Uma noite dessas, entre taças de vinho branco e um risoto de camarão, feito por mim, a conversa leve de um primeiro encontro, acabou convergindo para um dilema existencialista.
Com a adição de álcool, a minha “companheira” perdeu a timidez e desandou a falar, a falar muito...
“Sabe, não consigo lembrar quase nada de minha primeira infância...
A única foto que existe dessa época é com uns 3 ou 4 anos, indo para a escola, com uma tia minha, mas a foto é velha e borrada, nem dá para saber se sou eu de verdade. Fotos minhas bebê, com minha mãe ou meu pai, nem pensar!!! Todos os meus irmãos têm fotos... Aliás, minha primeira lembrança real, com meus irmãos, muitos irmãos, não é muito agradável, eles me chamavam e me colocavam sentada no centro do círculo, aí iniciavam um verdadeiro bombardeio, tortura psicológica, dizendo que eu era adotada, achada na lata do lixo, trocada na maternidade, até eu cair no choro. Eles faziam também um coral com direito a musiquinha “aterrorizante”. Eu devia ter, no máximo, uns 4 anos nessa época.
O chefe dessas sessões de “bullyng” era meu irmão Dinho, que pensando bem, em nada se parece comigo, moreno, baixo, de nariz e orelhas grandes, parece um gnomo dos trópicos. Eu sou mais clara, dos olhos verdes...
Quem sempre me protegia nessas situações era minha querida e saudosa avó, que me colocava sob sua asa e andava comigo pra cima e para baixo, e ai de quem mexesse comigo!!! “Não ligue não, é porque você é bonita do cabelo liso”, dizia ela. Será que ela sabia de algum segredo sobre a minha origem??? Ou era somente uma predileção natural pela mais fraca??? Mas por quê eu era tão diferente dos outros???
Minha mãe sempre desconversava e ficava nervosa quando eu perguntava algo a respeito. Meu pai ensaiou, certa vez, me chamar pra conversar, mas repreendido por minha mãe, desistiu e na hora “H”, me abraçou e encheu de beijos, sem falar nada.
Será que a minha ansiedade e insatisfação permanentes, tem algo a ver com isso???
Enfim, hoje, apesar de me sentir um membro real da família, querida por todos, às vezes me questiono, se em algum lugar, em alguma família, não existe outra mulher com a cara de Dinho, pensando que sou eu, enquanto eu aqui ocupo o seu lugar... ”
Depois da longa e detalhada narrativa, muitas vezes repetindo trechos e se emocionando a cada repetição, ela sentiu muito sono e acabou dormindo no sofá.
Foi frustrante, para quem esperava um "affair" romântico. Mas apesar da forte influência etílica, esse relato, não muito adequado para um primeiro encontro, pareceu conter grandes doses de verdade... Ou não???
PS: baseado em um relato real...ou não.
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