“Cansado dos dias vazios,
Dos vasos sem flores,
E noites de frio sem cio
Vou-me embora em busca do Sol
Onde livre, sem grandes motivos ou medo,
Sorrio
Mergulho sem volta
Em ondas do Mar revolto
Porque que a ti, Vida
Já não pertenço mais”
Chegando à conclusão de que não queria mais viver daquele jeito, postou esse texto nas redes sociais, para tornar sua despedida mais honrosa. Dos seus mais de 2.500 amigos, recebeu quatro curtidas e um comentário: "Lindo irmão! Faz o que seu coração mandar!”
Achou extremamente frustrante as pessoas não se importarem com o seu “Adeus" e nem, ao menos, tentarem demovê-lo da ideia.
Depois de mais de um ano internado, saindo somente para o estritamente necessário, ele já estava meio “deprê”, aliás, mais do que meio, uns 3/4 “deprê”!!! Aos 47 anos, as vantagens da vida de solteiro, declamadas antes em prosa, verso e redes sociais, virou, na pandemia: o feitiço contra o feiticeiro!!!
O seu “reino” de 55m quadrados, já tinha sido muito bem frequentado, em jantares, onde ele mesmo fazia pratos elaborados e elogiados; "cineminha privê" na sua TV de 50 polegadas; jogos de pôquer e sarau musical pela madrugada com os amigos em "petit comité”, até altas horas, parando só quando os vizinhos ameaçavam chamar a polícia. Isso, sem falar das amigas "libres e calientes”, que eram visitas assíduas. Mas nada além de amigas, pois não assumia nenhum compromisso sério, vivia se gabando de não ter ninguém para "pegar no seu pé”, exceto, claro, Dona Iolanda, sua querida mãe.
Como tinha comorbidade - era diabético, seu "reino" tinha se tornado seu refúgio e sua fortaleza. Mas, também, a sua prisão solitária - um “apertamento claustrofóbico". Andava como um zumbi pela casa, ou passava o dia deitado no sofá, "zapeando" séries, com uma cerveja na mão. Mão, exaustivamente, higienizada com álcool em gel.
Não cozinhava mais, tudo era pedido por “delivery”. A bateria do carro arriou de tanto tempo parado. Trabalhava em "home office”, mas na pandemia, a demanda caiu bastante. As contas estavam maiores que a receita. O violão estava sem cordas, a haste de seu óculos quebrou e foi colado com Super Bonder, a barriguinha saliente mostrava que nunca mais frequentou a academia, seu “parceiro” de aventuras, cabisbaixo, não demonstrava mais o entusiasmo de outrora, nem a velha conhecida “Palmita” (“de la mano”) conseguia motivá-lo para o embate solitário 5 X 1 (cinco contra um). Comia caixas de chocolate por compulsão!!!
Somente, uma vez por semana, recebia a visita de Dona Sandra, sua diarista, avó de 3 netos, que voltou depois dos primeiros meses de quarentena, pois a bagunça estava insuportável!!! A pilha de caixas de pizzas vazias tinha ultrapassado a sua altura (1.75m) e as garrafas longneck já tomavam todo o chão de sua pequena varanda. Ele ficava no quarto pela manhã, e à tarde no escritório, um segundo quarto minúsculo, sem contato físico ou visual, enquanto Dona Sandra limpava o acúmulo semanal. As instruções do dia, invariavelmente, as mesmas, e o dinheiro da diária eram deixadas de antemão na sala, sob a pequena estátua branca de Buda. Não, ele não era Budista, nem religioso. Costumava dizer, que era ateu, graças a Deus. Só tinha ganhado a estátua como um presente de aniversário, para dar sorte, mas, ultimamente, ela parecia ter parado de funcionar. Apesar dele saber que aquela reclusão e os cuidados sanitários eram para garantir sua sobrevivência, começou a se questionar se valia a pena. Os dias se repetiam, sem novidades, sem alegria e sem aventuras. Nada mais lhe apetecia, dava “água na boca”. A monotonia aumentava a tristeza, que tomava conta de seu corpo e espírito e prejudicava sua saúde mental.
Uma tarde, no desespero, desprezando o ridículo e as normas de segurança, deu uma de “voyeur”, escalou a máquina de lavar para invocar Onã, tentando observar D Sandra em seu banho, antes de ir embora, pela fresta da janela do banheiro, da área de serviço.
Dona Sandra, uma senhora com mais de 60 anos, que em CNTP, não lhe ofereceria nenhum atrativo sexual. De repente, quando procurava uma posição que lhe proporcionasse uma melhor visão, a tampa cedeu e ele caiu dentro da máquina. Quase ficou entalado. Envergonhado correu e se trancou no quarto para não ter que dar explicações a Dona Sandra, assustada com a confusão. Prejuízo: R$435,00 pelo conserto da máquina, uma perna dolorida e roxa e uma quase torção no seu “parceiro” inseparável.
Até a interação pelas medias sociais tinha diminuído muito, e o telefone celular, então, quase não tocava mais, a não ser pelas ligações de sua mãe e dos telemarketings e call centers, que continuavam a oferecer serviços e produtos como se não houvesse pandemia, aliás, nunca tinham ligado tanto!!!
Decidido a desistir de seu cotidiano repetitivo e sem graça, fez um laço em torno de seu chuveiro, com sua gravata de seda italiana - a única que tinha, e que só usara uma vez em um casamento, que nem lembrava mais de quem foi, tirou os óculos, subiu em um banco e colocou o pescoço no laço. Era Ateu, mas fez uma oração pedindo perdão a Deus, para o caso de haver vida após a morte, e saltou derrubando o banco!!!
Os segundos a seguir foram muito rápidos, mas duraram uma eternidade!!! Sentiu o laço apertar o pescoço e se desesperou, debateu-se como louco. Pendurado, não conseguia apoiar os pés para se soltar. Arrependido, queria voltar atrás em sua decisão, mas o fim parecia inevitável!!! Sentiu o celular tocando no bolso da bermuda, tentou em vão atender para pedir socorro e se debateu ainda mais!!! De repente, ouviu um estalo forte e caiu estatelado no chão do box com água caindo sobre seu rosto. Para a sua sorte, o chuveiro de hoje em dia é feito de material plástico ordinário e não aguentou o seu peso (que inclusive aumentou consideravelmente na pandemia). Prejuízo: R$550,00 pela ducha nova mais reinstalação da porta do box.
Afrouxou o laço da gravata e permaneceu deitado no chão gelado do box quando sentiu que a chamada insistente no bolso de sua bermuda continuava.
Sem os óculos e com a vista encharcada, atendeu por impulso sem ver quem era.
- “Alô?" A sua voz quase não saiu.
- “Boa tarde! Tudo bem, como vai o senhor??? O motiv…
Antes que ela continuasse, ele caiu no choro.
- “Senhor, vc está bem? Senhor???!!!”
Ele não conseguia falar mais nada, só chorava copiosamente. E, surpreendentemente, durante todo o tempo, a operadora de telemarketing permaneceu na linha tentando acalmá-lo. Ela se revelou ali, mais humana do que todos os seus amigos, que não estavam nem aí para a sua desesperança.
Quando finalmente ele conseguiu voltar a falar, normalizar a sua respiração, ficou envergonhado e pediu mil desculpas. Ela o tranquilizou, conversou mais um pouco e apesar dos pedidos dele para não desligar, disse que teria que voltar ao trabalho e que mais tarde, assim que possível, ligaria de novo. Mesmo sem acreditar muito, ele gostou da ideia e esperançoso, aguardou com ansiedade a sua ligação. Olhava as horas com frequência e conferia o celular, tentou ligar de volta no número registrado, mas aquele número não recebia chamadas.
19:47 PM, toca o celular!!! Ele atende tentando disfarçar a ansiedade:
- Alô… alô???
- Oi, como vai o Sr? É a Mariana do callcenter.
- Oi, Mariana! Estou bem melhor, graças a você! E não me chame de Senhor, não sou tão velho assim.
Agora sabia o nome da sua salvadora. Ela tinha uma voz aveludada e acolhedora.
Estava a caminho da Faculdade, estudava Enfermagem, tinha 24 anos, era mãe solo, tinha uma filha de 5 anos - Luiza, e morava junto com sua mãe. Cuidava da filha de manhã, trabalhava à tarde, e estudava à noite.
Nos próximos dias se falaram todos os dias e nos outros dias também, viraram amigos e confidentes. E, apesar de morarem em Estados diferentes, combinaram de se encontrar assim que acabasse a Pandemia.
Até Dona Iolanda, ciumenta e controladora, vendo a melhora de humor do filho, aprovou sua nova amiga.
A Esperança voltou, o Sorriso brotou, a Vida renasceu. Graças a uma ligação de telemarketing!!!
quarta-feira, 10 de novembro de 2021
"Alô???"
quarta-feira, 6 de outubro de 2021
Feito às Pressas
E Deus criou o Mundo!!! Não sei se o tempo Dele equivale ao nosso, mas dizem que foi em seis dias e que no sétimo Ele descansou. Pouco tempo pra muita coisa, "né”??? Mas, como Deus é Deus, então, tudo é possível. Além do mais, no aperto, Ele pode ter usado uns truques, como: voltar o relógio, parar o tempo, recomeçar sem ninguém perceber, enfim, quem sou eu pra duvidar Dele??? Parece que o prazo foi estipulado em uma aposta, e claro, Ele ganhou!!!
Mas, no fim do quinto dia, olhando para a Sua obra quase finda, sentiu orgulho, mas também um incômodo inexplicável. Faltava algo, não estava perfeito. As coisas estavam meio sem graça, não sobressaíam aos Seus olhos. Então, em um “insight" divino, Deus descobriu que o mundo estava em preto&branco!!! Em um repente de pura genialidade, naquele exato instante, Ele inventou as cores e se deu de presente um novo jogo de aquarelas, com todas as cores e suas combinações possíveis.
O sexto dia foi lúdico, feliz - Deus passou o tempo todo pintando, exercitando a sua sensibilidade, escolhendo, cuidadosamente, a palheta de cores aplicada a cada setor de sua obra, que agora pulsava com esplendor, dando novo significado à Sua criação.
Eis que pouco antes do por do Sol do sexto dia, quase no final de Seu prazo, Deus teve uma ideia, resolveu que o "bolo estava delicioso", mas faltava a "cereja". Queria não só ganhar a aposta, mas também ser aplaudido de pé por todos!!! Em um momento de vaidade egóica, que será também característica marcante de Sua nova criação, Deus correndo para cumprir o prazo, fez um projeto às pressas, sem pré-teste, usando as formas arredondadas do esboço de Mikael (um de seus anjos prediletos), conferiu-lhe algumas características divinas de personalidade e o pintou de cores variadas*, por puro prazer estético, distribuídas conforme as regiões que habitariam naquela Terra, acreditando que isso seria suficiente para finalizar sua melhor criatura - aquela feita à sua imagem. Mas, nada feito as pressas funciona bem, não é???
As formas escolhidas se mostraram harmônicas e esteticamente bem resolvidas, principalmente nos indivíduos do sexo feminino, mas a "saída de esgoto" junto a “área de lazer” é extremamente questionável. Por mais que tenha sido criada à imagem de Deus, a nova espécie não era Deus, logo, não tinha "espaço suficiente" dentro dele para ter as características de Deus em equilíbrio. Virou sim, um desequilibrado, cheio de defeitos salientes e exacerbados, egoístas e ignorantes em sua maioria*. O divino se tornou mundano fora da embalagem original, e a distribuição regional por cores, em vez de motivo de alegria, tornou-se um grande fator de desigualdade e injustiça, uns coloridos querendo ser superiores aos outros. Talvez fosse melhor tê-los pintado todos da mesma cor.
Ah, e o livre arbítrio??? Esse pode ter sido a causa de todos os problemas!!!
Assim nasceu o Homem!!!
Foi bom Deus descansar no sétimo dia, pois sua nova criatura lhe daria muita “canseira" e testaria Seu amor e Sua infinita paciência incontáveis vezes ao longo dos tempos. Se arrependimento matasse… mas sabemos que Ele é imortal!!!
Em vez dos aplausos, Deus ouve até hoje muitas críticas e questionamentos por Sua criação!!! Até Lúcifer - a Estrela da Manhã - culpa os erros no projeto, pela superlotação em seus domínios.
Deus errou??? Acho que não, Ele nunca erra, mas poderia ter sido mais criterioso e caprichado um pouco mais. Afinal, Ele é Deus!!!
cores variadas*: Deus evitou o Verde em sua nova criatura por ter usado muito essa cor na Natureza e ter pintado todos os Marcianos de verde. Corre também o boato que o Criador é Corinthiano.
ignorantes em sua maioria*: muitos ignoram até o seu Criador e outros manipulam a Sua imagem para seu proveito próprio.
sábado, 3 de julho de 2021
Sonata ao Luar
Naquela estrada escura, no meio do nada, como em todas as noites de lua cheia, sobre o asfalto ainda morno, Wepet, o sapo, contemplou apaixonadamente a sua Musa. E ela retribuía toda aquela admiração com um raio de luar, que como um spot de luz, iluminava o solista batráquio no seu palco predileto.
terça-feira, 22 de junho de 2021
Ensaio Sobre Um Hamburguer
Preparei um hambúrguer em casa e o seu cheiro ficou impregnado, não sei se foi em minhas narinas, nos meu cabelos, ou talvez, em meu ser como um todo. Sendo assim, tomei um banho completo pra me livrar de sua insistente companhia. Mesmo rendido ao banho, relutei em escovar os dentes, queria poder desfrutar seu sabor por mais algum tempo, ele não era especialmente saboroso, era desses simples, de caixa. Nada desses caríssimos gourmets, mas me trouxe a lembrança saudosa de outros hambúrgueres, ao longo de minha vida.
O primeiro, claro, o de minha mãe, todo caseiro, cuja forma lembrava mais o polpetonne do Jardim de Napoli, do que o dos hambúrgueres tradicionais, era redondo, gordo e suculento. Não comíamos como um sanduíche e sim como protagonista nas refeições, o sabor era diferenciado, não sei se melhor, mas diferente de todos os outros, que vieram depois. Creio que minha opinião seja suspeita nesse caso.
Minha segunda lembrança "hamburguerística", ainda na infância, é um "walking thru” pós praia, em uma fila enorme, todos em trajes de banho, com meu pai e minha irmã mais velha, em um BOBS, em nossas férias no Rio de Janeiro, acho que era em Ipanema, onde todo o atendimento/pagamento/retirada de sanduíches era feito através de um “buraco na parede" e nada víamos do interior do estabelecimento. O sabor do sanduíche??? Não tenho mais a mínima ideia!!!
Não havia muitas cadeias de Fast Foods no começo de minha adolescência paulistana, lembro do Jack in The Box no estacionamento do Jumbo Eletro do Aeroporto de Congonhas e na Praça Panamericana, então, o cheese salada da lanchonete do bairro, na Aclimação, rua José Getúlio, que eu frequentava com os amigos, nos dias de aula em período integral da saudosa escola Montessoriana da rua Castro Alves, é a minha terceira lembrança. Um balcão rodeado de cadeiras giratórias e uma pequena chapa, onde o dono preparava com carinho seus simples e gostosos hambúrgueres artesanais. Naquela época, comer um hambúrguer e tomar um refrigerante era uma opção muito mais em conta do que um PF (prato feito), acreditem!!!
A quarta lembrança, já com a cidade cheia de Mac Donalds, é da época de PUC SP, em uma lanchonete chamada Docas, na rua Monte Alegre, vizinha à Universidade. Em meu primeiro encontro, com Cidália, uma linda jovem oriental com nome português, pedi um Cheese Champignon, um cheeseburguer com um molho rosê e cogumelos Paris, pra minha surpresa e vergonha, o molho rompeu o saquinho de papel em torno do sanduíche e caiu no meu colo, manchando meu novo agasalho esportivo azul turquesa. Lembro até hoje de sua cara de reprovação, segurando a risada. O sanduíche??? Saiu caro!!! Imagino que até fosse bom, em outras circunstâncias.
A próxima lembrança não é a de um hambúrguer específico, mas de alguns associados à uma fase da vida, dos 23 aos 30 e poucos anos, já trabalhando, morando sozinho a alguns quarteirões da Av Paulista, eu comparecia sempre ao América, da Alameda Santos com seu hambúrguer na grelha, lembro também dos hambúrgueres com milk-shake duplo nas madrugadas, depois do nosso tradicional Futebol Society, o “Perdidos na Noite”, no Joakin’s, Chico, Burdog, New Dog, e outros tantos, onde nos reuníamos para a resenha futebolística semanal, e que tristemente, hoje não constam em nenhuma lista dos melhores hambúrgueres da cidade!!!
A sexta é a lembrança da saudade. Diferente de agora, quando cheguei à Salvador para trabalhar, nos anos 90, não havia um hambúrguer respeitável na cidade, ainda mais comparando com São Paulo, por incrível que pareça o McDonalds ainda era a melhor opção, aí batia aquela falta do lanche gostoso, principalmente nas madrugadas depois da labuta!!!
A sétima é de minha Lua de Mel do terceiro casamento, o sanduíche do Joe’s de Manhattan, autointitulado o melhor hambúrguer de Nova Iorque, ao sul da ilha, perto do monumento ao 11 de Setembro. Não dava pra ir aos EUA e deixar de provar um tradicional hambúrguer, era realmente muito bom, mas acho que em São Paulo tem uns tão bons quanto!!!
E, por último, vou citar os gourmetizados hambúrgueres, na pandemia, pedidos via Ifood. Hoje, as hamburguerias infestam a cidade de Salvador, não dá pra consumir sempre, pois custam muito mais do que uma refeição comum. Alguns muito bons, ganharam até prêmios nacionais, mas cá para nós, estão longe de ter o espírito e a identidade daquele hambúrguer que me acompanha desde criança. Talvez sinal dos tempos, talvez uma precoce velhice saudosa. Acho que eu daria a melhor picanha para poder comer de novo um hambúrguer de minha mãe.
Escovei os dentes.
sexta-feira, 26 de março de 2021
Liliu e Dieguito
Aguardando a decolagem de seu vôo, Liliu, ou Ulisses para os não íntimos, olha pela janela da aeronave com os olhos úmidos, já saudoso, se despedindo daquele lugar e sua gente. Mesmo sabendo que seria temporário, criou laços profundos, não com muitos, mas amou como poucos, cresceu como ser humano e apesar de adorar esportes, na imobilidade da quarentena pandêmica, o amor pela boa comida e aquela cervejinha gelada, fizeram-no crescer como corpo humano também. Ainda bem que as poltronas desse vôo não eram apertadas e se adequavam ao tamanho do passageiro.
“ Con permiso...” soou uma voz no corredor. Não querendo que vissem seus olhos marejados, Liliu fez um sinal de concordância contrariada com a cabeça, para que aquele “intruso indesejado” sentasse ao seu lado, mas ao olhar de canto de olho a figura, também roliça, que fechava o cinto de segurança com certa dificuldade, não se conteve: “Dieguito!!!”
“Sí, encantado!” Responde o vizinho com um sorriso, lhe oferecendo a mão.
“Você é Dom Diego Armando Maradona!!!” Ulisses quase incrédulo, agora duplamente emocionado, aperta a sua mão, la mano de Dios.
“Sí soy yo! Y vos?”
“Ulisses, Ulisses Guedes!!! Muito prazer!!!”
Vendo os olhos chorosos de Ulisses, Maradona pergunta: “Conmovido???”’
“Muito!!!”’Responde Liliu indicando a janela.
“Mucho?” Pergunta Diego apontando para si mesmo, insinuando que fosse pela emoção de conhecê-lo, e solta uma sonora gargalhada.
Mas transformando o seu semblante, olha também pela janela e diz: “Yo también voy a extrañar mucho todo esto!!! Muchísimo!!!”
Por um momento quase se abraçaram e choraram juntos!
“Do que mais sente falta, Diego?”
“De todo! Família, amigos, no muchos... pero principalmente a la pelota!! La pelota me lo ha dado todo!!! La pelota es mi mejor amiga!!! Claro, cambiaria algunas cositas en mi vida, pero...” funga e solta outra sonora gargalhada!!!
“Y vos? Sos brasileño, le gusta el fútbol, no?”
“Sim, muito!!! Sou torcedor do Bahia!!!”
“Bahia, no es un lugar?”
“Também, mas é o melhor time do Nordeste!!! Bi Campeão brasileiro!!!”
“Huuummm! No lo sé!!!”
“Pô Diego, quer me humilhar?”
“No, no, no... A mi me gusta el Flamengo, pero a-m-o el Boca!!!”
“Boca Juniors!!!”
“Sí!!!”
“E o Barcelona, Sevilla, Napoli?”
“Me gustan todos, pero principalmente el Napoli!!! Con Napoli batimos todos los gigantes de Itália, Juve, Milan, Inter...!!! Allá jugué con Ricardo (Alemão) Y Antônio (Careca), un bellísimo jugador!!!”
“Careca era melhor que Ramon Diaz?”
“Era mejor que Van Basten!!! Así como yo soy mejor que Pelé!!!” Os dois gargalham juntos.
“Y juegas al fútbol?” Perguntou Diego.
“Não! Depois que eu vi você jogar, desisti!!!” Responde Liliu rindo. “Mas gosto de nadar, principalmente no mar!!!”
“Hummm me gustan las playas de Brasil!!!”
“Praia e futebol, como no Brasil, não tem igual!!!” Diz categórico Ulisses, provocando o gênio canhoto.
Maradona disfarça olhando para o corredor, vendo a bela comissária que passa, emenda: “Que guapa, seguro es argentina!!!”
E os dois voltam a gargalhar.
No restante da viagem conversam como velhos amigos, trocam confidências. Falam sobre tristezas e alegrias, solidão, o encontro de um novo amor, filhos, desafios, drogas, rock’n roll, e claro, futebol. Sobre a saudade do que passou, mas ficou na lembrança e no sentimento.
Quando o comandante anuncia a proximidade do pouso, Ulisses tira um selfie com Maradona. A primeira vontade que vem a sua mente é mandar aquela foto para os filhos e a esposa, contando sobre esse encontro inusitado. Seus olhos se emocionam de novo.
“Mucho conmovido?” Pergunta Dieguito apontando para si de novo, os dois se abraçam entre risos e lágrimas.
No desembarque do avião trocam contatos e combinam de caminhar juntos para melhorarem a forma. Mas já na despedida, um pensativo Ulisses pergunta:”Dieguito, só uma dúvida, será que aqui rola aquela cervejinha???”
PS: uma Homenagem a Ulisses Guedes e Diego Maradona, que pegaram o mesmo vôo em 25/11/2020.
Play!!!
Cícero Delfino da Fonseca, ou CDF como era conhecido pejorativamente pelos colegas, dono das melhores notas de sua sala de Direito, costumava se encaminhar para a biblioteca da Universidade e repassar toda a matéria na véspera dos dias de prova. Como o habitual, sentou-se em uma mesa central, equidistante, mas o máximo distante, de pessoas e das estantes cheias de livros. Quem o conhecia, sabia que ele não gostava de socializar com ninguém nesses momentos.
Ligou seu notebook, abriu um pesado Vade Mecum* da biblioteca, colocou seus fones de ouvido “bluetooth”, e acessou sua lista de músicas preferidas em um canal de streaming do seu celular, que já acusava estar com pouca bateria. Nesses momentos de estudo, ele gostava de ouvir música clássica pra tranquilizar.
Play!!! Começou com Yo-yo Ma tocando a Suíte No1 para Cello de Bach.
De repente, Cícero Delfino notou uma movimentação estranha ao seu redor… Levantou o seu olhar, tirou seus óculos de leitura, e viu que todos os presentes na sala começaram a se movimentar suavemente, sincronizados ao som de sua música. Dançavam como bailarinos e dançavam bem!!! Estranhando o fato, tirou um de seus fones do ouvido e viu que não havia vazamento de som, mas todos pareciam ouvir perfeitamente a Suíte de Bach. A coreografia evoluía inclusive com interação entre os presentes, como se tivesse acontecido um ensaio prévio. Assustado aperta o Pause interrompendo a música e vê que tudo volta ao normal, à movimentação habitual. Ninguém dançava mais!!! Aperta o Play!!! E todos voltam com as evoluções coreográficas!!! Aperta o Pause… o Play… O Pause… O Play!!! E viu que o processo se repetia!!!
Desligou a música e ficou a observar por momentos o que faziam as pessoas e suas expressões, mas nada anormal, que denunciasse que quiseram lhe pregar uma peça!!!
Como não usava nenhum psicotrópico, para se certificar que não era um momento seu de insanidade, resolveu repetir o processo, mas agora escolhendo um Rock.
Play Again!!! Jumping Jack Flash dos Rolling Stones!!! E viu que agora, não só dançavam, como também cantavam sincronizados com a música que pulsava em seus ouvidos!!!
Tomou um tremendo susto, quando um colega da mesa mais próxima, mas não tão próxima, subiu na cadeira, empunhando ferozmente sua "Air Guitar"!!! Até o funcionário que limpava o café derramado no chão da Biblioteca, cantava e dançava a "la Mick Jagger”, com seu microfone de cabo de escovão.
"I'm Jumping Jack Flash!!! It’s a gas, gas, gas!!!”
Cícero Delfino se escondeu atrás da tela de seu notebook e desligou correndo a música.
Lentamente subiu a cabeça para observar o que estava acontecendo, e viu que nada denunciava o "Rock Horror Show" que acontecera há momentos atrás!!! Tudo normal, assustadoramente normal!!! Achou tudo até mais silencioso do que o habitual, esquecendo que estava usando fones auriculares.
Será que estava delirando ou presenciara um inexplicável momento de histeria coletiva???
Pensou em ir embora correndo dali, mas como apesar de assustador, o fato não era ameaçador, coçou sua cabeça com os cabelos que já começavam a rarear, tomou coragem e resolveu tirar a última prova antes de sair.
Play!!! Brasil Pandeiro, de Assis Valente, foi sua escolha e… novamente aconteceu!!! Em instantes, a sala da biblioteca parecia mais a quadra de uma Escola de Samba em dia de vitória no Carnaval!!! Todos cantavam, dançavam e faziam do que estivesse à mão seu instrumento de percussão!!! O frenesi coletivo era emocionante e contagiante, Cícero Delfino começou a perder o medo e tamborilar as teclas do notebook ao ritmo da música, seu corpo sacolejava de leve, um sorriso quase involuntário estampou seu rosto e esquecendo que era desafinado, começou a cantar junto:
“Brasil, esquentai vossos pandeiros
Iluminai os terreiros
Que nós queremos samb…"
Mas de repente, a música parou!!!
Todos "congelaram" nesse momento, na posição que estavam!!! Bocas que cantavam sem som, corpos que dançavam sem movimento!!! Como estátuas, nem piscavam mais!!! Mas por quê???
Depois de passar alguns momentos atônito, Cícero Delfino achou a resposta!!! "O mundo" parou porque acabou a bateria de seu celular!!!
Apavorado, levantou recolhendo suas coisas às pressas, caminhou rapidamente pela sala desviando dos dançarinos “congelados”, colocou o Vade Mecum no balcão da bibliotecária, uma senhora sisuda, que gostava mais dos livros do que de gente, que também parecia estar em animação suspensa, e ia saindo em direção à porta, quando a viu olhar por cima do óculos e com um tom sério dizer:
- CDF, da próxima vez, vê se carrega melhor esse celular!!!
PS: "E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música." Friedrich Nietzsche