terça-feira, 4 de dezembro de 2012

O Dilema (Nepal Capítulo 4)

Acordei cedo e saí para andar pela aldeia.
Amanhã, Pradip subiria a montanha para nos levar de volta a civilização, o que me fazia refletir mais ainda sobre divulgar ou não os segredos de “Pedra Sobre as Nuvens” e seu povo.
Passei pelo curral dos yaks, onde as mulheres ordenhavam as fêmeas. Eles utilizavam quase tudo dos yaks: leite, lã, esterco, menos a carne.
Depois caminhei pelas plantações, em forma de grandes degraus, que só eram cultivadas na primavera e verão. Os aldeões usavam a água de um rio que se originava da neve e gelo derretidos no alto das montanhas para irrigar o plantio, aliás essa água era usada para tudo.
Passo por uma jovem mãe, que na frente de sua casa, sobre uma manta, aproveita o sol matutino para fazer exercícios de “rolamento” com o seu bebê, que ainda mal andava. Assim era a iniciação do “povo tatu bola”.
Todos me cumprimentavam no caminho, alguns até sorriam, e isso só me fazia sentir pior. Ou “trairia” os aldeões ou a confiança que Fabrício Quintana, editor da revista Cultura Paulistana (e meu melhor amigo), tinha depositado em mim e em meu trabalho. Publicar uma matéria dessas poderia me proporcionar também grande visibilidade e destaque profissional.
Pela manhã as crianças frequentavam a escola, na casa maior da aldeia, cuja professora era Ashmi, neta de Mama Tamushyo. Ashmi era bela e longilínea, mais alta e diferente do padrão geral dos habitantes da aldeia. Foi conversando com ela (ela falava inglês!!!), que conheci um pouco mais da vida da matriarca da aldeia e sua família.
Mama era muito irrequieta e curiosa quando jovem. Com vinte anos incompletos, ela foi embora da aldeia em busca de um universo mais amplo. Foi para Kathmandu, onde arrumou trabalho na casa de uma família aristocrática, muito rica. Incentivada por eles, aproveitou o tempo disponível para estudar. Sete anos depois, Mama, repentinamente, voltou para a aldeia. Trazendo com ela um bebe de colo, era Sophia, a mãe de Ashmi.
Dizem que o pai de Sophia era o filho caçula da família rica. Existiam versões de estupro e de uma grande paixão, mas de qualquer maneira, Mama e a filha não foram aceitas como membros da família e ela nunca quis falar sobre o assunto.
Usou o dinheiro que guardou, mais a “indenização” dada pela família, para construir a escola da aldeia e comprar o material didático necessário. Mesmo com a rejeição inicial dos mais velhos, a escola provou o seu valor e Tamushyo , sua primeira professora, começou a se tornar, ali, a mulher mais poderosa da aldeia.
Na adolescência, Sophia, foi mandada para a capital para estudar em uma escola de freiras, a “Sacre Coeur de Marie”. Contrariando a vontade de Mama, Sophia se apaixonou por um professor durante a faculdade de medicina e ficou morando em Kathmandu. Mas o professor, pai de Ashmi, veio a falecer em um acidente de carro, no trânsito caótico da cidade e Sophia retornou a “Pedra sobre as Nuvens”. Ashmi, só conheceu a aldeia e sua avó aos nove anos de idade e não sabia rolar, como um pneu, como as outras crianças. Nunca pode participar da competição de verão da aldeia, que era uma corrida “downhill” do “Povo Tatu Bola”. Era alvo de “bullying” por ser magra, alta e incapaz de rolar.  Como professora, hoje, era muito respeitada, mas até a adolescência, odiava a aldeia e seu sonho era voltar a viver na capital.
Por falar em rolar, eu tinha feito minhas tentativas junto com Kumar, o maior dos três “meninos pneu”  que eu conhecera no nosso primeiro encontro. Ele se tornou o meu melhor amigo na aldeia. Seguindo suas orientações e copiando sua movimentação, coloquei um casaco com capuz do maior morador da aldeia, com reforço na nuca e coluna e tentei rolar ladeira abaixo. Fracasso total!!! Tudo o que consegui foi uma crise de hérnia lombar. O chá e a massagem com mosha bustão de Sophia, mãe de Ashmi e médica da aldeia, ajudaram bastante em minha recuperação. Claro que tomei também os meus inseparáveis analgésicos e desinflamatórios halopáticos.
Encontrei Maritza tirando suas fotos pela aldeia.
- Bom dia!!! Aproveitando a luz da manhã??? Perguntei indo em  seu encontro.
- Com certeza!!! E você, caiu da cama??? Ironizou.
- Estou meio ansioso, não consegui dormir bem. Digo alongando as costas, demonstrando um certo desconforto físico.
- É...temos que decidir que fim vamos dar a esse material. Se entregamos tudo, parte ou nada para Fabrício. E temos que decidir juntos, a minhas fotos não podem contrariar a sua matéria.
- Eu sei...de todo jeito vamos enganar alguém. O pior é que acho que como jornalista deveria entregar o trabalho que aceitei fazer...
- Mas a exposição desnecessária da aldeia e suas consequências me incomodam mais. Afirmou Maritza.
 Sua convicção chegou a me perturbar, pois eu ainda não tinha conseguido chegar a uma decisão. Senti vontade de argumentar, mas cocei a barba mal feita e disse:
- É... você pode ter razão.
Voltei a caminhar só.

Retorno à cabana para o almoço. Cardápio: arroz, churpi, um queijo de leite de yak e verduras em conserva. Os complementos, palitos de carne seca (corned beef sticks, made in USA),  e os saquinhos de pozinho mágico para comer com o arroz (furikake, made in Japan), foram as saborosas contribuições de Maritza à nossa refeição.
Limpei a louça enquanto nossa fotógrafa armava seu carregador solar portátil para recarregar seu equipamento. Não sabendo que contaria com tal tecnologia, deixei o meu notebook em casa e fazia todas minhas anotações por escrito, em um bloco de papel. Maritza me ofereceu seu computador, mas orgulhoso, declinei, fingindo que preferia escrever.

A tarde encontro Kumar e saímos para caminhar.
Eu lhe ensino o nome das coisas em português e ele me ensina em Parbatya*.
Sentamos em uma grande pedra onde ele assobia, e logo, surgido do nada, temos a companhia de seu mascote, o leopardo das neves. O felino deita aos pés do menino e pede carinho como qualquer gato doméstico. Arrisco um primeiro e leve afago e vejo que o grande bichano não me estranha mais. Estar ali naquela paisagem grandiosa, com o “menino pneu” e seu leopardo, mexem comigo e me trazem lágrimas aos olhos. Kumar me pergunta por que choro.
 - Paz...sinto muita paz aqui e tenho um grande dilema!!! Respondo sem precisar tentar traduzir e acaricio a cabeça do menino.
De dentro do casaco, tiro um de meus maiores tesouros e dou de presente a Kumar.
- Brazil!!! Football!! Grita o menino.
Era a camisa da seleção brasileira de futebol, campeã do mundo em 2002, com o autógrafo de Ronaldo, o Fenômeno.
- O-bri-go-do!!! Diz Kumar, extasiado.
- O-bri-ga-do. Corrijo.
- Ah!!! Obrigado!!! Repete o menino feliz.
Caminhamos por mais um tempo, com Kumar, já vestindo a camisa amarela, ensaiando  jogadas maravilhosas com uma bola imaginária. Dava dribles desconcertantes  em seu marcador implacável, o leopardo, e eu como se fizesse parte de uma torcida em um estádio lotado, vibrava e gritava olé.
Vejo ao longe Maritza com sua teleobjetiva, documentando aquele momento.
Até hoje essa foto é o papel de parede de meu notebook.

No dia seguinte Pradip, nosso guia, chega cedo a aldeia.
Temos que aproveitar a luz do sol, a viagem é longa.
Nos despedimos dos habitantes da aldeia com um profundo sentimento de gratidão, por essa experiência ímpar.
Ganhamos várias lembranças e Maritza leva como seu bem mais precioso, um grande saco de estopa, cheio da milagrosa folha “anti-chulé”, presente de Mama Tamushyo.
Na despedida Mama me aconselha:
- You’re a good man. Let your mind follow your heart.
Fico pasmo, como ela sabia do meu dilema???
Ashmi me da um abraço caloroso e um beijo no rosto.
- Gostou, hein??? Cutuca Maritza.
- Estou me sentindo o próprio Humphrey Bogart em Casablanca, respondo.
É hora de ir, subimos nos yaks para a partida.
Alguns aldeões vão até a entrada de “Pedra sobre as Nuvens” acenar, e
as crianças nos acompanham rolando por um trecho em ladeira.
Maritza com os olhos úmidos, não parava de tirar fotos.
Não vi Kumar, sinto sua falta, mas talvez ele não quisesse se despedir.

Uns dois kilometros adiante ouço o chamado de uma voz familiar.
Era Kumar e seu leopardo, em uma encosta lateral, sobre a nossa trilha.
Vestindo a camisa da Seleção Brasileira ele grita a plenos pulmões:
- Gooooool do Brasil!!!!!!!!
Emocionado, levanto o punho e soco o ar, comemorando com ele.
O eco de sua voz ressoa entre as montanhas. 

Não tinha mais dúvidas, ali tomei minha decisão.


Parbatya*: língua das montanhas do Nepal

O Gênio Da Grande Área


Diferente do volley ou basquete, onde a altura exerce uma real influência, o futebol é um esporte onde os baixinhos geniais ainda podem fazer a diferença. Um em especial, mudou a sorte do Brasil, na Copa de 1994. Aquele apelidado pelo craque holandês Johan Cruijff de “o gênio da grande área”: Romário.
Graças a teimosia da dupla Parreira e Zagallo, o “baixinho” vinha sendo excluído do grupo da seleção brasileira nas eliminatórias, por motivos disciplinares, e só foi convocado na última partida, contra o Uruguai, por pressão popular. O Brasil estava “mal das pernas”e corria o risco de ficar, pela primeira vez, fora de uma Copa do Mundo. Resultado: Brasil 2X0 Uruguai.  Estávamos classificados, com dois gols dele, Romário, ídolo e jogador do poderoso Barcelona da Espanha.
Aos vinte e quatro anos,  eu cursava o último ano da faculdade de Jornalismo na Cásper Líbero. Antes tinha cursado um ano e meio de Música, na ECA, da Universidade de São Paulo, mas desisti.
O aprendizado formal de música não me fascinou tanto, e na realidade, eu não era um músico tão talentoso como gostaria de ser. Estava decidido a ser um jornalista. Apesar de já escrever matérias pra revistas culturais, principalmente sobre música, ainda tinha a vontade de abordar o assunto esporte também.
Tinha perdido meu pai em um fulminante ataque do coração, em março de 1991. Meu pai era Palmeirense fanático, e graças a ele, desenvolvi uma grande paixão pelo esporte bretão. Só parou de me levar aos estádios, quando aos 14 anos, assumi minha opção de ser Corinthiano. Ficou uns seis meses, quase sem falar comigo. Comigo pouco falava, mas questionava minha mãe:
- Mas Beth, por que ele quer ser Corinthiano???
- Deixa o menino escolher o que quer Rafael.
- A família é toda italiana!!! Tem que torcer pro Palmeiras!!!
- A família é italiana, e você torce pelo Brasil!!! Retrucava minha mãe.
- Mas tinha que ser logo pelo Corinthians???
A Copa dos Estados Unidos, seria a primeira sem meu querido pai.
Apesar de sua participação em todas as Copas, o Brasil estava a cinco torneios mundiais sem vencer, ou seja, a última vitória tinha sido no México, em 1970, ano de meu nascimento. A essa altura já tinha deletado aquela história de  ser o “Amuleto da Sorte” da seleção, inventado por meu pai.
Apesar do azar como torcedor  da Seleção Brasileira, não podia me queixar da sorte quando o assunto era amor. Estava apaixonado por Larissa, com quem namorava há três meses. Alta, esguia, com cabelos castanhos claros e olhos mel, Larissa, neta de espanhóis, era uma mulher belíssima. Com uma postura altiva, quase pedante, pernas fortes, e gestos graciosos e precisos de muitos anos de ballet. “Lissa”, como eu a chamava, passava longe do esteriótipo “linda e burra”, era a melhor aluna da nossa turma de Jornalismo.
Marina, Anna, Isabella e Larissa. Eu já era Tetra e torcia para Brasil ser também.
Após o show na vitória contra o Uruguai, nas eliminatórias, a convocação de Romário se tornou obrigatória.
O Brasil, passou pela primeira fase da Copa, com duas vitórias e um empate: 2X0 na Rússia, 3X0 em Camarões e 1X1 com a Suécia. Romário, balançou a rede em todos os jogos.
Nos Estados Unidos, a seleção apresentou um futebol burocrático, cheio de preocupações defensivas e pouca criatividade, dependendo quase que exclusivamente dos lampejos geniais do ”baixinho”. A torcida brasileira estava cética, muitos times brasileiros “morreram na praia”, jogando um futebol bem melhor que o do time de Parreira.
Assistimos os jogos no mesmo grande sofá marrom de couro de outras Copas, eu sentado entre minhas mulheres, mamãe e Lissa. Na ponta esquerda, deixamos livre o lugar preferido de papai. Às vezes, esperava ouvir um comentário exaltado e irônico, mas a voz de meu pai não soava mais naquela sala. O que diria ele desse time sem encanto???
No dia 4 de julho, dia da Independência Americana, o Brasil enfrentou o time da casa pelas oitavas de final. Numa partida dura, com toda a torcida contra, disputando grande parte do jogo com um a menos, Leonardo, nosso lateral esquerdo, foi expulso após dar uma cotovelada no americano Tab Ramos, o Brasil vence: 1X0!!! Gol de Bebeto, com passe genial do “baixinho”, é claro.
Nas quartas de final um grande jogo contra a Holanda, com direito a quebra de um tabu de vinte anos sem vitória brasileira. Cinco gols, todos no segundo tempo. O Brasil saiu na frente com gols, dele, Romário, e  de Bebeto, com a sua comemoração “nana nenê”. A Holanda empatou com Bergkamp e Winter, e Branco fez o gol da vitória do Brasil, batendo falta, com uma fantástica tirada de bunda do caminho de Romário, que confundiu o goleiro holandês. Brasil 3x2 Holanda!!!
A semifinal nos aguardava.
Comecei a sentir o receio da sina futebolística de azarado das Copas, que me acompanhava por 24 anos, ou seja, por toda minha vida, com exceção do dia de meu nascimento, começasse a valer. Meio envergonhado em admitir tal superstição, conversei com Lissa a respeito. Contei a estória do “Amuleto da Sorte”, achei que ela fosse achar ridículo, mas sua reação me surpreendeu:
- Relaxe, eu acredito em você. Você só me trouxe sorte. É o meu “Amuleto da Sorte” e não vai dar azar pra ninguém!!! Seu pai sabia das coisas. Me abraçou forte e me deu um beijo cheio de paixão e confiança.
“Adoro essa mulher!!!” Pensei.
Na semifinal, nova partida contra a Suécia, de Thomas Brolin e do goleiro Ravelli. Jogo ainda mais difícil que o 1X1 anterior. O zero no placar se arrastou até os 35 minutos do segundo tempo quando aconteceu o gol salvador. De maneira inusitada, do alto de seus 1,69m, o gigante Romário decretou de cabeça, Brasil 1X0.
Estávamos na final!!!
E por ironia, nossa adversária, era novamente, a também tricampeã Itália, que tinha seu grande líder Franco Baresi de volta, após uma artroscopia no joelho, e  Roberto Baggio, seu craque maior, em uma forma esplendorosa.
O mundo conheceria seu primeiro Tetracampeão.
Como o futebol que o Brasil vinha jogando não convencia, a torcida era por um novo milagre de “São Romário”.
Para um jogo final de Copa do Mundo, a partida rolou morna, truncada, sem grandes emoções. As duas equipes se mostraram com excessivas preocupações defensivas.
O Brasil parecia um cavalo de raça querendo disparar, mas contido por um jockey pouco ousado, jockey de nome Carlos Alberto Parreira.
O zero não saiu do placar, nem no tempo normal, nem na prorrogação.
Pênaltis!!!
Pela primeira vez uma Copa do Mundo seria decidida nos pênaltis.
Senti um frio na espinha e a célebre frase “O pênalti é tão importante, que deveria ser batido pelo presidente do clube”, me veio a cabeça.* Mas o presidente do “clube” Brasil, em 1994, era Itamar Franco. Acho que não teria dado muito certo.
Baresi foi o primeiro a bater...pra fora!!!
Pagliuca defende a cobrança de Márcio Santos!!!
Albertini desloca Taffarel e marca!!!
A bola de Romário bate na trave... e entra!!!
Evani e Branco marcam!!!
Massaro bate e... “Vai que é sua Taffarel!!!”*
O Capitão Dunga marca e vibra muito!!!
Cabe ao grande craque italiano, Roberto Baggio, bater o pênalti decisivo...
Pra fora!!!
Dou um salto, quase bato a cabeça no teto e saio correndo pela sala.
Baggio perde o gol mais importante de sua vida, fato que ofuscaria o brilho de toda a sua grande carreira.
O Brasil é Tetracampeão!!! Sorte ou competência??? Importa???
Depois de 24 longos anos, voltávamos ao topo do Pódio.
Romário é eleito o craque da Copa. Com certeza, sorte do Brasil, contar com a competência do “baixinho”.
Abracei as duas mulheres de minha vida e gritei muito, exorcizando o azar!!!
Larissa me beijou e disse: - “Viu” como você deu sorte???
Eu não acreditava muito nisso, mas me livrar da sina de azarado era bom demais!!!
Com lágrimas nos olhos, fui ao terraço da casa, olhei para o céu, polvilhado de fogos de artifício e pensei:
“Esse título é pra você pai!!!”

*Bordão criado pelo locutor esportivo Galvão Bueno.
*Não se sabe ao certo de quem é a autoria da frase, que é atribuída a Nenê Prancha ou João Saldanha.

A Caverna dos Anciões (Nepal Capítulo 3)

Estava tudo muito escuro, mesmo tirando a venda dos olhos.
Não estava morto, mas não sabia direito onde estava.

Talvez não devesse ter sido tão curioso.
Quando perceberam que eu era um jornalista e estava ali para escrever sobre os segredos do “Povo Tatu Bola” e divulgar ao mundo, houve uma revolta dos aldeões.
A matriarca da aldeia ainda tentou intervir ao nosso favor, mas fizeram um julgamento sumário: culpados, eu e Maritza!!! Nos deram um chá de ervas, perdemos a consciência e quando acordamos, já estávamos de olhos vendados. Acho que nos fizeram caminhar por mais de cinco horas, uma caminhada lenta, subindo trilhas íngremes. O medo, o cansaço e muito frio faziam nossas pernas tremerem, aumentando a pressão e tornando a caminhada ainda mais perigosa. Será que iriam nos jogar do alto do Manaslu*, em algum desfiladeiro, onde nunca mais encontrariam nossos restos mortais??? Mil idéias passavam pela minha cabeça, nenhuma favorável a nós.
Pelos resmungos sabia que Maritza estava no grupo, mulher valente, ela xingava e reclamava, mas escondia o medo e não pedia clemência aos aldeões, que deviam ser mais uns quatro ou cinco, que nos cutucavam com bastões quando “empacávamos”, nos davam um chá energético e empurravam para seguirmos adiante.
Tentei conversar e negociar, disse que “deletaria” tudo que tinha escrito e pesquisado sobre eles, mas eu não falava Parbatiya*, só algumas poucas palavras, que aprendi ao longo da semana, e eles não queriam se comunicar comigo.
Exaustos, chegamos a um lugar muito alto, onde ventava bastante. Seria o fim???
Chamei Maritza e segurei firme a sua mão.
- Quando Pradip voltar, vocês vão assassiná-lo também??? Gritei desesperado, mas novamente fui ignorado.
Ouço conversas entre eles, barulho de pedra, rochas sendo movidas, empurradas, arrastadas.
De novo somos cutucados  com os bastões e nos fazem caminhar mais uns vinte e cinco passos.
O barulho do empurra-empurra de rochas se repete, as vozes vão ficando abafadas, até que se faz silêncio. Não há mais vento. O frio diminuiu sensivelmente.
Tiro a venda dos olhos, mas a escuridão permanece.
Chamo por Maritza e pela resposta vejo que ela está ao meu lado.
- É uma caverna??? Pergunto.
Acho que sim...ela responde.
Sem saber o que fazer, resmungo:
- Pensei que iam nos jogar do alto da montanha. Pelo menos estamos vi...
- Espera um pouquinho, ela interrompe.
 Ouço barulho de ziper e movimentação de roupas
- Pronto, espero que ainda tenha bateria, diz pegando sua inseparável câmera digital, que ficara guardada dentro de seu casaco.
Maritza consegue ligá-la, e pela luz do monitor de LCD, põe no modo com flash e começa a disparar a câmera.
Mas as revelações, não são das mais agradáveis.
- É uma caverna mesmo...mas o que é isso??? Digo assustado.
Mais alguns flashes e temos a certeza!!!
- São esqueletos!!! Grita Maritza aterrorizada.
- É um cemitério!!! Merda, nos enterraram vivos!!!
De repente, uma voz pequena e envelhecida, soa atrás de nós.
- É a caverna dos Anciões. Somos deixados aqui para fazer a passagem.
Instintivamente, Maritza vira a câmera na direção da voz e a dispara.
Pra nossa surpresa era a matriarca da aldeia. Ela estava de pé segurando todos os presentes que Maritza  tinha lhe dado. Ela tinha sido deixada pra morrer conosco.
- Mas por quê, Mama Tamushyo??? Perguntei eu.
- Eu deixei vocês ficarem na aldeia. Eu fui considerada uma traidora pelo meu povo. Acreditei em vocês...e vocês me traíram!!!
Nesse momento, a culpa não coube mais em mim e desesperado começo a gritar, batendo na grande pedra que tampa a saída da caverna:
- Não!!!! Não!!! Mama Tamushyo é inocente!!! Tirem a gente daqui!!! Eu não vou publicar nada!!! Eu prometo!!!
Acordo de sobressalto com um grito, suado e ofegante. Foi um pesadelo!!!

Maritza traz um chá e senta ao meu lado na cama.
- Tome, pra você se acalmar.
- Obrigado. Foi um pesadelo horrível!!!
- Deu pra notar, você gritou muito.
Conto o sonho para ela, com todos os detalhes que lembrava.
- Espero que isso não seja uma premonição, diz Maritza.
- Acho que tem a ver com o que tenho sentido, sabendo que vamos divulgar para o mundo, como vivem aqui na aldeia e o que isso pode vir a causar.
- Sabe que eu tenho pensado nisso também??? Diz demonstrando preocupação.
Tomo um gole de chá.
- É chá de que??? Pergunto.
- De folha anti-chulé!!! Responde Maritza rindo.
- Engraçadinha...
- Mentira bôbo, é chá de cogumelo de bosta de yak, relaxa e deixa você “viajandão”.
Dou risada junto com ela, mas retomo o assunto do pesadelo:
- Você sabe que no sonho, Mama Tamushyo falava português???
- Será que na verdade ela entende tudo que falamos??? Pergunta Maritza sorrindo.
Conversamos mais um pouco e ela acaba adormecendo ali mesmo com a cabeça apoiada em meu ombro.
Deito procurando uma posição mais confortável para os dois.
O contato com o corpo quente de Maritza aflora em mim o desejo, mas a lembrança de que ela tem um “affair”, com certeza de terceiro grau, com meu amigo Fabrício, evita que as coisas esquentem ainda mais.
Tento dormir, mas não consigo mais pregar os olhos até o amanhecer.


Manaslu*: é uma das dez montanhas mais altas do mundo. Seu nome significa “A Montanha do Espírito”.
Parbatya*: língua das montanhas do Nepal

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Felicidade

Felicidade nasceu no interior da Bahia, naquele vale, onde o ouro fez uma cidade,
Mas com o tempo o ouro acabou, a cidade definhou e muita gente foi embora.
A família aristocrata de Felicidade, ou Lis, como preferia ser chamada, tentou resistir a decadência e lá permaneceu.
O seu pai foi prefeito da cidade em diversas ocasiões.
Filha caçula, única menina e temporã, Lis cresceu entre árvores, o futebol dos meninos, plantações, o trilho do trem e a excessiva proteção familiar.  Pequena no tamanho, tinha bateria de carga dupla e uma vontade imensa de saber das coisas. Dizem que gostava mais das árvores e animais do que de gente. Vivia abraçada ao seu Gonçalo Alves, sua árvore predileta.
Seu único grande amigo era Emílio, com seus cabelos vermelhos cor de milho, ou “É mio” como o chamava Lis. Da caminhada matutina para a escola, até a hora do recolher, ao cair da tarde, os dois eram inseparáveis. Emílio era o filho mais velho do Seu Manuel Lisboa, dono da mercearia da cidade. A famílias de Lis e Emílio, por razões diversas, não eram muito a favor dessa convivência assídua. Os pais de Lis achavam que ela tinha que ter amigas, brincar com meninas, e não ter um amigo, tão amigo assim. Seu pai teimava, apesar da decadência, em manter um certa pompa de aristocrata e não era muito a favor dessa mistura classista.
Certa vez um irmão de Felicidade tentou intimidar Emílio tentando convencê-lo a ficar longe de sua irmã. No primeiro empurrão que ele deu no seu amigo, Lis pulou nas costas de seu irmão, deu tantos cascudos e puxou seu cabelo tão forte, que sobraram os tufos nas suas mãos. Ela e seu irmão ficaram semanas sem se falar.
Lis fugia sorrateiramente de sua casa para brincar, driblando a vigilância familiar e as tábuas rangentes de madeiras nobres, que cobriam o assoalho do casarão colonial da família Braga.
Roupa de menina só na missa de domingo pra não fazer desgosto a mãe.
Pouco antes da época do colégio, por decisão familiar, preocupados com os seus modos pouco femininos, resolveram mandar Lis para Salvador, a capital, estudar em um internato de freiras. Ela protestou o quanto pode, passou dois dias sem querer descer do Gonçalo Alves, mas de nada adiantou.
Na véspera de sua partida, na volta do jogo de futebol, Emílio a abraçou forte, sem querer soltar, mas tomou um senhor empurrão de Lis e caiu de bunda no chão.
-“É mio”, tá querendo me sufocar, é??? Eu só vou viajar, não vou morrer não, viu???!!!
Deu as costas para seu amigo e foi para casa, disfarçando as lágrimas, que teimavam em rolar pela sua face, ruborizada com o abraço inesperado. Um turbilhão descontrolado de emoções percorriam o seu ser.
E foi no trem que Lis foi embora. Emílio acompanhou a partida de sua Felicidade, correndo ao lado do do seu vagão enquanto aguentou. Ela acenava pela janela gritando:
- Eu vou voltar, “É mio”!!! Eu vou voltar!!!
Tentou engolir o choro que transbordava de seus olhos, para não ter uma atitude de “menininha” na frente da mãe, que a acompanhava, mas não aguentou e chorou muito. A mãe carinhosamente a abraçou.

Durante alguns anos Emílio pouco viu Lis. Ela só voltava para a cidade em datas especiais, ficava pouquíssimo tempo e muito bem vigiada pelos irmãos. Emílio rodeava a casa e subia em árvores próximas, só pra ter a chance de vê-la passando rapidamente por uma janela ou de ganhar um raro aceno.
Um dia, véspera de Natal, subindo no Gonçalo Alves de Lis, encontrou uma carta.
“Querido Emílio,
Como vai você? Espero que bem.
Gostaria muito de poder te encontrar e contar as novidades pessoalmente.
Consegui ir além da rejeição inicial que sentia e tenho gostado bastante das coisas que aprendo no internato. As aulas de literatura, biologia e línguas são as minhas preferidas.
Adoro também quando montamos as peças de teatro, mesmo que quase sempre, os temas sejam religiosos. Tem algumas freiras que são mais liberais e incentivam nossa criatividade. E é claro que as aulas de religião são um “saco”.
Fiz uma amiga, Amanda, ela é muito legal, temos gostos semelhantes, ela é mais tímida, mas adora as coisas que eu invento. As outras meninas são riquinhas enjoadas do “nariz empinado”.
Claro que sinto muita saudade de você e de nossas brincadeiras, mas sei que de alguma maneira o que aprendo no internato será útil no futuro.
Lembre-se, na minha ausência você é o guardião. Não deixe os “malas” invadirem nosso território.
Cuide bem de nossos esconderijos, nossas árvores, insetos, pássaros, peixes, da vaca Mimosa, nossas nuvens e nossos segredos. E cuide-se também.
Ah!!! Eu te perdôo pelo abraço. Desculpe o empurrão.
Sua sempre amiga,
Lis.”
Junto, encontrou um pequeno embrulho escrito “Feliz Natal”, dentro um potinho com balas de jenipapo, feitas por Rosenita, a cozinheira da casa de Lis. Emílio adorava essas balas. Pensou em guardá-las para sempre, mas não resistiu e comeu todas de uma vez.  Decidiu que guardá-las na memória era bem melhor

Quase dez anos depois, Emílio e sua esposa Geisa, cuidavam da Mercearia Lisboa, eles tinham uma menina, que acabara de completar um ano. Geisa, era de fora e tinha vindo morar na cidade para o casamento, arranjado pelas famílias. Por muito tempo, a lembrança de Felicidade, permanecera viva demais na memória de Emílio, foi muito difícil convencê-lo a casar com outra mulher, mas ele acabou cedendo para contentar o pai, que já estava muito doente.
Entre clientes que entravam e saíam do estabelecimento, Geisa, que arrumava as gôndolas, vem falar com o marido no caixa:
 -Tem uma moça na porta querendo falar com você.
- Quem é???
- Sei não...
Emílio se dirige à entrada do estabelecimento.
- Pois não, posso ajudar???
A mulher de cabelos castanhos, presos com uma caneta, 1,67m de altura, camiseta branca de alcinhas, sem soutien, bermuda cargo e tênis All Star sem meias, tira os óculos escuros e cumprimenta:
- Oi, "É mio"...
A voz soa familiar, ele toma um susto e seu coração dispara.
- Lis... é você,  Lis!!!
- Sou eu sim!!! Olha!!! Diz mostrando uma cicatriz na perna, adquirida nos tempos de “Batman e Robin” (Claro que Lis era “Batman”). - Como vai você??? Diz ela em um tom saudoso, muito carinhoso.
Com o coração saindo pela boca, ele responde.
- Eu... eu “tô” bem!!! Olha pra sua mulher, que mesmo sem chegar perto, não desgrudava o olhar deles, e diz: - Nós “tamo” bem...
- Que bom!!! É sua esposa?
- É...
- Me apresenta...
Meio tímido, ele caminha na direção de Geisa.
- Mulher, essa é Lis.
- A famosa Lis!!! Responde Geisa.
- Famosa? Indaga Felicidade.
- É,  por muito tempo ele só falava em você. Era Lis pra cá, Lis pra lá... Ultimamente, depois que a nenê nasceu, até tinha dado uma sossegada...
Havia uma certo despeito na fala de Geisa, mas a revelação deixara Emílio todo sem jeito
- E você é?
- Geisa, Geisa Lisboa!!! O sobrenome fora dito como forma de marcar território.
- Muito prazer Geisa! Responde amávelmente Lis.
Quebrando o silêncio que veio a seguir, ela comenta:
- Vocês deram uma modernizada aqui, no armazém, ficou bacana!!!
- É, a gente vai dando um jeitinho aos poucos. Responde Emílio.
- Fiquei sabendo de seu pai. Sinto muito...  Diz Lis se referindo a morte de Seu Manuel, que ocorrera há cerca de dois anos.
- Obrigado...
Vendo que Geisa não se sentia confortável com sua presença, Lis se despede:
- Bom, eu já vou indo... Bom te conhecer Geisa.
Emílio acompanha Lis até a calçada na entrada do armazém.
- Você faz o que Lis?
- Faz como?
- De trabalho.
- Eu trabalho em uma ONG, um centro de reeducacão ambiental, sou Bióloga Ecologista...
- Ecologista?
- É, ajudo a preservar o meio ambiente,  para que as coisas que a gente tanto gosta não desapareçam.
- Eu sei o que é...legal!!! Diz Emílio sorrindo.
- Pensando bem, tem tudo a ver com você, Lis. Ah!!! Seu Gonçalo Alves continua firme e forte!!!
- Com certeza!!! Esse vai viver muito mais que a gente.
Um Jeep sem capota, daqueles antigos, conduzido por uma motorista, estaciona na frente deles.
- Bom, você se cuida, viu?  Diz Lis abraçando Emílio com força e emenda:
- Para de olhar os meus peitos, sem vergonha... e não me empurra não!!!
Os dois caem na gargalhada.
Lis se despede e sobe no carro.
- Lis, eu tenho uma filhinha. Você sabe que ela também se chama Felicidade??? Revela Emílio.
Por alguns instantes Lis fica muda, em um ímpeto desce do Jeep e abraça de novo seu velho amigo.
- Obrigada!!! Cochicha em seu ouvido, entre as lágrimas que não conseguia conter. - Você vai morar sempre no meu coração... Vai ser sempre meu “É mio”!!!
Enxuga as lágrimas no avental de Emílio e sobe de novo no carro.
- Ah, essa é Amanda!!! Diz apresentando a motorista, que acena. - Aquela mesma das freiras, lembra? Reencontrei ela há uns dois anos... É minha namorada. Se cuida, “viu”??? Beijos.
O carro vai embora deixando um Emílio boquiaberto para trás.
Geisa se aproxima resmungando:
- Precisava ter abraçado??? E duas vezes ainda...
Emílio prefere nem responder.
Assim era Felicidade, ou Lis, diferente, sempre surpreendente.
Essa foi a última vez que os dois se encontraram.

sábado, 17 de novembro de 2012

Manu e Big Eddie ou "Who's Bad???"

Em um ponto de ônibus da Av. Otávio Mangabeira, perto do Nordeste de Amaralina, no calor intenso de uma ensolarada tarde Soteropolitana, Manoela, ou Manu como ela preferia, esperava seu demorado ônibus passar. Ela e meia dúzia de usuários, do mal cuidado transporte público da cidade de Salvador.
Manu, era de um branco quase pálido, tinha um rosto bonito, com olhos expressivos, era alta, com quadris largos, mas pouco volumosos, as pernas muito longas, quase desproporcionais, mas o que a incomodava mesmo eram os seus pés, tamanho 41. Ela definitivamente, não gostava de seus pés e menos ainda, da dificuldade de achar sapatos de seu número.
Uma senhora ao seu lado reclamava sem parar, para quem quisesse, e principalmente, para quem não quisesse ouvir, do calor, da demora do ônibus, do descaso das autoridades com a população, da falta de segurança, das promessas não cumpridas dos políticos em época de eleições, que as obras eram só em bairro de "bacanas"... Aliás, reclamava de tudo. E o desagradável monólogo ressentido da senhora, aumentava muito o desconforto causado pelo calor.
“Que chata, cala essa boca!!!” Pensou consigo Manoela, que tinha conseguido a tarde livre no escritório de contabilidade, onde trabalhava, para compensar as horas extras do serão do último sábado. O seu estilo meio “hiponga” não combinava muito com o seu formal ambiente de trabalho, mas a sua eficiência, dedicação e iniciativa, tinham vencido qualquer resistência e contras que existiram no princípio de sua contratação.
- Ressentimento é como “tomá” veneno e “esperá” que o outro morra...Sussurra uma voz masculina perto de seu ouvido.
Quando Manu se vira encontra um homem branco, queimado de sol, nem alto, nem baixo, óculos escuros e um ralo bigode meio “cafa”.
- Ai!!! Que susto você me deu!!! Diz ela arrumando o cabelo.
- Perdão mocinha, não foi minha intenção...
- Ah!!! Tá tudo bem...Manoela esboça um sorriso, tentando ser simpática.
- Que bom... pois eu quero que “ocê” aja o mais “naturar” possível...
- Como assim???
O sujeito pressiona fortemente a mão direita, coberta por um jornal dobrado, contra a sua barriga.
- Ai!!! O que é isso??? Manu, com sua curiosidade meio sem noção, levanta a ponta do jornal.
- Uma arma???
- Quieta!!! É uma arma sim!!! E faz o que eu mandar pra não machucar ”ocê”!!!
- Ui moço!!! Você gosta de machucar??? Diz Manoela com um leve tom de insinuação maliciosa.
Inesperadamente, o assaltante tira os óculos escuros e abaixa o olhar.
- Na verdade, não... Diz mudando de tom. - É mais pela necessidade mesmo. Não gosto de “machucá” ninguém não... Se não ”tivesse” desempregado a tanto tempo... quase dois “ano... Minha mulher me “deixô” e “vortô” pro “interiô” com os “fios... Só roubo porque preciso mesmo, pra "podê" manda um dinheiro "pá famíia".
- Oh “bichinho”, eu te entendo, não fica assim não...Diz Manoela compreensiva. Mas vendo que o assaltante “murchou”, ela cutuca provocando:
- Mas isso é um assalto ou uma sessão de terapia???
- Um “assarto”!!! Diz o sujeito em voz alta, colocando de volta os óculos, como se estivesse se recobrando de um transe.
Nesse momento, a senhora “reclamona”, percebe o que está ocorrendo e começa a gritar:
- É um assalto!!! Socorro!!! Polícia!!!
A senhora avança contra o ladrão e começa a agredí-lo com “bolsadas” e tapas, isso incentiva os outros, que estavam no ponto a quererem participar. O homem agredido fica sem ação. Parece o prenúncio de um linchamento.
Temendo pela integridade física do meliante, Manoela toma a arma de sua mão e ameaça os agressores: - Para trás!!! Todos!!!
- Mas moça, esse cara ‘tava” te assaltando...Diz um deles
- Não quero saber!!! Ninguém vai bater em ninguém aqui!!!
De repente a senhora toma a frente dos outros:
- Escuta aqui sua vira casaca, eu sei que vc não vai atirar em ninguém e sai da frente se não quiser apanhar junto!!!
Ela avança ameaçadora na direção de Manu, que instintivamente atira para o alto, abrindo um rombo na cobertura do ponto de ônibus.
A debandada é geral, o pavor toma conta dos agressores, que fogem para todos os lados.
Nesse momento ela devolve o revólver para o ladrão, acena para um ônibus que passava por ali e embarca nele, quase “arrastando” consigo o assaltante. Em tempo, ainda mostra a língua para a senhora agressora, antes do ônibus fechar a porta e partir.
- O que aconteceu ali??? Pergunta o cobrador.
- Ou foi um tiro ou aquela senhora soltou um peido tão forte, que todo o mundo fugiu!!! Conta Manoela, dando uma sonora gargalhada.
- Eu pago a dele, diz indicando o assaltante, que agora todo constrangido, tentava esconder o revólver sob o jornal.
Passaram pela catraca e sentaram num banco mais ao fundo, meio escondidos.
- Pronto!!! Acho que agora estamos seguros. Passa isso pra cá, que vou guardar pra não “dar bandeira”. Diz guardando a arma na bolsa. - Ah!!! E tira esse óculos escuros, que vou guardar também... Nossa!!! Você tem olhos lindos!!!
Meio em choque, o ladrão não protesta e faz o que ela manda.
- Para onde "tamo" indo??? Ele pergunta.
- Onde??? Sei lá!!! Isso importa??? Eu queria é tirar a gente de lá!!!
Mas vendo a cara de preocupação dele, ela conta sorrindo:
- Fica tranquilo, esse ônibus passa lá perto de casa. Sempre pego ele. Conheço toda a turma. Ela chama o cobrador e acena para ele, que responde: - Diga Manu!!!
- Viu??? A propósito meu nome é Manoela, mas pode me chamar de Manu, e o seu???
- E..Edi...Edmirso...
Manu aperta a “mão de morto” do assaltante com firmeza e um sorriso enigmático:
- Muito prazer Edmilson, muito prazer!!!
- “Prazê”... Responde o homem sem muita convicção.
Algumas paradas adiante o homem se levanta e faz menção de descer:
- Obrigado pela “passage”, mas eu vou ficando por aqui...
- Fica nada!!! Diz Manoela puxando o de volta para o assento e cochichando em seu ouvido: - A essa hora já avisaram a polícia!!! É melhor a gente ir lá para casa e dar um tempinho. “Ficar na moita” até as coisas esfriarem.
- É longe??? Pergunta ele.
- Que nada...pertinho!!!
- Então tá bom... Diz Edimilson, sem muita escolha.

Setenta e três minutos depois, eles finalmente desembarcam do ônibus, no “pé” de um morro, nas proximidades do estádio do Barradão, na periferia da cidade.
- Estamos quase lá, diz Manu.
- Lá onde??? Feira de Santana??? Ironiza Edmilson.
- “Oxe”, que exagero... Já “tamo” chegando!!!
A casa de Manoela ficava em um conjunto habitacional, construído pelo governo do Estado, sobre a íngreme encosta de um morro, há umas quatro gestões passadas e já carecia de algumas reformas.
- É lá em cima, indica Manu, apontando para o topo do morro.
O assaltante olha pra direção indicada, para o céu e respira fundo.

Edmilson sobe ofegante "trocentos" degraus morro acima, tentando acompanhar as passadas largas e ligeiras das longas pernas de Manu, que facilmente driblava os degraus rachados ou soltos. As crianças das pequenas casas geminadas davam risada e caçoavam da cômica situação.
No topo do morro:
- Pronto, chegamos, essa é minha casinha!!! Diz ela abrindo a porta.
Ainda tentando recuperar o fôlego ele entra cabisbaixo na casa.
Manu acende a luz, Edmilson ergue o olhar...e toma o maior susto!!!
O pequeno quarto e sala de Manoela era todo decorado com instrumentos e objetos de submissão sado-masô!!! Correntes e cordas de “bondage” penduradas no teto, cama com algemas, fotos de homens nus nas paredes, prateleiras cheias de anéis penianos, vibradores, “consolos” de todos os tamanhos, entre muitos outros brinquedos do gênero. Destaque especial para o sapato preto, de salto alto finíssimo, biqueira de metal, número 41, extra-grande, que com certeza foi feito sob medida.
- Bem-vindo “Big Eddie”!!! Diz uma Manu dominadora, com um chicotinho na mão.
Antes sem fôlego, agora Edmilson estava sem palavras.

Manoela vestindo um apertado corpete de couro preto, que levantava seus belos seios, sustentado-os de uma forma alta e agressiva, e com uma calcinha, também preta, estilo “fio dental”, fuma um cigarro deitada na cama, visivelmente aborrecida com a situação. Na beira da cama, o “Big Eddie”, sentado, nu, com um travesseiro entre as pernas, todo intimidado, retraído, "little", envergonhado, sem conseguir participar das fantasias de Manu.
De repente ela se levanta dizendo: - Já sei!!! Espera aí!!!
Vai pra cozinha onde bate no liquidificador uma mistura de Catuaba, ovos de codorna, amendoim, chocolate em pó, gengibre, e até Viagra entre outros afrodisíacos.
Com o copo do “coquetel do amor” na mão, ela volta para o quarto.
O copo de vidro se espatifa no chão.
Edmilson sumiu!!!
Esquecendo o traje que veste, ela vai atrás do fugitivo.
Ela o avista “despencando” escadaria abaixo, só de calça, com a camisa e os sapatos na mão.
- Volta aqui seu filho da puta!!! Seu “brocha”!!! Você ainda não terminou seu serviço!!!
Grita Manu raivosa.
Sem olhar pra trás, Edimilson corre ainda mais rápido quando ouve a voz de Manoela, quase tropeçando nos degraus.
As crianças dão gargalhadas e se deleitam com a visão de Manu seminua, aos gritos, no topo da escadaria.

Em um ponto de ônibus da Av. Otávio Mangabeira, perto do Nordeste de Amaralina, no calor intenso de uma ensolarada tarde Soteropolitana, Edmilson, ou Eddie como ele não gostava de ser chamado, esperava seu demorado ônibus passar. Ele e meia dúzia de usuários do mal cuidado transporte público da cidade de Salvador. Mas Edmilson estava feliz, tinha finalmente conseguido um emprego: Repositor de Supermercado.
- Ressentimento é como tomar veneno e esperar que o outro morra... Sussurra uma voz feminina perto do seu ouvido.
Quando ele se vira encontra uma mulher branca, mais branca que ele, alta, de óculos escuros, pernas muito longas e pés tamanho 41.
- Manu!!! Diz ele surpreso.
- Shhh!!! Quieto “Big Eddie”!!! Eu quero que você aja naturalmente!!!
Edmilson sente um frio na espinha ao ouvir aquele apelido.
- Meus "óculo"!!!
- Não só os óculos, lembra??? Diz Manuela, forçando sua mão direita coberta por uma revista contra as costelas dele.
- Minha arma!!! Mas o que "ocê" quer??? Eu mudei de vida!!! Eu arrumei um emprego...
- Que bom!! Então você paga a Catuaba, o Viagra e o ônibus. E “bora” lá pra casa que a gente tem um “servicinho” pra terminar.

sábado, 13 de outubro de 2012

Ou Não???

Uma noite dessas, entre taças de vinho branco e um risoto de camarão, feito por mim, a conversa leve de um primeiro encontro, acabou convergindo para um dilema existencialista.
Com a adição de álcool, a minha “companheira” perdeu a timidez e desandou a falar, a falar muito...
“Sabe, não consigo lembrar quase nada de minha primeira infância...
A única foto que existe dessa época é com uns 3 ou 4 anos, indo para a escola, com uma tia minha, mas a foto é velha e borrada, nem dá para saber se sou eu de verdade. Fotos minhas bebê, com minha mãe ou meu pai, nem pensar!!! Todos os meus irmãos têm fotos... Aliás, minha primeira lembrança real, com meus irmãos, muitos irmãos, não é muito agradável, eles me chamavam e me colocavam sentada no centro do círculo, aí iniciavam um verdadeiro bombardeio, tortura psicológica, dizendo que eu era adotada, achada na lata do lixo, trocada na maternidade, até eu cair no choro. Eles faziam também um coral com direito a musiquinha “aterrorizante”. Eu devia ter, no máximo, uns 4 anos nessa época.
O chefe dessas sessões de “bullyng” era meu irmão Dinho, que pensando bem, em nada se parece comigo, moreno, baixo, de nariz e orelhas grandes, parece um gnomo dos trópicos. Eu sou mais clara, dos olhos verdes...
Quem sempre me protegia nessas situações era minha querida e saudosa avó, que me colocava sob sua asa e andava comigo pra cima e para baixo, e ai de quem mexesse comigo!!! “Não ligue não, é porque você é bonita do cabelo liso”, dizia ela. Será que ela sabia de algum segredo sobre a minha origem??? Ou era somente uma predileção natural pela mais fraca??? Mas por quê eu era tão diferente dos outros???
Minha mãe sempre desconversava e ficava nervosa quando eu perguntava algo a respeito. Meu pai ensaiou, certa vez, me chamar pra conversar, mas repreendido por minha mãe, desistiu e na hora “H”, me abraçou e encheu de beijos, sem falar nada.
Será que a minha ansiedade e insatisfação permanentes, tem algo a ver com isso???
Enfim, hoje, apesar de me sentir um membro real da família, querida por todos, às vezes me questiono, se em algum lugar, em alguma família, não existe outra mulher com a cara de Dinho, pensando que sou eu, enquanto eu aqui ocupo o seu lugar... ”
Depois da longa e detalhada narrativa, muitas vezes repetindo trechos e se emocionando a cada repetição, ela sentiu muito sono e acabou dormindo no sofá.
Foi frustrante, para quem esperava um "affair" romântico. Mas apesar da forte influência etílica, esse relato, não muito adequado para um primeiro encontro, pareceu conter grandes doses de verdade... Ou não???



PS: baseado em um relato real...ou não.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Na Bahia tem Precedente (Só se vê na Bahia)

Boiando em um mar sem ondas, com os olhos fechados, Taís queria sentir-se como uma oferenda à Iemanjá. Deixava-se levar pelas águas, em busca da comunhão perfeita.
Naquele dia, aquele trecho da praia em Salvador encontrava-se surpreendentemente deserto, com poucos frequentadores.
Taís passava por uma daquelas crises de final de adolescência, na qual sentia a necessidade de dar um significado dramático e idiossincrático para todas as suas atitudes. A frustração pelo insucesso recente no vestibular, também somava nesse processo. Ela tentava se afastar do mundo dos adultos, de todos eles, com exceção de sua querida e compreensiva avó. Sua avó, que nesse momento estava na praia, deitada em uma espreguiçadeira, também de olhos fechados, ouvindo Maria Bethânia no MP3 de Taís a cantar: "Quando o mar tem mais segredos, é quando é calmaria..." E foi surpreendida pela figura morena de um rapaz, que agachando ao seu lado, cochichou algo em seu ouvido.
A vovó reagiu de sobressalto: - Oxiii!!! Que susto moço! Disse, tirando o fone de ouvido. - Eu nem vi você se aproximando!!!
O rapaz retribuiu com um leve sorriso sem graça.
- E aí, continuou a senhora, você está vendendo o quê??? É de comer???
- Não faça escândalo, sussurrou o rapaz, isso é um assalto!!!
- É um assa...??? Tentou repetir a vovó, quando foi cutucada, na lateral das costelas, por um objeto pontiagudo, coberto por um pano.
- Quieta e ninguém se machuca vovó!!! Interrompeu o rapaz.
O pavor, evidente, surgiu nos olhos da velhinha, mas ninguém estava perto o suficiente para entender o que se passava e oferecer socorro.
- Mas o que é que você quer de mim moço???
Oferecendo um cesto de palha, parte de seu disfarce de vendedor, ele disse:
- Fala baixo vovó!!! Coloca o dinheiro e o que mais tiver de valor, aí dentro do cesto.
Respirando forte, fazendo hiperventilação para tentar manter a calma, ela respondeu:
- Olha moço, vou te dar o dinheiro, o “radinho” é de minha neta, não posso te dar, viu???
Nesse momento, Taís, levada pela corrente marítima, percebeu que se afastou muito da praia. Tentou nadar de volta, mas não conseguiu. O pavor tomava conta de seu corpo e paralisava seus músculos. E, já desesperada, gritando por socorro, começou a engolir água salgada.
Da praia a avó ouviu os gritos da neta e deixando o ladrão falando só, correu para a beira d’água.
- Socorro gente!!! Alguém ajude minha neta, pelo amor de Deus!!! Suplicava a velhinha, vendo ao longe os braços e a cabeça de Taís, que agora resistindo ferreamente a ideia de se tornar um presente da Rainha do Mar, debatia-se tentando não afundar.
Desesperada, sem ninguém para socorrer sua neta, a senhora caiu em prantos:
- Deus, por favor, salva minha neta!!! Por favor, salva a minha netinha!!!
Nesse momento, com os olhos cheios de lágrimas, sentiu um vulto, que passou por ela como um raio e se lançou ao mar.
“Graças a Deus, uma alma caridosa!!!” Agradeceu a vovó.
Ao ver aquele homem nadando com braçadas fortes, na direção de sua neta, a velhinha caiu de joelhos e começou rezar. Não se sabe por quanto tempo permaneceu assim, mas pareceu uma eternidade em “slow motion”. Ao se dar conta, o homem já havia conseguido trazer Taís para águas mais rasas e outras pessoas caiam na água para ajudar.
- Aleluia!!! Glória a Deus!! ! Louvado seja o Senhor!!! Gritava a senhora.
Quando finalmente, conseguiram conduzir Taís até perto da praia, ela correu para abraçá-la chorando.
- Deus misericordioso!!! Eu pensei que ia perder você, minha filha!!!
Taís já sentada na areia tossia convulsivamente, tentando expelir a grande quantidade de água que engolira. Ela foi cercada, repentinamente, por vários curiosos e palpiteiros de plantão, daqueles que dizem: faça assim, faça assado, surgidos não se sabe da onde.
Ainda com os olhos marejados e as mãos trêmulas, a avó procurou pelo herói salvador, querendo agradecer: - Cadê o rapaz que salvou minha neta???
- Ele foi pra lá!!! - Indicou um dos banhistas que ajudou no resgate.
Ao longe, a avó viu a figura do herói que se afastava apressadamente. Era a figura de um rapaz moreno com sua cesta de palha na mão!!!

Mais tarde, debruçada na janela da casa de praia da família, com um misto de medo e culpa, Taís observava o mar, o mar que quase a levou. Na verdade, ela sabia que a ideia idiota de se tornar uma oferenda foi dela, o mar só havia aceitado.
Sua avó lhe contara como Deus enviara um anjo, na forma de um ladrão, para salvá-la.
Ela ainda tossia um pouco e sentia a sua garganta ressecada pela água salgada.
De repente... é ele!!! O salvador de Taís!!! Ele passava como um raio pela praia, carregando uma mochila. Atrás dele um casal de turistas vinha em sua perseguição, gritando palavras que Taís não entendia, mas compreendia. Instintivamente ela passou a torcer pelo sucesso de seu herói.
Seu herói bandido.


PS: ”Pense em um absurdo, na Bahia tem precedente.” Frase de Otávio Mangabeira, ex-governador da Bahia.
Baseado em fatos reais.

terça-feira, 5 de junho de 2012

O Substituto

- Foi você, Paulo??? Disse incrédulo Ricardo Estrrela. - Mas por quê, por quê???
Sentado em uma confortável e suntuosa poltrona, com uma xícara de chá na mão esquerda, Paulo Tiago paira seu olhar sobre o Tâmisa, através dos janelões inteiriços de vidro de seu espaçoso escritório.
Lentamente toma seu chá orgânico, sem creme e sem açúcar refinado, e seu olhar parece viajar para muito além daquela paisagem de outono.
- Eu tenho muitas respostas, Rico, mas nenhuma delas me convence plenamente, nenhuma...
- Paulo, nós fomos como...irmãos!!! Enfrentamos todas as barras juntos. Brigamos muito, mas nos divertimos muito também!!! Fomos a maior banda do mundo, aliás, ainda somos... E você...
- Rico, eu amava JW...ainda amo. Entendia a raiva dele. Claro, passamos momentos difíceis também. Mas acho que a banda podia ter dado muito mais. A gente ainda tinha a química. Se JW acreditasse nisso e não tivesse nos trocado por aquela japonesa maluca... Artista plástica de merda!!! Nunca vi nada de bom na arte dela!!! Primeiro quis que ela entrasse na banda...
- Mas aí fomos todos contra!!!
- Mas ele achava que era o dono da banda... E ela não sabia cantar nem tocar nada!!! Depois, se ela não podia entrar na banda, ele também não queria ficar. Pô, isso foi traição, uma facada! Um desrespeito a tudo que passamos juntos. Eu sei o quanto ralei pra conseguir o meu lugar.
- Mas aí, você pra ficar por cima, anunciou que estava saindo da banda antes dele. E o trato era esperar o lançamento do disco. Ninguém podia falar do fim da banda até lá.
- Eu sei, Rico, eu sei...eu estava com o orgulho ferido. Puto da vida!!! E queria muito sacanear o JW.
- Mas aí me sacaneou, sacaneou o Jorginho e sacaneou todo mundo também!!
Paulo Tiago faz silêncio, toma um último gole de chá e descansa a sua xícara sobre a mesa de centro.
- É, Rico, faz tanto tempo... e parece que foi ontem.
Levanta e vai em direção a um quadro na parede com um portrait de sua mulher, Bella, que perdeu a batalha contra o câncer há alguns anos. Retira cuidadosamente o quadro e o apoia no chão cantarolando:  ”But it ain't me, babe. No, no, no, it ain't me, babe. It ain't me you're lookin' for...”*
Parecia clichê de algum filme policial, mas atrás do quadro, realmente, havia um cofre. Colocando os óculos, como o senhor octagenário que escondia ser, Paulo começa a digitar a combinação secreta do cofre, recitando os números em voz alta, sem se importar com a presença de Rico.
- 06, 18, 19, 42...
“Quem colocaria a data de seu aniversário como parte da combinação secreta de seu cofre??? Só um grande idiota ou alguém com o ego monstruoso, como Paulo.” Pensou Ricardo Estrrela.
- Você já teve dificuldade em memorizar a data de seu nascimento Rico??? Perguntou Paulo, como se lesse pensamentos.
O cofre se abre, Paulo Tiago tira de lá um maço de papel manuscrito.
- O que é isso??? Indagou Rico.
- Um manuscrito autobiográfico... e Cartas de Marcos Davi, o assassino de JW!!! Responde calmamente Paulo.
Pasmo, Rico perde a voz por instantes.
- Até hoje ele manda cartas da prisão. Claro que para outro endereço e para um pseudônimo.
- Mas por que, Paulo??? Por que esse sujeito se corresponde com você???
- Você sabe que quando ele assassinou JW, tinha um livro nas mãos...
- “O apanhador no campo de centeio”.*
- Isso... fui eu que mandei esse livro para ele, Rico. O livro fala de um jovem americano, seus anseios, sua falta de perspectiva, da necessidade de ter algo em que acreditar, algo que valha a pena...
Rico sente seu estômago embrulhar, conhece Paulo Tiago há muito e sabe o quão manipulador ele pode ser.
- Conheci Marcos Davi quando visitava o MOMA, em Nova Iorque - continuou Paulo. De repente o cara apareceu na minha frente e disse: “Odeio o que JW fez com você e a banda. Ele merecia morrer.” Tomei um susto, ele tinha um olhar de maluco. Me afastei rapidamente, mas vi que ele continuava me seguindo. Bella queria chamar os seguranças, foi quando tive uma ideia e mandei entregar meu cartão pra ele.
O ambiente se tornara pesado demais e Rico, um eterno ex-alcoólatra, corre até a bandeja de bebidas, enche um copo de scotch cowboy, desaba em uma poltrona e vira a bebida em um só gole.
- Você é maquiavélico, Paulo!!! Diz, recuperando o fôlego.
- Nos cinco anos que JW ficou recluso, cuidando do filho, ele escreveu essa autobiografia, que pretendia publicar. Claro que ele deu um jeito para que eu ficasse sabendo disso. Uma autobiografia com muita coisa que não gostaríamos de lembrar e muito menos que o público e os tablóides tomassem conhecimento. Pedi a JW, aliás, implorei, ofereci milhões...e nada. Fingi uma viagem de lazer com Bella e me mandei pra Nova Iorque, achei que cara a cara a gente ainda podia se entender, mas não aconteceu... ele não quis nem me receber. Aliás, ele nunca me aceitou como um igual.
Rico nota que a mágoa em Paulo ainda existia.
- Aí, encontrei Marcos no museu... convencê-lo que JW destruiu a banda e que agora queria destruir a sua memória não foi das coisas mais difíceis. O livro foi só pra dar um ar mais idealista e justificar...
- Que você era o mocinho e JW o bandido... Paulo, você é um monstro!!! Que nojo!!! Rico levanta e enche o copo novamente.
- Rico, eu não queria matar o cara, eu juro, eu só queria que ele parasse. Mas eu precisava me proteger, precisava nos proteger. Era pra ser só um susto...mas o Marcos se apavorou, perdeu o controle. Eu já estava mal e fiquei muito pior. Até hoje me sinto mal, gostaria que tivesse sido diferente. Aí, arrumar um gatuno pra invadir o prédio e roubar o manuscrito, foi fácil. Eu tinha família, filhos pequenos... Bella nunca soube.
- O que tem de tão ”bombástico” aí??? Interrompe Rico, apontando o manuscrito.
Paulo suspira lentamente e procura uma folha no manuscrito.
- Isso, por exemplo...
Rico ajeita os óculos e lê atentamente. De repente solta uma sonora gargalhada:
- Hahhahaha!!!! Foi por isso, Paulo??? Foi por isso??? Não acredito!!! A página que acabara de ler era a descrição minuciosa de uma orgia gay/hetero da qual Paulo e JW participaram ativamente, promovida por BE, empresário da banda na época.
- Você matou JW para o mundo não saber que você já transou com outro cara???
- Éramos jovens, Rico, loucos e inconsequentes. A fama e a grana nos faziam achar que podíamos fazer qualquer coisa.
- Vá se foder, Paulo!!! A gente adorava extrapolar... Hahhahaha!!! Rico não conseguia parar o riso histérico, - Noventa e nove por cento dos “rockstars” daquela época fizeram surubas com homens e mulheres e você matou seu melhor amigo por causa disso??? Quem sabe aparece um velhinho dizendo que já te comeu, Paulo Tiago??? Finalizou, irônico.
- Não Rico, foi porque... eu não fiz nada disso!!! Diz Paulo, oferecendo lhe outras folhas.
Rico empalideceu com a resposta de Paulo.

Folhas de papel e papel picado bóiam sobre o Tâmisa.
Num surto de raiva, Rico rasgou aquelas folhas que explicavam o motivo do assassinato de JW, e jogou junto com todas as outras do manuscrito por um dos janelões do escritório de Paulo Tiago.
- Eu nem lembrava mais!!! Juro que nem lembrava dos detalhes...E não queria lembrar mais!!! Como você pode, JW??? Repetia Rico, ofegante.
Aquelas folhas explicavam em detalhes o processo de... Substituição!!!
Os anos em que a banda parou com os shows ao vivo. Alegaram desentendimentos com os críticos e insatisfação com as suas performances no palco, mas na realidade um de seus membros fundadores e fundamentais morreu em um acidente automobilístico, após ingerir grande quantidade de álcool e drogas.
A barra pesou!!! Será que os críticos aceitariam outro baixista??? Será que as fãs aceitariam a ausência do seu membro mais “bonitinho”??? Como seguir sem alguém tão determinante no estilo e nas composições da banda??? Temiam pelo fim da grupo, as finanças não andavam boas e nenhum deles, exceto JW, tinha segurança para se lançar em uma carreira solo.
Por sorte conseguiram encobrir a tragédia da imprensa e do grande público.
Foi quando um roadie encontrou na Escócia um quase sósia, por sorte ambidestro, tres anos mais novo e com o timbre de voz parecido com o falecido companheiro. Ele foi treinado intensamente por quase dois anos. Aulas de baixo, violão e canto, inflexão de voz, sotaque... A barba foi usada por longo tempo para disfarçar as cicatrizes das operações plásticas. Normalmente não usava sapato nas fotos, por ser um pouco mais alto que o original. A foto com o cigarro na mão direita foi um pequeno deslize.
Enquanto o novato se preparava, JW e Jorginho faziam as linhas do baixo nas gravações e usavam também a voz de material já gravado pelo finado amigo. Um filme em desenho animado e sua trilha cheia de orquestrações também ajudou a ganhar tempo.
A banda adotou uma estratégia singular para combater as suspeitas e os boatos crescentes sobre a morte do companheiro. Em vez de negar, ajudavam a espalhar a boataria, fazendo tudo soar como uma brincadeira jocosa, uma jogada de marketing.
Bella já conhecera o sósia fazendo o papel do finado, quando se apaixonou e casou com ele. Pra ela, ele sempre foi o original.
Mas, apesar da atitude amistosa da maioria, inclusive de Rico e Jorginho, JW nunca aceitou a substituição do antigo e amado parceiro. Após os porres etílicos, comumente o chamava de farsante sem talento e tentava agredi-lo, inclusive fisicamente. Na época JW escreveu : “Eu não acredito na banda. Só acredito em mim. Essa é a realidade. O sonho acabou.” Esse foi o verdadeiro início do fim.
Mas mesmo com o fim da banda o substituto se saiu bem, demonstrou talento e desenvoltura pra continuar vivendo a vida alheia, até que dez anos depois JW resolvera ressuscitar o morto e trazer à tona a verdade.

Sentindo o vento frio no rosto, Paulo olhava para aquelas folhas que há muito queria se livrar e não tivera coragem, boiando e se espalhando pelo Tâmisa. Aquelas folhas antigas e manuscritas, com a tinta borrada pela água, onde algumas começavam a afundar. Provavelmente o rio esconderia seu segredo para sempre, finalmente, ele poderia ser só o grande Paulo Tiago.
- Paulo, talvez você receba uma grande multa por poluição ambiental. Diz Rico
- Mando pra você pagar, Ricardo Estrrela, retrucou Paulo.
- Fifty& fifty??? Propõe Rico com um brinde de scotch.

* "But it ain't me, babe, no, no, no, it ain't me, babe. It ain't me you're lookin' for, babe*: da canção "It Ain't Me Babe" de Bob Dylan.
“O apanhador no campo de centeio”.*: romance do escritor americano J.D.Salinger

segunda-feira, 26 de março de 2012

Cenas de um Carnaval Olindense

A voz de Lenine ecoava pelo carnaval: ”Quanta ladeira, Olinda, quanta ladeira...” E lá se foi Candinha, em disparada, abrindo caminho por entre os foliões, numa velocidade insuspeita para aquele corpo roliço e sua pequena estatura (1,53m). Desesperada, pelas ladeiras de Olinda, com as mãos na cabeça, gritando:"É chapinha!!! É chapinha!!!" Com meia dúzia de meninos, munidos de espingardas de água, em seu encalço, como índios querendo escalpo em filme de faroeste. Seu inseparável salto alto não a ajudava em nada, nem sua única esperança de socorro, Paulo, seu novo namoradinho, que rolava ladeira abaixo de tanto rir. Encurralada, o banho foi inevitável... A música soava jocosa em seus ouvidos: “Quanta lameira, Candinha, quanta lameira...” Assim como a chapinha, o novo e promissor namoro não resistiu a tão sério abalo causado pelo banho público.

 PS: essa crônica é dedicada a Candinha, mão de playmobil. Baseada em um fato real.