os presentes, como se tivesse acontecido um ensaio prévio. Assustado aperta o Pause interrompendo a música e vê que tudo volta ao normal, à movimentação habitual. Ninguém dançava mais!!! Aperta o Play!!! E todos voltam com as evoluções coreográficas!!! Aperta o Pause… o Play… O Pause… O Play!!! E viu que o processo se repetia!!!
Desligou a música e ficou a observar por momentos o que faziam as pessoas e suas expressões, mas nada anormal, que denunciasse que quiseram lhe pregar uma peça!!!
Como não usava nenhum psicotrópico, para se certificar que não era um momento seu de insanidade, resolveu repetir o processo, mas agora escolhendo um Rock.
Play Again!!! Jumping Jack Flash dos Rolling Stones!!! E viu que agora, não só dançavam, como também cantavam sincronizados com a música que pulsava em seus ouvidos!!!
Tomou um tremendo susto, quando um colega da mesa mais próxima, mas não tão próxima, subiu na cadeira, empunhando ferozmente sua "Air Guitar"!!! Até o funcionário que limpava o café derramado no chão da Biblioteca, cantava e dançava a "la Mick Jagger”, com seu microfone de cabo de escovão.
"I'm Jumping Jack Flash!!! It’s a gas, gas, gas!!!”
Cícero Delfino se escondeu atrás da tela de seu notebook e desligou correndo a música.
Lentamente subiu a cabeça para observar o que estava acontecendo, e viu que nada denunciava o "Rock Horror Show" que acontecera há momentos atrás!!! Tudo normal, assustadoramente normal!!! Achou tudo até mais silencioso do que o habitual, esquecendo que estava usando fones auriculares.
Será que estava delirando ou presenciara um inexplicável momento de histeria coletiva???
Pensou em ir embora correndo dali, mas como apesar de assustador, o fato não era ameaçador, coçou sua cabeça com os cabelos que já começavam a rarear, tomou coragem e resolveu tirar a última prova antes de sair.
Play!!! Brasil Pandeiro, de Assis Valente, foi sua escolha e… novamente aconteceu!!! Em instantes, a sala da biblioteca parecia mais a quadra de uma Escola de Samba em dia de vitória no Carnaval!!! Todos cantavam, dançavam e faziam do que estivesse à mão seu instrumento de percussão!!! O frenesi coletivo era emocionante e contagiante, Cícero Delfino começou a perder o medo e tamborilar as teclas do notebook ao ritmo da música, seu corpo sacolejava de leve, um sorriso quase involuntário estampou seu rosto e esquecendo que era desafinado, começou a cantar junto:
“Brasil, esquentai vossos pandeiros
Iluminai os terreiros
Que nós queremos samb…"  
Mas de repente, a música parou!!!
Todos "congelaram" nesse momento, na posição que estavam!!! Bocas que cantavam sem som, corpos que dançavam sem movimento!!! Como estátuas, nem piscavam mais!!! Mas por quê???
Depois de passar alguns momentos atônito, Cícero Delfino achou a resposta!!! "O mundo" parou porque acabou a bateria de seu celular!!!
Apavorado, levantou recolhendo suas coisas às pressas, caminhou rapidamente pela sala desviando dos dançarinos “congelados”, colocou o Vade Mecum no balcão da bibliotecária, uma senhora sisuda, que gostava mais dos livros do que de gente, que também parecia estar em animação suspensa, e ia saindo em direção à porta, quando a viu olhar por cima do óculos e com um tom sério dizer:
- CDF, da próxima vez, vê se carrega melhor esse celular!!!

PS: "E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música." Friedrich Nietzsche